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Full text of "Da Asia de João de Barros e de Diogo de Couto"

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McKEW  PARR  COLLECTION 


MAGELLAN 

and  the  AGE  of  DISCOVERY 


PRESENTED      TO 

BRANDEIS  UNIVERSITY  •  1961 


CONTINUAÇÃO 

DA  ÁSIA 

D  E 

JOÃO  DE  BARROS 

POR 

DIOGO  DE  COUTO, 


DA  ÁSIA 

D  E 

DIOGO  DE  COUTO 

Dos   FEITOS  ,    QUE  OS   PoRTUGUEZES  FIZERAM 
NA    CONQUISTA  ,    E    DESGUBRIMENTO    DAS 
TERRAS  ,    E    MARES    DO    OrIENTE. 

DÉCADA   QUARTA 

PARTE    PRIMEIRA, 


LISBOA 

Na  Regia  Officina  Typograficá. 
anno  mdcclxxviií. 

Com  Licença  da  Real  Meza  Cenfovla ,  e  Privilegio  KcfiU 


JL*JíOoxíL 


<nt, 


í/uya,  ae/cn  . 


tJÁ-OUf  ^íouUi , 


VIDA 


D  E 


DIOGO  DE  COUTO 

Chroniíla  do  Eftado  da  índia,  e  Guarda  mor 
da  Torre  do  Tombo  delia. 

Por  MANOEL  SEVERIM  DE  FARIA. 


EM  tanta  força  as  obras  dos  Ho- 
mens doutos  para  fazer  eílimar 
feus  Authores  em  toda  a  parte , 
que  não  fomente  ganham  com  par- 
ticular aíFeição  as  vontades  dos  que  os  vem  , 
mas  ainda  levam  apôs  íi  os  defejos  dos  au- 
fentes  para  pertenderem  fua  communicaçao. 
Eíles  me  fizeram  procurar  com  cartas  defde 
cfte  Reyno  a  amizade  de  Diogo  de  Couto 
na  índia  ;  e  agora  me  obrigam  a  que  ponha 
em  lembrança  a  noticia  ,  que  alcancei  de 
fuás  CO  ufas  5  aííi  por  cumprir  em  parte  neíle 
ojfficio  com  o  que  lhe  devo ,  como  por  en- 
tender., que  com  iíTo  faço  huma  obra  agra- 
dável a  todo  efte  Reyno ,  de  que  pelo  mui- 
to que  trabalhou  no  ferviço  público ,  com 
razão  he  tido  por  merecedor  de  outras  avan- 
tajadas memorias. 

Foi  Diogo   de  Couto  filho   de  Gafpar 
de   Couto ,    e  de  Ifabel  Serrão  de  Calvos , 
peíToas    nobres  ,   e  ella   foi  filha   de  Vafco 
Serrão  de  Calvos ,  por  cuja  via  ficava  Dio- 
go 


VI  Vida 

go  de  Couto  fegando  primo  daquelle  in- 
íigne  Pregador  ,  e  grande  Religiofo  o  P. 
Luiz  Alvares  da  Companhia  de  Jeíus.  Naf- 
ceo  Diogo  de  Couto  em  Lisboa  no  anno 
de  1542.  eílando  feu  pai  Gafpar  de  Cou- 
to em  ferviço  do  Lifante  D.  Luiz  ,  a  quem 
o  dera  EIRey  D.  Manoel.  Por  eíla  razão 
entrou  Diogo  de  Couto ,  como  teve  idade , 
no  ferviço  do  Infante  ,  o  qual  o  mandou 
cftudar  em  Lisboa  ,  e  de  onze  annos  come- 
çou a  ouvir  Grammatica  entre  os  primeií-os 
eftudantes  do  Collegio  de  Santo  Antão  da 
Cidade ,  que  foi  o  primeiro  Collegio  que  a 
•Religião  da  Companhia  teve  em  toda  Eu- 
ropa. SeuMeílre  na  iingua  Latina  foi  o  P. 
Manoel  Alvares,  célebre  Humaniíla ,  eAu- 
thor  da  Arte  da  Grammatica ,  que  lioje  fe 
lê  em  todas  as  Univeríidades  ,  e  eíludos , 
que  a  Companhia  tern  a  feii  cargo.  ARhe- 
torica  ouvio  do  P.  Cypriano  Soares  ,  que 
compoz  a  Rhetorica ,  perque  fe  eníina  eíla 
Arte  nas  efcolas  da  Companhia.  E  fe  he 
verdadeira  aquella  Sentença  ,  que  o  primei- 
ro fervor  5  e  motivo  da  fabedoria  lie  a 
excellencia  dos  Meftres  ,  com  razão  fe  po- 
dem ter  cm  muito  as  obras  de  Diogo  de 
Couto  5  pois  além  de  ferem  nafcidas  de  feu 
grande  engenho ,  foi  elle  cultivado  per  tão 
célebres  ,  e  doutos  varões  daquelle  tempo>^ 
Acabados   os  eíludos  da  Humanidade, 

pa- 


DE  Diogo  DE  Couto       vii 

parou  Diogo  de  Couto  na  continuação  das 
efcolas  5  porque  ainda  então  fe  não  liam 
em  Lisboa  mais  que  as  letras  humanas  , 
e  aíli  ficou  continuando  no  íerviço  do  In- 
fante ;  o  qual  mandando  algum  tempo  de- 
pois o  Senhor  D.  António  feu  filho  ao 
Mofleiro  de  Bemfica  para  ouvir  a  Filofofía 
do  fanto  varão  Fr.  Bartholomeu  dos  Mar- 
tyres,  que  depois  foi  Arcebifpo  de  Braga, 
vendo  a  boa,  e  natural  habilidade,  que 
já  em  Diogo  de  Couto  fe  defcubria  ,  lho 
deo  por  condifcipulo.  Aprendeo  Diogo  de 
Couto  defte  infígne  Meílre  não  fomente  as 
Artes  liberaes  ,  em  que  ellc  foi  eruditiíli- 
mo ,  mas  juntamente  as  virtudes ,  que  nelle 
mais  refplandeciam  ,  como  bem  o  moílrou 
depois  na  temperança  ,  modeília ,  e  pieda- 
de ,  que  em  toda  fua  vida  guardou ,  aíli  no 
eftado  de  foldado  ,  como  no  de  Cidadão , 
fem  lhe  as  delicias  da  índia  poderem  fazer 
mudança  nos  coílumes  cm  tão  largos  an- 
nos ,  como  teve  de  vida. 

Faleceo  o  Infante  ao  tempo  que  Dio- 
go de  Couto  acabava  a  Filofofía ,  e  pouco 
depois  defta  perda  recebeo  a  fegunda  com 
a  morte  de  feu  pai  ,  e  aíli  cortando-fe-íhc 
o  curfo  de  fuás  efperanças ,  foi  conftrangi- 
do  a  mudar  eftado  ,  e  deixando  as  letras, 
fcguio  as  armas ,  a  que  feu  animo  não  pou- 
co o  inclinava.   E  com»o  já  naquelle  tempo 

não 


vm  Vida 

não  havia  outra  conquiíla ,  fenao  a  do  Ori- 
ente,  por  quanto  ElRey  D.João  III.  tinha 
largado  os  higares  de  Affica ,  fuftenrando  fo- 
mente aquelles  que  podiam  íervir  de  fron- 
teira de  Hefpanha  ,  determinou  paíTar  á  ín- 
dia 5  como  o  fazia  então  a  mòr  parte  da 
nobreza  de  Portugal ,  por  neíla  empreza  te- 
rem muitos  em  breve  tempo  ganhado  hon- 
ra ,  e  proveito ,  o  que  fempre  aííi  aconte- 
cera 5  fe  os  que  depois  vieram  quizcram 
continuar  no  valor ,  e  virtudes  dos  primei- 
ros 5  que  áquellas  partes  paíTdram  ,  e  não 
feguíram  os  vicios  da  fenfu alidade ,  e  ava- 
reza 5  com  que  corromperam  aquelle  tão 
bom  procedimento  antigo. 

Embarcou-fe  Diogo  de  Couto  no  an- 
no  de  15' 5*6.  militou  na  índia  oito  annos , 
achando- fe  noS  mais  dos  feitos  aílinalados 
defeu  tempo,  moílrando  com  particular  va- 
lor 5  que  as  letras  não  impedem  ,  antes  favo- 
recem as  armas  ,  como  deram  a  entender 
antigamente  os  Gregos  na  imagem  de  Apol- 
lo  ,  a  quem  pintavam  armado  de  arco  ,  e 
fettas ,  e  o  veneravam  juntamente  por  Deos 
das  fcicncias.  Cumpridos  dez  annos  de  mili- 
cia  contínua  ,  tornou  ao  Reyno  a  reque- 
rer o  premio  de  feus  trabalhos  ;  e  ainda 
que  chegou  a  Lisboa  ,  quando  com  maior 
força  ardia  o  mal  de  pede  ,  que  vulgarmen- 
te fe  chama  grande,  foi  brevemente,  e  bem 

def- 


DE  Diogo  DE  Cou  TO        dc 

defpachado.  Com  eíle  defpacho  fe  partio 
logo  para  a  índia,  o.nde  fe  cafou  na  Cida- 
de de  Goa  com  Luiza  de  Mello  ,  peíToa 
nobre ,  cujo  irmão  foi  o  P.  Fr.  Adeòdato 
da  Trindade  ,  da  Religião  de  Santo  Agof- 
tinho  ,  Que  depois  cá  no  Reyno  lhe  aíTiílio 
á  impreísáo  das  fuás  Décadas. 

Tanto  que  o  eílado  de  Cidadão  pacifi- 
co 5  e  livre  das  occupaçoes  da  guerra  ,  lhe 
deo  lugar  para  fe  lograr  do  ócio,  tornou  a 
renovar  no  animo  os  antigos  eíludos  das  le- 
tras humanas ;  e  aílí  por  eilas ,  como  por  fua 
cortezia  ,  e  boa  condição  ,  fe  fez  mui  conhe- 
cido na  índia  ,  e  amado  de  todos  os  dou- 
tos 5  nobres  ,  e  curiofos  ,  e  até  dos  Princi^ 
pes  Pagãos  daqucllas  partes. 

Foi  Diogo  de  Couto  mui  douto  nas 
Mathematicas  ,  e  particularmente  na  Geo- 
grafia :  foube  bem  a  lin.o^ua  Latina ,  e  Ita- 
liana ,  nas  quaes  compoz  alguns  Poemas  ,  e 
afil  na  noíTa  vulgar  ,  em  que  teve  particu- 
lar graça  ,  tudo  obras  lyricas ,  e  pafioris , 
de  que  deixou  hum  grande  tomo  de  Ele- 
gias ,  Eglogas  5  Canções  ,  Sonetos  ,  e  Grofas, 
Teve  particular  amizade  com  o  noífo  ex- 
cellente  Poeta  Luiz  de  Camões  ,  o  qual  o 
confultou  muitas  vezes  ,  e  tom.ou  feu  pare- 
cer cm  alguns  lugares  dos  feus  Lufiadas, 
e  a  feu  rogo  commentou  Diogo  de  Couro 
çfle  feu  heróico  Poema  ,   chegando  com  os 

Com- 


XII  Vida 

lima  5  ajuntar  outra  vez  o  que  naquelbs  duas 
Décadas  tratava  ;  de  que  fez  hum  fó  volu- 
me ,  recupilando  nelle  as  coufas  de  mòr  im- 
portância ,  e  relatando  as  maiores  mais  lar- 
gamente 5  com  que  fe  remediou  efte  furto 
de  maneira  3  que  quando  alguma  hora  appa- 
recerem  ,  aííi  pela  ordem  ,  como  pela  ma- 
téria ,  publicarão  claram.ente  feu  Author. 

Deílas  Décadas  eílam  fomente  até  agora 
impreíTas  a  quarta  ,  quinta  ,  fexta  ,  fetima  ; 
porém  á  fexta  fuccedeo  hum  grande  defaf- 
tre,  efoi,  que  eílando  a  imprefsâo  acabada 
em  cafa  do  impreíTor ,  fe  accendeo  o  fogo 
nas  cafas  ,  e  arderam  todos  os  volumes ,  ef- 
capando  fomente  féis  delles ,  que  acafo  eíla- 
vam  já  em  o  Convento  de  Santo  x\goftinho 
de  Lisboa.  As  mais  Décadas  não  fahíram 
ainda  á  luz  ,  e  quando  faleceo  Diogo  de 
Couto  ficaram  em  poder  do  P.  Fr.  Adeo- 
dato  da  Trindade  feu  cunhado. 

O  eílilo  ,  que  neftas  Décadas  guardou 
Diogo  de  Couto  ,  he  muito  claro  ,  e  chão , 
mas  cheio  de  fcntenças  ,  e  com  que  julga 
as  acções  de  cada  hum  ,  e  moíira  as  caufas 
dos  fuccefros  adverfos  ,  e  proiperos  ,  que 
naquellas  partes  tiveram  os  Portuguezes.  Po- 
rém ainda  que  nefta  parte  pode  fer  com 
outros  comparado  na  verdade  do  que  efcre- 
ve  ,  que  he  a  alma  da  hiítoria ,  no  que  tra- 
ta dos  Principcs  do  Oriente  ,   nos  coftumes 

da- 


DE  Diogo  de  Couto      xiri 

daquclles  povos  ,  e  remotas  Províncias ,  na 
íiruaçao  da  fua  verdadeira  Geografia  ,  levou 
a  muitos  conhecida  vantagem  ;  como  fe  po- 
de claramente  ver  das  íuas  Décadas  ,  nas 
quaes  fe  moítram  os  erros,  que  neítas  m.ate- 
rias  tiveram  os  que  antes  delle  efcrevêram 
as  coufas  do  Oriente.  Para  efta  noticia ,  além 
da  grande  applicaçao  ,  com  que  íe  deo  ao 
eíludo  dos  Geógrafos  antigos  ,  e  modernos , 
lhe  valeo  a  aíliílencia  ,  que  teve  naquellas 
partes  por  mais  de  fmcoenta  annos  ,  nos 
quaes  vio  por  razão  da  milicia ,  e  commer- 
cio  muitos  daquelles  Reynos  ;  e  depois 
fendo  Cidadão  de  Goa  ,  cabeça  daquelle  El- 
tado,  pode  bem  alcançar  a  verdade  dos  fuc- 
ceíTos  que  refere ,  pois  naquella  Cidade  af- 
íiílem  todos  os  Viíb-Reys  ,  e  delia  fahem 
todas  as  Armadas ,  e  a  ella  fe  tornam  a  re- 
colher ,  de  maneira ,  que  recebeo  as  infor- 
mações dos  mefmos  que  fe  acharam  nas 
emprezas  ,  c  a  tempo  que  as  teílemunhas 
de  viíla  ,  que  na  mefma  Cidade  havia ,  os 
obrigavam  a  fallar  verdade.  A  efta  razão 
fe  lhe  accrefcentou  outra ,  que  foi  a  do  of- 
ício de  Guarda  mor  da  Torre  do  Tombo 
do  Eílado  da  índia  ,  o  qual  cargo  lhe  deo 
ElRey  D.  Filippe  L  quando  mandou  orde- 
nar efte  arquivo  pelo  Vifo-Rey  Mathias  d'AI- 
boquerque ,  no  qual  fe  recolheram  todos  os 
contratos  de  Pazes ,  Provisões,  Regiftos  de 

Chaa- 


XIV  Vida 

Chancellaria  ,  e  os  mais  papeis  de  íinpor- 
tancia  ,  que  coílumavam  andar  em  poder 
do  Secretario  ,  e  de  outras  peflbas  daquellc 
Eftado  ,  com  que  lhe  ficou  huma  noticia 
original  de  tudo  o  tocante  áquella  hiílo- 
ria  5  donde  com  razão  podemos  ter  eíla  por 
não  menos  verdadeira  ,  que  a  de  Polibio , 
e  Saluftio  ,  a  quem  eíle  deícjo  levou  de  Gré- 
cia a  Itália  ,  e  de  Itália  a  Numidia ,  para 
verem  os  fitios  das  Províncias ,  de  que  ha- 
viam deefcrever,  e  alcançar  as  informações 
dos  feitos  ,  de  que  tratavam  ,  dos  quaes 
( por  ferem  paíTados  muitos  annos  antes ) 
de  força  lhe  faltaria  a  noticia  em  muitas 
partes  eflenciaes  ,  tendo  juntamente  o  meí- 
mo  tempo  mudada  a  face  das  terras ,  e  lu- 
gares 5  como  cada  dia  vemos. 

Não  he  menos  de  eílimar  efla  obra  por 
fua  grandeza  ;  porque  além  de  efcrever  Dio- 
go de  Couto  noventa  livros  neftas  nove 
Décadas  ,  numero  a  que  raros  Efcritores  che- 
garam ,  foi  toda  cfla  hilloria  efcrita  por  el- 
le  novamente ,  e  não  tomada  de  outros  Au- 
thores ,  no  que  fe  moílra  bem  a  grandeza, 
e  valor  de  feu  engenho ,  a  que  não  chegou 
Livio  ,  ainda  que  lhe  excedco  no  número 
dos  volumes  ,  por  quanto  a  maior  parte  de 
fua  hiftoria  foi  tomada  de  outros  ,  e  prin- 
cipalmente de  Polibio  ,  o  qual  também  con- 
feíTa  de  íí ,  que  das  obras  que  muitos  Efcri- 

10- 


DE  Diogo  de  Couto       xv 

teres  tinham  publicado  de  cada  conquifta 
dos  Romanos  em  particular  ,  compuzera  a 
fua  univeríal  hiítoria.  Mas  Diogo  de  Cou- 
to foi  o  primeiro  que  tirou  á  luz  a  hifto- 
ria  da  índia ,  do  tempo  ,  em  que  a  deixou 
João  de  Barros,  (íenão  foi  o  que  até  o  prin- 
cípio do  governo  de  Nuno  da  Cunha  tinha 
efcrito  Fernão  de  Caflanheda;)  por  quanto 
a  quarta  Década  de  João  de  Barros  ,  que 
acaba  com  o  governo  do  mefmo  Nuno  da 
Cunha ,  íahio  muitos  annos  depois. 

Para  aperfeiçoar  eíta  obra ,  e  dar  huma 
confummada  noticia  do  Oriente,  compoz  ou- 
tro livro  ,  a  que  chamou  Epílogo  da  htfio* 
ria  da  htdia  ,  no  qual ,  tratando  de  cada  for- 
taleza noíTa ,  aponta  as  coufas  principaes  que 
alli  aconteceram  ,  as  em  que  faltaram  os 
KoíTosHiftoriadores,  e outras,  que  de  novo 
foram  fuccedendo  ,  de  maneira,  que  neíle 
volume  eftá  fummariamente  tudo  o  que  to- 
ca á  hiítoria ,  commercio ,  e  policia  Orien- 
tal ,  accommodando  o  ePiilo  a  eíle  compen- 
dio com  muita  clareza ,  e  brevidade.  Não 
foi  menos  eloquente  no  eftilo  Oratório  ;  por- 
que além  do  que  fe  vê  nas  fuás  Décadas, 
que  não  he  pouco ,  por  iníigne  neíla  facul- 
dade foi  efcolhido  para  fazer  as  praticas 
aos  m.ais  dos  Governadores ,  e  Vifo-Reys , 
que  em  feu  tempo  entraram  em  Goa ;  mas 
ifto  não  era  fó  pela  linguagem ,  e  ornato  de 

pa- 


XVI  Vida 

palavras  com  que  fallava,  mas  pela  verda- 
de ,  e  defengano  com  que  as  dizia  ,  das 
quaes  algumas  andam  imprcíTas  ,  que  nao 
defdizem  de  íeu  Author. 

Acompanhou  a  Diogo  de  Couto  deílie 
feus  primeiros  annos  hum  grande  zelo  do 
bem  público  da  pátria  ,  que  junto  com  o 
entendimento  ,  e  experiência  ,  de  que  era 
dotado  ,  lhe  fez  confiderar  as  caufas  de  al- 
guns inconvenientes  ,  que  havia  no  gover- 
no da  Republica ,  e  principalmente  no  cita- 
do da  índia ,  onde  elle  aíTiília  ,  e  onde  por 
aufencia  dos  Reys  ,  e  excelTos  dos  Minif- 
tros  hiam  as  deíbrdens  a  maior  crefcimen- 
to.  Para  remediar  eíle  miai  ,  vivendo  ainda 
ElRey  D.  Scbaíliao,  compoz  hum  livro,  a 
que  chamou  o  Soldado  pratico  ,  no  qual 
introduzio  per  modo  de  Dialogo  hum  Vi- 
fo-Rey  novamente  eleito  ,  fallando  com 
certo  foldado  velho  da  índia ,  que  andava 
na  Corte  em  feus  requerimentos  ,  para  íè 
informar  das  coufas  que  lhe  importavam 
para  a  jornada  ,  e  do  mais  que  tocava  ao 
governo  da  Fazenda  Real ,  e  milicia  daquel- 
le  Eftado  ,  e  em  todas  eftas  coufas  aponta 
com  cortezão  eílilo  ,  e  brevidade  o  que  fe 
deve  feguir  ,  ou  evitar  ,  dando  os  exem- 
plos 5  e  razoes  fundamentaes  de  maneira, 
que  pode  fer  huma  excellente  inftrucçao  pa- 
ra  aquelle  governo.    Porém  antes  de  aper- 

ÍQÍ' 


DE  Diogo  de  Couto     xvií 

feiçoar  cfta  obra  ,  lhe  foi  furtado  o  origi- 
nal delia  5  e  fem  mais  o  poder  haver  as 
mãos  5  chegou  a  efte  Reyno  fem  nome  de 
Author  5  aonde  fe  trasladaram  algumas  co- 
pias 5  que  foram  tidas  em  grande  eílima  dos 
que  as  puderam  haver.  Sendo  diílo  adver- 
tido no  anno  de  i6io.  por  hum  amigo 
feu  ,  tornou  a  reformar  efta  obra  ,  ou  quaíi 
a  fazella  de  novo  ,  porque  introduzio  por 
peíToas  do  Dialogo  hum  Governador ,  que 
tinha  fido  da  índia  ,  com  hum  Soldado  pra- 
tico delia  5  amibos  em  cafa  de  hum  defpa- 
chador  ,  tratando  fobre  as  coufas  daquelle 
Eítado  j  trazendo-as  ao  tempo  prefente  , 
com  tanta  ponderação  ,  e  juízo  ,  que  não 
fomente  pode  fervir  de  norte  aos  que  o 
governarem  ,  mas  em  todo  o  tempo  de  claro 
defengano  das  coufas  delle.  Efta  obra  dedi- 
cou ao  Marquez  de  Alemquer  ,  e  o  original 
eftá  na  livraria  de  ?vlancel  Severim  de  Fa- 
ria Chantre  de  Évora ,  a  quem  elle  o  man- 
dou. 

Efte  zelo  da  honra  da  pátria  lhe  fez  ef- 
crever  hum  livro  ,  contra  o  que  compoz  o 
P.  Fr.  Luiz  de  Urreta  Dominico  ,  da  hií- 
toria  5  e  policia  do  Reyno  da  Ethiopia  ,  a 
que  vulgarmente  cham.amos  Prejle  João  ,  no 
qual  o  Padre  com  a  pouca  noticia  que  ti- 
nha do  Oriente  ,  e  fem.  ler  as  hiílorias  da 
índia  ,  nem  deíle  Reyno  ,  (como  quem  efcre- 
veo  entre  os  bofques ,  e  delicias  de  Valen- 
Cotito,  Tom.  L  P.  L  **  ça , 


XVIII  Vida 

ça  5  fem  ver  mais  que  hum  fó  homem  ,  que 
o  informou  ,  e  a  quem  creo  )  diíTe  muitas 
coulas  contra  toda  a  verdade  da  hiiloria , 
fendo  todo  o  feu  livro  huma  obra  fabulo- 
fa,  e  temerária.  E  pofto  que  os  Padres  Fer- 
não Guerreiro  ,  e  Nicoláo  Godinho  da  Com- 
panhia tinham  rcfpondido  ao  P.  Urreta  com 
particulares  Apologias  ;  os  mefmos  Padres 
da  Companhia  de  Goa  pediram  a  Diogo 
de  Couto  refpondeíle  também  pela  honra 
defte  Reyno  ,  o  que  elle  fez  ,  eílando  já 
quaíi  com  o  corpo  na  fepultura  ;  mas  com 
tanto  vigor  de  animo,  que  bem  parece  que 
fe  lhe  fakavam  as  forças  corporaes ,  que  as 
do  entendimento  hiam  fempre  em.  maior 
perfeição.  Efte  livro  trouxeram  os  Padres 
da  índia  ao  Arcebifpo  de  Braga  D.  Fr.  Alei- 
xo de  Menezes  per  ordem  de  feu  Author, 

Com  eftas  cccupaçoes  não  pode  acabar 
de  rodo  outra  emipreza ,  que  deixou  come- 
çada para  luz  do  commercio  da  índia ,  em 
que  tratava  de  todos  os  tempos  ,  e  mon- 
ções ,  em  que  fe  navega  para  todas  as  par- 
tes do  Oriente  ,  e  dos  pezos  ,  medidas ,  e 
moedas  ,  com  todas  as  mais  coufas  que  a 
eíle  particular  pertenciam. 

Neílas  taes  obras  gaftou  Diogo  de  Cou- 
to a  maior  parte  de  fua  idade,  exercitando 
o  talento  que  lhe  foi  entregue ,  como  bom , 
e  util  fervo,  até  o  anno  de  1616.  no  qual 
fendo  de  74.  annos  o  levou  Deos  para  fi , 

fab- 


DE  Diogo  de  Couto      xix 

fabbado  a  lo.  de  Dezembro,  para  lhe  dar  d 
premio  que  luas  obras  mereceram.  Foi  Dio- 
go de  Couto  hom.em  de  meã  cílatura  ,  de 
alegre ,  e  venerável  prefença  ,  olhos  viv^os  y 
cor  atereciada ,  o  nariz  algum  tanto  aquili- 
no ,  mui  laboriofo ,  como  o  mcílra  a  nuil- 
tidao  de  feus  eícritos  ,  teve  grande  confe- 
Iho  ,  e  por  cila  caufa  era  chamado  muitas 
vezes  dos  Vicc-Reys  a  elle  nos  negocies 
de  mor  importância.  Era  pouco  cubiçofo  ^ 
que  para  homem,  que  vivco  tantos  annos  na 
Índia ,  he  grande  maravilha  ,  e  aííi  foi  mais 
rico  de  partes  ,  e  merecimentos  que  de  fa** 
zenda  ,  pofto  que  efta  lhe  não  faltou  em  feií 
eílado  ,  com  que  fempre  paíTou  honradamente. 
De  fua  mulher  ,  com  que  viveo  largos 
annos ,  teve  huma  fó  íilha  ,  que  morreo  antes 
de  cafar,  donde  não  ficou  delle  geração,  o 
que  os  antigos  julgavami  por  infelicidade , 
porém  não  tal ,  que  lhe  poíTa  tirar  a  bema- 
venturança ,  que  os  mefmos  antigos  tinham 
por  grande,  que  era  efcrever  feitos  alheios, 
e  dar  matéria  para  que  fe  efcreveííem  os 
feus  próprios  ,  o  que  elle  fez  na  fua  mili- 
cia  ,  e  hiíloria  ,  compondo  ,  e  pelejando. 
Pelo  que  com  razão  lhe  puzeram  aquelle 
Diftico  ao  pé  de  feu  retrato ,  que  como  ef- 
lava  immortaí ,  lhe  imprim.íram  nas  fuás  Dé- 
cadas ,  que  diz  : 

Expriíuít  effigies  ^  (jiwd  J^ohm  in  C^fare  vj/tuji  ejl. 
Hljhruim  calamo    ti-aílat ,  2?*  arma  níami, 

**  ii  NO- 


XX 

NOTICIA   DOS   AUTHORES, 

QUE     ESCREVERAM 

DIOGO  DE  COUTO, 

E  Catalo^ço  das  Obras  ,   que  compoz  ,  extrahidas  da  Bi- 
bliotheca  de  Diogo  Barbofa  iVIachado  Tom.  i. 
pag.  648.   até  Ó49.  e  Tom.  4.  pag.  98, 

Screveo  a  fua  Vida  o  douto  Manoel 
Severim  de  Faria  nos  difcurfos  vários 
deíde  pag,  148.  até  15:7.  Nicoláo  António 
Bibl,  Hjfp,  T.  I.  pag,  215'.  col.  I.  fallando 
delle ,  diz  :  Stitdiis  de  nu  o  fe  reftituens  re- 
hus  quidem  per  totós  qtúnquaginta  annos 
terra ,  marique  in  ijlo  Orientis  orbe  geflis 
Jíue  miles  prius  ,  Jive  Proregum  familiaris , 
^  ad  negotiorum  momenta  fuhinde  admif- 
jus  non  fine  magno  rerum  Lujitanarum  in- 
cr  emento  haud  mhius  animo  ,  attentaque  oh- 
ferva tio7te  ,  quampr^fentia  interfuit,  João 
Soares  de  Brito  in  Theatr,  Lufit,  Lit,  D. 
num,  12.  Hift,  da  Etiop,  Alt,  Liv,  i.  Cap. 
27.  e  Liv,  2.  Cap,  7.  infigne  Hijioriador. 
Ni  cero  n  Memor,  pour  fervir  a  P  Hift*  des 
Hom,  llluft.  Tom,  12.  pag,  94.  Souía  Flor. 
de  Hefpan,  Cap,  8.  excelL  1 1.  num.  7.  Morery 
Diccion,  verb.  Couto.  António  de  Leão  BibL 
Jnd,Tit.  3.  Faria  ElencJio  dos  Aiithores  Por- 
tug.  no  princípio  do  Tom.  I.  da  Afa  Portug, 
D.  Franciíco  Manoel  na  Carta  dos  Au- 
thores  Portug.  efcrita  ao  Doutor  Themudo. 

Ca^ 


DE  Diogo  de  Couto        xxi 

Catalogo   das  obras  ,   que  fahíram   d  luz 
pública  da  imprefsão. 

Década  quarta  da  Afia  dos  feitos  ,  que 
os  Portuguezes  fizeram  na  conquifia  ,  e  def- 
cubrimento  das  terras ,  e  mares  do  Orien- 
te ,  em  quanto  governaram  a  índia  Lopo 
Vaz  de  Sampaio ,  e  parte  de  Nuno  da  Cu- 
nha, Lisboa  por  Pedro  Crasbceck  no  Gol- 
legio  de  Santo  Agoílinho  1602.  foi. 

Década  quinta  da  Afi,a  ,  (^c,  em  quan^ 
to  governaram  a  índia  Nuno  da  Cunha  ^ 
D,  Garcia  de  Noronha  ,  D.  Efievao  da  Ga- 
ma 5  Martim  Ajfonfo  de  Soufa.  Lisboa  pe- 
lo dito  ImpreíTor  161 2.  foi. 

Década  fiexta  da  Afia  ,  Í3^c,  em  quanto 
governaram  a  índia  Z).  focio  de  Cafiro , 
Garcia  de  Sd ^  3^^K^  Cabral^  e  D,  Affon- 
fo  de  Noronha,  Lisboa  pelo  dito  Impref- 
Jbr  16 14.  foi. 

Década  fetima  da  Afia  ,  Ò^c,  em  quanto 
governaram  D,  Pedro  Maficarenhas  ,  Fran- 
cifco  Barreto  ,  D,  Conftantino  ,  o  Conde  de 
Redondo  ,  D,  Francifco  Coutinho ,  e  João 
de  Mendoça,  Lisboa  pelo  dito  ImpreíTor 
1616.  foi. 

Década  oitava  da  Afia  ,  cí^r.  em  quan- 
to governaram  a  índia  D.  Antão  de  No- 
ronha ,  e  D.  Luiz  de  At  ai  de,  Lisboa  por 
João  da  Coíla ,    e  Diogo  Soares  i6j^.  foi, 

^Sin- 


XXII      Noticia  das  Obras 

Sinco  livros  da  Década  Duodécima  da 
hiftoria  da  Índia,  Paris  ló^iy.  foi.  Compre- 
jiende  o  governo  do  Vice-Pvoy  D.  Franciíco 
da  Gama  Conde  da  Vidigueira  ,  que  fahio 
á  luz  pública  por  diligencia  do  Capitão  Ma- 
noel Fernandes  Villa-real,  Conful  dos  Por- 
tuguezes  na  Corte  de  Paris. 

Todas  eítas  Décadas  com  a  Nona ,  que 
nunca  foi  impreíla  ,  fahíram  novamente  á 
luz  pública  em  3.  Tomos  com  índices  mui- 
to copiofos  na  Oíiicina  da  Mufica.  Ánno 
1736.  foi. 

Da  Década  Decima  foram  fomente  im- 
preíTas  120.  paginas ,  e  de  toda  ella  ha  al- 
gumas cópias  ,  que  conílao  de  dez  livros. 

A  TJndecima  Década  nunca  fe  defcu- 
brio  ,  applicando-fe  infruflucfam^ente  multi- 
plicadas diligencias  para  que  appareceffe ,  a 
qual  certamente  efcreveo  ,  como  teftemunha 
o  grave  Antiquário  Manoel  Scverim  de  Fa- 
ria na  Vida  de  Diogo  de  Couto  ,  pag.  15:2. 

¥alla  que  fez  em  nome  da  Camera  de 
Goa  a  André  Furtado  de  Mendoça  ,  Í7ido 
for  Governador  da  índia  er,i  fuccefsão  do 
Conde  da  Feira  D,  João  Pereira  ,  dia  da 
Efpirito  Santo  de  1609.  Lisboa  por  Vicen- 
te Alvares  16 10.  foi. 

Relação  do  naufrágio  da  não  S,  Thomé 
na  terra  dos  Fumos  no  anno  de  15"  89.  e  dos 
grandes  trabalhos  ^  que  pajjou  D.  FauJo  de 

Li' 


DE  Diogo  de  Couto     xxiíí 

Lima  nas  terras  da  Cafraria  até  fua  mor- 
te, Sahio  impreíTa  7ia  hijloria  Tragico-Ma- 
ritima  ^  lom.  2.  a  pag.  ifj.  até  21:^.  Foi 
efcrita  efta  relação  em  o  anno  de  161 1.  á 
jnílancia  de  D.  Anna  de  Lima  irmã  do  di- 
to D.  Paulo  de  Lima. 

Vida  de  D.  Faulo  de  Lima  Pereira  Ca- 
pitão mor  de  Armadas  do  Eflado  da  índia  , 
com  huma  defcripçao  defde  a  terra  dos 
Fumos  até  ao  Cabo  das  Corroítes,  Lisboa 
por  Jofé  Filippe  1765'.  8. 

Obras  Manufcritas, 

Epilogo  da  hijloria  da  índia,  Nellc  tra- 
ta de  cada  fortaleza  noíía  ,  e  o  que  fucce- 
deo  mais  digno  de  memoria. 

Soldado  perfeito,  Neíla  obra  introduz 
por  modo  de  Dialogo  hum  Vice-Rcy  no- 
vamente eleito ,  fatiando  com  hum  foldado 
veterano  da  índia  ,  que  andava  na  Corte 
requerendo  para  fe  informar  de  tudo  ,  que 
pertence  á  arrecadação  da  fazenda  Real ,  e 
milicia  daquelle  Eííado  ,  fendo  humia  ex- 
cellente  iiiílrucçao  para  o  que  deve  obrar 
hum  Vice-Rey.  Antes  de  pôr  a  ultima  mão 
a  efta  ob^a  lhe  defappareceo  o  original ,  o 
qual  chegando  a  efte  Reyno  fem  nome  do 
feuAuthor,  feextrahíram  delle  algumas  co- 
pias 5  porém  fendo  advertido  por  hum  feu 
amigo  5  a  reformou  em  o  anno  de  1610.  e 

fa- 


XXIV      Noticia  das  Obras 

fahio  com  eíle  titulo  :  Dialogo  entre  bum 
Fidalgo^  e  htrm  Soldado  da  Índia.  Dedica- 
do ao  Marquez  de  Alcmquer.  O  original 
Ic  coii ferva  na  livraria  do  Conde  do  Vi- 
aiiieiro. 

Hijloria  do  Reyno  da  Et hi opta  ,  cha^ 
mado  vulgarmente  Prejie  João  ,  contra  as 
faljidades ,  que  nefta  matéria  efcreveo  Fr. 
Luiz  Urretã  Dominicano,  Foi  oíFerccida 
çíla  obra  pelos  Padres  Jefuitas  ao  Arcebif- 
po  D.  Fr.  Aleixo  de  Menezes. 

Commento  ds  Lujiadas  de  Luiz  de  Ca^ 
7nÕesÍQix.o  á  petição  defte  incomparável  Poe- 
ta ,  em  cuja  empreza  não  paíTou  do  quinto 
Canto  ,  que  confervava  D.  Fernando  de  Caí- 
tro  Cónego  de  Évora  por  lho  ter  deixado 
leu  tio  D.  Fernando  de  Caílro  Pereira  ,  a 
quem  o  Author  o  tinlia  remettido. 

Poezias  varias.  Confiavam  de  Elegias, 
Eglogas  ,  Sonetos  ,  Canções ,  e  Glozas. 

Falia  que  fez  na  Caniera  de  Goa  ao 
Conde  D,  Francifco  da  Gama  ,  quando  nella 
puzeram  o  retrato  de  fcu  bifava  D,  Vafco 
da  Gama,  Começa:  A  coufa  de  que  fe  pre^ 
zavar/L  aquellas  famofas  Képuhlicas  ,    í^c. 

Falia  cfue  fez  ao  Vice-Rey  Ayres  de  Sal- 
danha ,  quando  entrou  em  Goa  a  rogo  da 
Cidade,  Começa  :  Aquelle  grande  Theopom-^ 
po  Rey    dos  Lacedemonios ,  ii^c. 

Oração  que  tinha  feito  para  o  dia  que. 


DE  Diogo  de  Couto       xxv 

fe  levajttafje  a  FJfatua  do  Conde  Ahni- 
rante  a  Jegunda  vez  que  fe  reftituio  a  feu 
lugar  donde  a  tiraram ,  a  qual  não  houve 
ejjeito.  Começa :  Aquelle  Príncipe  de  toda 
a  eloquência  Latina  M,  Tullio  Cicerao  ,  cb"r. 

Oração  que  fez  a  rogo  da  Cidade  de 
Goa  ao  Vice-Rey  D,  Martim  Ajfonfo  de 
Caftro  5  quando  entrou  na  Cidade  de  Goa, 
Começa  :  Daquelle  grande  Alexandre  Mo^ 
narca  do  Mundo ,  Ò^c, 

Oração  que  fez  ao  Arcebifpo  Z).  Fr, 
Aleixo  de  Menezes  ,  quando  por  morte  do 
Vice-Rey  D,  Martim  Affonfo  de  Caftro  fuc- 
cedeo  7ia  governança  da  índia  eyn  1 1  de 
Fevereiro  de  1608.  Começa:  Efcrevem gra- 
vijjimos  Authores ,  ÍTc, 

Oração  que  fez  ao  Vice-Rey  Lourenço 
Pires  de  Távora  ,  quando  entrou  na  Cida- 
de de  Goa,  Começa :  Hoje  que  me  era  ne- 
cejjario  hum  animo  arrebatado  ^  hum  efpi- 
rito  fervor ofo  ,  é^r. 

Oração  que  tinha  feito  pêra  o  dia  da 
entrada  do  Vice-Rey  D,  ^eronymo  de  Aze- 
vedo, Todas  eftas  orações  confervava  na 
fua  grande  Bibliothcca  o  iníigne  Antiquário 
Manoel  Severim  de  Faria. 

Tratado  de  todas  as  coufas  fuccedidas 
ao  valorofo  Capitão  Z).  Vafco  da  Gama , 
primeiro  Conde  da  Vidigueira  ,  e  Almiran- 
te  do  viar  da  Índia   710  defcubrimento  ,   e 

con- 


XXVI  NoT.  DAS  Obb.  de  Diogo  de  Couro 

conquijla  do  mar  ,  e  terras  do  Oriatte ,  e 
de  todas  as  vezes ,  que  d  Índia  paffòu ,  e 
das  coufas  ,  que  fuc cederam  jwlla  a  todos 
Jeus  filhos.  Dirigido  a  D.  Francifco  da  Ga- 
ma ,  Conde  da  Vidigueira ,  Almirante  do 
mar  Índio  ,  e  Vice-Rey  da  Índia,  Foi.  Ms. 
Confta  de  duas  partes  ,  a  primeira  compre- 
hende  vinte  e  oito  capítulos  ,  e  a  fegunda 
trinta.  Foi  feito  em  Goa  a  i6.  de  Novem- 
bro de  I5'99. 

De  todos  os  tempos  ,  e  monções ,  em  que 
fe  navega  para  todas  as  partes  do  Orien- 
te ,   e  dos  pezos ,  medidas ,  e  moedas  ,  com 
tudo  o  mais  pertencente  a  efte  argumento. 
Eílaobra  não  acabou  impedido  pela  morte. 


AO 


XXVII 

AO   INVICTISSIMO 
MONARCA  DE  HESPANHA 

D.   FILIPPE 

REY   DE   PORTUGAL 
O  PRIMEIRO  DESTE   NOME. 


EPISTOLA. 


A  COUSA  a  que  a  Natureza  mais 
inclinou  todas  as  creaturas  alíí  ra- 
-cionaes  ,  como  irracionaes  ( fegundo  os 
Filofofos  afíirmam,  INVICTISSIMO  Monar- 
ca )  foi  a  confcrvação  de  fua  própria 
efpecie  5  trabalhando  por  produzirem 
outras  femclhantes  a  íi.  ívlas  ao  homem 
como  mais  excellente  de  todas  lhe  deo 
além  diílo  hum  appetite  quaíí  fobrena-' 
tural  5  que  he  defejar^  e  íblicitar  mais 
que  tudo  a  confervação  de  feu  próprio 
nome,  trabalhando  por  deixar  delle  hu- 
ma  memoria  eterna  por  feitos  5  e  obras 

hc- 


xxvíii  Epistola 

heróicas ,  antes  que  por  impérios  ,  Rey- 
nos  5  e  fenhorios.  Difto  temos  hum 
iniiico  claro  exemplo  no  grande  Ale- 
xandre 5  que  fendo  já  fcnhor  do  Mun- 
do y  quando  parecia  que  a  cubica  hu- 
mana ellava  fatisfeita,  então  lhe  entra- 
ram novas  invejas  ,  vendo  o  fepulcro 
de  Achiles  ,  porque  não  tinha  outro 
Homero  pêra  lhe  acabar  de  rematar 
fua  bemaventurança ,  pêra  em  tudo  fer 
maior  que  todos.  E  por  tanto  maior 
tinha  efta  gloria  de  ficar  no  Mundo  vi- 
vendo por  fama,  que  o  império  de  to- 
do elle;  pois  eftando  pêra  morrer,  não 
deixou  feus  Reynos  a  feu  filho  polo 
não  achar  digno  delles  ,  fenão  ao  vir- 
tuofo  Perdica  5  porque  aíli  accrefcentava 
mais  em  fua  fama ,  que  não  quiz  arrif- 
car  no  filho  poía  inclinação  que  lhe  fin- 
tio.  A  mefma  opinião  teve  Phartes  Rey 
dos  Parthos  ,  que  tendo  também  filhos 
deixou  feus  Reynos  ao  famofo  Mithri- 
dates,  porque  eíperava  com  feus  feitos 
perpetuar  mais  fua  memoria.  Apôs  efte 
appetite  natural  corriam  aquelles  famo- 

fos 


Epistola  xxix 

fos  Capitães  Thcmiftocles ,  e  Jiilio  Ce- 
fâv  y  quando  hum  muito  pcnfacivo  dizia, 
que  os  troféos  de  Miiciadcs  o  não  dei- 
xavam quietar  ;  e  o  outro  quando  vio 
cm  hum  templo  efculpidas  algumas  fa- 
canhas  de  Alexandre  ,  entrifteceo-fe  , 
por  fe  ver  em  idade  em  que  o  outro 
conquiftou  o  Mundo  ^  e  elle  náo  tinha 
feito  nada.  E  alíí  he  na  verdade ;  por- 
que nenhuma  coufa  puxa  mais  porhimi 
varão  de  honra  ,  que  cftes  deíejos  de 
gloria  5  e  fama  ,  porque  tantos  obraram , 
e  fizeram  tantas  ,  e  tão  altas  maravi- 
lhas, que  pareciam  paiTar  os  termos,  e 
limites  da  natureza  humana.  Ifto  fintio 
muito  bem  Thucidides  ,  quando  dizia 
que  aquclle  feria  famofo,  e  grande  que 
ccrrcfíe  apôs  aquillo  que  andava  mais 
perto  da  inveja ;  entendendo  que  necef» 
fariamente  havia  ella  de  andar  apôs 
a  virtude,  que  he  omefmo  que  Plutar- 
co aflírma.  Defta  gloria  eram  os  an- 
tigos Gregos  tão  amigos  ,  que  o  mor 
galardão,  que  davam  aos  feus  famofos, 
eram  eftatuas  ,   que   fe  punham  em  lu- 


£ra- 


XXX  Epistola 

gares  públicos  pcra  memoria.  E  aflí 
cuítumavam  a  dar  a  feiís  novéis  cfcn- 
dos  brancos  ,  pêra  que  fazendo  faça- 
nhas tão  notáveis  ^  que  mereceíTem  fi- 
car em  memoria  ^  as  pudeíTem  pintar 
nelles  ,  pcra  com  ilTo  os  obrigarem  a 
fazerem  feitos  dignos  de  ferem  por  el- 
]es  eternizados.  Ifto  fignificou  Virgiíio 
no  quarto  livro  de  fna  yEneida  fallan- 
dô  de  Heleno,  dizendo  que  morreo  na 
guerra  com  feu  efcudo  branco  fem  glo- 
ria ;  porque  o  mataram  tao  moço ,  que 
não  teve  tempo  de  fazer  coiifa  digna 
de  fe  pintar  nelle.  E  efte  tão  gloriofo 
coftume  guardaram  aqueiles  famofos 
Principes  D.  Reimão  de  S.  Gil  de  Pro- 
ença ,  D.  Reimão  de  Tolofa ,  e  Dom 
Henrique  feu  fobrinho ,  de  quem  Vossa 
Macestade  direitamente  defcende.  Que 
fahindo  juntos  pelo  Mundo  a  ganhar  fa- 
ma j  levaram  os  efcudos  brancos  ,  e 
com  elles  chegaram  ao  Reyno  de  Caf- 
tella  5  e  ajudaram  a  ElRey  D.  Affonfo 
o  Sexto  contra  os  Mouros,  e  pelos  ga- 
lardoar os  cafou  com  três  filhas.  E  def- 

tas 


Epistola  xxxi 

tns   coube  em   íbrte  a  D.  Henrique  o 
Icnhorio  de  Portugal ,  que  feu  filho  Dom 
Atfonío  Henriques   tanto  dilatou.    Efte 
valerofo  Príncipe   depois    daquella   tão 
famofa ,  e  niilagroía  vitoria  do  Campo 
de  Ourique  ,    em  que  venceo  os  finco 
Reys  Mouros ,   logo  pintou  em  leu  ef- 
cudo,  que  ainda  era  branco*,  aquelle  fi- 
nal de  noíTa  Redempção ,  que  nofíb  Se- 
nhor   por   muito    particular   mimo  ,  e 
mercê  lhe  quiz  moílrar  no  ceo  por  lhe 
dar  efperanças  da  vitoria.  Eftas  armas, 
por  ferem  tão  gioriofamente  ganhadas, 
deixou   por  herança   aos  Reys  de  Por- 
tugal, como  Vossa  Magestade  as  tem, 
Eíla  gloria  das  elíatuas ,  e  dos  efcudos 
brancas   paíTáram   depois   os  Áthenien- 
fes    as  efcrituras  ,   por   verem  que   as 
imagens  ,   e  pinturas   eram   mudas  ,  e 
não   podiam   recitar  feus  feitos.    Daqui 
fe  eílenderam  aos  Romanos,  e  a  todas 
as  mais  nações  do  Mundo,  tão  defejo- 
fas  todas  de  huma  perpétua  fama,  que 
lhe  não  fica  coufa  ,   que  não  feja   logo 
por  muitos,  e  vários  modos  efcrita.  Só 

a  ef- 


xxxii  Epistola 

a  efta  noíTa  nação  Portngueza  faluoii  ef- 
ta  gloria ,  como  fe  fora  menos  merece- 
dora delia  5  de  que  nós  mefmos  temos 
a  culpa ,  parecendo-nos  que  fó  o  obrar 
feitos  illuítres  ,  e  infignes  nos  bafta  ;  não 
vendo  que  efta  gloria  em  cada  hum  fe- 
paffa  5  e  que  eftoutra  vive  em  todos 
eternamente ;  e  que  allí  ficam  fendo  fuás 
obras  mortas ,  como  o  eftavam  muitas , 
e  mui  dignas  de  grandes  efcrituras, 
que  nefte  Oriente  paíTáram  y  que  em 
toda  a  outra  nação  haviam  de  andar 
em  mil  volumes  porefpantofas  ao  Mun- 
do. Efta  perda  ,  que  tanto  nos  deve 
envergonhar,  quiz  Vossa  Magestade  re- 
mediar com  me  mandar  profeguiíFe  a 
Hiftoria  da  índia ,  começando  donde 
João  de  Barros  acabou,  pêra  que  fahif- 
fem  á  luz  os  feitos,  que  eftes  vaífallos 
Portuguezes  tem  obrado  neftes  Eftados. 
E  tanta  ventagem  faz  efta  mercê  a  to- 
das as  que  fez  a  todos ,  depois  que  her- 
dou efla  Coroa  de  Portugal  ,  quanto 
vai  da  vida  á  morte,  e  do  que  fempre 
dura  ao  que  logo  fe  acaba.    Porque  os 

ju- 


Epistola  xxxiii 

juros  ,  as  fortalezas  ,  as  commendas, 
as  tenças  ,  e  tudo  mais  de  que  encheo 
todos  os  Porrjguezes  aíli  deíTes  Rey- 
nos  ,  como  deftes  Eftados ,  coufas  fo- 
ram que  acabaram  já  em  muitos  ,  e 
nao  tardará  muito  que  o  faça  em  os 
mais.  Mas  ter  Vossa  Magestade  tanta 
lembrança  de  todos  ,  que  até  os  que 
acabaram  5  já  ha  tantos  annos,  quiz  que 
participaíTem  da  grandeza  de  fuás  mer- 
cês 5  mandando-me  que  lhe  traga  feus 
feitos  á  luz  ,  coufa  foi  em  que  parece 
quiz  imitar  a  Deos  ,  que  he  em  refuf- 
citar  mortos  pêra  tornarem  a  viver  em 
fama  outra  vida ,  que  nunca  fe  acabará 
cm  quanto  durar  o  Mundo.  E  nifto 
quiz  V^ossA  Magestade  também  reme- 
diar o  defcuido  Portuguez  tanto  pêra 
cftranhar  ,  que  as  Décadas  de  João  de 
Barros  noíTo  natural  (que  afíi  por  fua 
muita  erudição  ,  como  pelos  grandes 
feitos  que  de  feus  naturaes  efcreveo , 
são  dignas  de  muita  eítima  )  aílí  foram 
eftimadas  de  nós ,  que  não  houve  mais 
que  a  primeira  imprefsão  ,  que  o  tem- 
Couto,  Tom,L  P.I.  *'*^*  po 


xxxiv  Epistola 

po  tem  tão  confumida  ,  que  não  fei  íe  i 
ha  em  Portugal  dez  volumes ,  e  na  ín- 
dia hum  fó.  O  que  não  he  cm  Itália, 
onde  andam  traduzidas  por  Affonfo 
Ulhoa  ,  e  dirigidas  a  Guilhermo  Gon- 
zaga terceiro  Duque  de  Mantua.  E  fo- 
ram tão  cllimadas  delie  ,  e  o  são  hoje 
de  todos  os  Grandes  y  que  as  trazem  ás 
cabeceiras  das  camas ,  como  Alexandre 
trazia  a  Iliada  de  Homero.  E  certo , 
que  vendo  tamanho  efquecimento ,  pu- 
déramos cuidar  que  por  algum  occulto 
juizo  de  Deos  não  merecemos  andar 
na  memoria  dos  homens,  não  negando, 
que  o  mefmo  Senlior  nos  tem  feito 
muito  particulares  mercês  nas  muitas , 
e  raras  vitorias  ,  que  dos  inimigos  de 
fua  Santa  Fé  cada  dia  alcançamos ,  co- 
mo pelo  decurfo  da  hiftoria  íeverá.  Fui 
ainda  continuando  por  Décadas  por  fe- 
guir  a  João  de  Barros ,  como  Vossa 
Magestade  me  mandou.  E  porque  elle 
acabou  com  a  morte  do  Governador 
D.  Henrique  de  Menezes ,  que  na  go- 
vernança da  índia  fuccedeo  ao  Conde 

Al' 


Epistola  xxxv 

Almirante ,  comecei  com  a  fuccefsão  de 
PeroMafcarenhas,  e  differenças  que  te- 
ve com  Lopo  Vaz  de  Sampaio  ,  que 
nefta  Década  fe  verão.  E  tenho  aca- 
badas féis  Décadas ,  as  três  cumprindo 
o  tempo  de  28.  annos  y  e  nove  Gover- 
nadores. Pêro  Mafcarenhas  ;  e  Lopo 
Vaz  de  Sampaio,  que  conto  por  hum, 
por  governarem  ambos  juntos  ,  e  de 
Nuno  da  Cunha ,  D.  Garcia  de  Noro- 
nha ,  D.  Eílevão  da  Gama  ,  Martim 
AfFonfo  de  Soufa  ,  D.  João  de  Caítro , 
Garcia  de  Sá,  Jorge  Cabral,  e  D.  Af- 
fonfo  de  Noronha.  As  outras  três  Dé- 
cadas começam  no  dia  que  Vossa  Ma- 
GESTADE  foi  jurado  por  Rey  neíles  Efta- 
dos  j  c  a  primeira  contém  o  tempo  de 
três  Governadores,  fc.  Fernão  Teles, 
D.  Francifco  Mafcarenhas ,  e  D.  Duar- 
te de  Menezes.  Eftas  tinha  feitas  quan- 
do Vossa  Magestade  me  mandou  ^ornar 
atrás.  O  tempo  que  fica  em  meio  (ten- 
do vida  ,  e  favor  de  Vossa  Magestade) 
trabalharei  por  efcrever.  Efte  volume, 
que   contém    em  11  a   quarta  Década, 

***  ii  oí- 


XXXVI  Epístola 

ofFereço  humilmente  aos  pés  de  Vossa 
Magestade.  E  fó  com  pôr  os  olhos  nel- 
le  haverei  por  muito  bem  empregadas 
todas  as  defpezas ,  c  trabalhos  de  tan- 
tos annos  quantos  gaftei ,  e  defpendi  em 
ajuntar  coufas  tão  efquecidas.  Ahi  verá 
Vossa  Majestade  as  muito  grandes ,  e 
admiráveis  façanhas  feitas  por  aquelies 
antigos  Governadores  ,  que  com  haver 
tão  poucos  annos  que  foram,  parecem 
coufas  fonhadas ,  aíli  pelo  efquecimcnto 
em  que  eftavam  ,  como  pela  mudança 
que  o  tempo  tem  feito  em  tudo.  E  he 
bem  faiba  Vossa  Magestade  a  caufa  del- 
ias, que  verá  pelo  decurfo  da  hiftoria. 
E  efta  era  a  razão ,  porque  Demétrio 
Falereo  aconfelhava  a  ElRey  Ptolomeu 
que  fe  occupaíTe  em  ler  livros ,  porque 
nelles  achavam  os  Reys  coufas  ,  que 
ninguém  Ihesoufava  dizer  peílbalmente. 
Pelo  decurfo  deftas  Décadas  verá  Vossa 
Magestade  nos  raros ,  e  efpancofos  fei- 
tos ,  que  eíles  feus  vaífallos  tem  feito, 
ecada  dia  fazem,  com  quanta  mais  ra- 
zão pôde  dizer  por  elles  o  que  dizia 

Pir- 


Epistola  xxxvii 

Pirro  ,  qne  fe  tivera  os  Romanos  por 
foldados  5  que  facilmente  fora  fenhor 
do  Mundo ,  ou  elles  fe  o  tiveram  a  elle 
por  Capitão.  E  pois  nós  temos  em 
Vossa  Magf.stade  outro  Pirro  ,  e  elle 
neftes  feus  vaiTallos  Portuguezes  outros 
Romanos  ;  mande-os ,  porque  elles  lhe 
levarão  fuás  columnas  mais  adiante ,  e 
polias-  hao  onde  Semiramis ,  e  Alexandre 
não  chegaram.  E  elles  com  a  efpada , 
e  eu  com  a  penna  moftraremos  ao  Mun- 
do,  queaíli  como  em  Vossa  Magestade 
fe  acha  a  ventura  de  Cefar^  a  prudên- 
cia de  Fábio  ,  o  esforço  de  Scipiao; 
aííl  lhe  não  falta  a  humanidade,  e  cle- 
mência de  Filippo  pêra  com  os  feus, 
com  o  que  romperão  com  hum  animo 
fcguro  por  todos  os  perigos  da  vida, 
ate  arvorarem  as  Reaes  bandeiras  da  mi- 
licia  de  Chrifto  ,  e  as  porem  nos  mais 
altos  coruchéos  da  nefanda  cafa  de  Ma- 
famede ;  pêra  que  no  lugar  de  fuás  tor- 
pezas ,  e  abominações  ,  offereçam  ao  Al- 
tiílimo  Deos  muitos  facrificios  de  lou- 
vor, com  que  o  nome  de  Vossa  Mages- 

TA' 


XXXVIII         Epistola 

TADE  fique  muito  allima  de  todos  os 
que  celebra  a  Fama.  Defta  Cidade  de 
Goa  a  vinte  de  Novembro  de  15' 9  7. 
annos. 


Diogo  de  Couto. 


IN- 


índice 

DOS  capítulos,  que  se  contém 

NESTA   PARTE    I. 

DA    DÉCADA    IV. 

LIVRO    I. 

CAP.  I.  De  como  por  morte  do  Go- 
vernador Z).  Henrique  de  Menezes 
fuccedeo  na  governança  da  índia  Ve- 
ro Mafcarenhas ,  que  eftava  por  Capitão 
de  Malaca  :  e  do  modo  por  que  Affonfo 
Mexia  Veador  da  f aze  tida  ahrio  a  ter- 
ceira fuccefsão  ,  em  que  fuccedeo  Lopo 
Vaz  de  Sampaio,  Pag.  r. 

CAP.  II.  T>e  como  Jlffonfo  Mexia  entregou 
a  Índia  a  Lopo  Vaz  de  Sampaio  :  e  de 
como  o  Governador  fe  partio  pêra  Goa  : 
e  da  grande  vitoria  que  houve  de  huma 
Armada  do  Qamory  no  rio  de  Bacanor,  7. 

CAP.  III.  Do  que  o  Governador  pajjou  em 
Goa  com  Francifco  Deça  ,  Capitão  da- 
quella  Cidade ,  fohre  o  não  querer  rece- 
ber nella  :  e  de  alguns  Capitães  que  def- 
pachou  pêra  fora  :  e  de  como  o  Governa- 
dor partio  pêra  Ormuz,  18. 

CAP  IV.  Do  que  aconteceo  aEitor  da  Sil- 
veira no  eftreito  de  Meca:  e  de  como  foi 
ter  a  Maçudy  e  mandou  bufe  ar  D,  Ro- 

dri- 


Índice 

di'igo  de  Lima  ao  Prefle  João :  e  do  que 
lhe  fuccedeo  na  'viagem  de  Ormuz.     24, 

CAP.  V.  Do  que  aconteceo  a  Eitor  da  Sil~ 
veira  na  viaíiem  até  Onnuz :  e  de  como 
o  Governador  recebeo  o  Embaixador  do 
V refle  João.  31. 

CAP.  VI.  De  como  Ajfonfo  Mexia  mandou 
a  Malaca  chamar  o  Governador  Pêro 
Mafcarenhas  :  e  do  que  e l/e  fez  depois 
que  foube  as  novas  :  e  do  que  aconteceo 
na  jornada  a  Martim  Ajfonfo  fufarte , 
e  a  Francifco  de  Sd,  37. 

CAP.  VII.  De  como  Eitor  da  Silveira  -par- 
tio  de  Ormuz  a  efperar  as  nãos  de  Me- 
ca \  e  de  como  Melique  Az  Capitão  de 
Dio  tratou  de  dar  aquella  fortaleza  aos 
Portuguezes.  Do  fundamento  daquella 
Ilha  ,  e  do  tempo  em  que  os  Mouros  con- 
quifldram  a  que  lie  Reyno  :  e  do  que  paffou 
Eitor  da  S ih  eira  com  Melique  Az.  42. 

CAP.  VIII.  De  como  Hag  Mamude  tirou 
a  Melique  Saca  de  entregar  a  fort  ale- 
za  a  Eitor  da  Silveira  ,  e  elle  fe  foi  pe- 

■'^'ra  Chaul  fem  concluir  em  nada  :  e  de 
como  o  Hag  Alamude  lhe  tomou  a  fort  a- 

-\'leza  por  traição^  e  a  entregou  aElRey 
de  Camhaya.  $2, 

CAP.  IX.  Da  Armada  que  efte  anno  de 
vinte  e  féis  par  tio  do  Reyno :  e  das  no- 
vas fuccefsoes  que  EW^ey  mandou  :   e  de 

CO- 


DOS   C  APITU  LOS 

como  Ajfonfo  Mexia  Veador  da  fazenda 
abria  a  primeira  fuccefião ,  em  que  fuc^ 

,    cede  o  Lopo  Vaz  de  Sampaio,  6i. 

CAP.  X.  Do  que  fez  o  Governador  em  Co- 
chim  ;  e  das  nãos  que  partiram  pêra  o 
B^eyno  ;  e  de  como  ElRey  D.  João  rece- 
beo  o  Embaixador  Abexi,  71. 

LIVRO    IL 

CAP.  I.  T)  a  origem  ^  e  princípio  doRey^ 
no  ,  e  Reys  de  Malaca  :  e  do  tempo 
em  que  receberam  a  lei  de  Mafamede : 
e  do  fundamento  ,  e  defcripçao  da  Ilha 
de  Bintão,  Pag.  80. 

CAP.  II.  De  como  Pêro  Mafcarenhas  par- 
tio  pêra  Bifttao  ,  e  de  como  desbaratou 
huma  Armada  d''ElRey  de  Fão  :  e  do 
grande  trabalho  que  os  noffos  tiveram, 
na  entrada  do  rio,  Zj, 

CAP.  III.  De  como  os  inimJgos  commettê- 
raWu  o  navio  de  Fernão  Serrão ,  e  do  rif- 
CO  em  que  fe  vio :  e  de  coyiio  o  Governa- 
dor o  foccorreo  ,  e  commetteo  a  Cidade 
de  Bintão ,  e  a  tomou»  ^2. 

CAP.  IV.  Do  alvoroço  que  havia  na  gen- 
te da  índia  fobre  o  governo  de  Lopo  Vaz 
de  Sampaio  :  e  de  como  fe  elle  fez  preftes 
pêra  ir  bufe  ar  as  galés  dos  Rumes,   107., 

CAP.  V.  Do  que   aconteceo   a  Pêro  Maf 

ca- 


Índice 

carenhãs  até  chegar  a  Cochim :  e  de  co- 
mo Aífonfo  Mexia  lhe  defendeo  a  defem- 
harcação :  e  do  que  pajjou  em  Cananor , 
e  de  como  fe  partio  em  hum  catúr  pêra 
Goa,  I  IO. 

CAP.  VI.  Do  que  fez  Lopo  Vaz  de  Sam^ 
paio  tanto  que  teve  novas  de  Pêro  Mas- 
carenhas :  e  de  como  o  mandou  efperar 
na  barra  ,  e  o  prenderam  tm  ferros ,  e 
o  levaram  a  Cananor,  117. 

CAP.  VII.  Do  que  Chrifiovão  de  Sou f a  Ca- 
pitão de  Chaul  efcreveo  a  Lopo  Vaz  de 
Sampaio  fohre  as  coufas  de  Pêro  Maf- 
care7íhas  :  e  de  como  chegou  a  Goa  pre- 
zo Rax  Xarrafo  Guazil  de  Ormuz  :  e 
dos  requerimentos  que  Pêro  Mafcare- 
nhãs  mandou  fazer  a  Lopo  Vaz  de  Sam- 
paio.  125'. 

CAP.  VIII.  Das  revoltas  ,  que  em  Goa 
houve  fobre  as  coufas  dos  dous  Governa- 
dores :  e  de  como  Eitor  da  Silveira ,  e 
Diogo  da  Silveira  fe  lançaram  da  parte 
de  Pêro  Mafcarenhas,  1^3. 

CAP.  IX.  Do  protefto  ,  que  Pêro  Mafca- 
renhas mandou  aos  Vereadores  ,  e  Fidal- 
gos de  Goa :  e  de  como  os  aprefentdram 
a  Lopo  Vaz  de  Sampaio,  139. 

CAP.  X.  Do  que  Lopo  Vaz  refpondeo  aos 
proteftos  de  Pêro  Mafcarenhas,         147. 

CAP.  XI.  De   como   os   do  bando  de  Pêro 

Maf 


DOS  Capítulos 

•  Mafc  are  nhãs  trataram  de  prender  Lopo 
Vaz ,  e  das  uniões  que  fohre  ifjo  howve  : 
e  de  como  Lopo  Vaz  os  foi  prender  a 
todos,  iSS* 

LIVRO    III. 

CAP.  L  Do  que  aconteceo  na  jornada 
de  Francifco  de  Sd  ,  v\  da  defcripçao 
da  Ilha  de  Jaoa ,  e  de  qual  he  a  maior , 
e  menor  de  Marco  Polo :  e  de  como  Fran- 
cifco de  Mello  rendeo  huma  não  de  Tur- 
cos na  barra  de  Achem,  Pag.  163. 

CAP.  II.  T>e  como  D,  Garcia  Henriques 
fez  pazes  com  ElRey  de  Tidore  ,  e  a 
razão  porque  logo  as  quebrou  ,  e  de  co- 
mo faleceo  a  que  lie  Rey  :  e  das  fufpeitas 
que  houve  fer  ajudado  a  iffo  com  peço- 
nha que  fe  lhe  deo,  173. 

CAP.  III.  Do  que  aconteceo  a  D.  Jorge 
de  Menezes  na  jornada  de  Maluco  ,  e 
de  como  defcubrio  as  Ilhas  dos  Papuas: 
e  da  Armada  que  partio  de  Cafiella  pê- 
ra aquellas  Ilhas  de  Maluco ,  e  da  der- 
rota que  levou  até  chegar  a  ellas,    178. 

CAP.  IV.  De  como  D,  Jorge  de  Menezes 
chegou  a  Maluco  ,  e  de  como  fez  tregoas 
com  os  Cajielhanos  ,  que  fe  quebraram 
logo  :  e  de  como  faleceo  ElRey  Bayano  , 
e  fuccedeo  feu  Irmão  Ayalo,    E  de  como 

El- 


Índice 

ElRey  de  Lobu  matou  os  Portuguezes 
que  eftavam  em  feu  porto  ,  e  tomou  hu- 
ma  galé  por  engano,  192. 

CAP,  V.  De  como  D.  Simão  de  Menezes 
foltou  Fero  Mafcarenhas  :  e  dos  requeri- 
mentos que  mandou  fazer  a  Lopo  Vaz : 
e  da  Armada  que  efie  anno  de  vinte  e 
fete  partia  de  Portugal :  e  de  como  duas 
nãos  delia  fi  perderam  na  Ilha  de  S. 
'Lourenço,  199. 

CAP.  VI.  Da  Armada  ,  que  o  Turco  So- 
leimão  mandava  contra  os  Portuguezes  : 
e  das  dijfcrenças  que  houve  entre  os  Ca- 
pitães :  e  de  como  mataram  o  Generxil  ^ 
e  a  Armada  fe  desfez,  208. 

CAP.  VII.  De  hum  ajjinado ,  que  António 
de  Miranda  de  Azevedo  deo  a  Pêro  Maf- 
carenhas de  lhe  obedecer  :  e  do  que  af- 
fentãram  o  mefmo  António  de  Miranda , 
e  Chriftovão  de  Soufa  fobre  as  coufas 
dantre  os  Governadores,  218. 

CAP.  VIII.  De  como  fe  rnoflrou  a  pauta 
a  Lopo  Vaz ,  e  de  como  jurou  de  a  cum- 
prir ,  e  fe  partio  pêra  Cochim  ,  aojíde  fe 
havia  de  julgar  a  contenda  :  e  do  que 
pa/Jòu  em  Cananor  com  Pêro  Mafcare- 
nhas, 227. 

CAP..  IX.  De  algumas  de  [avencas  ,  que 
houve  em  Cochim.  entre  os  Governadores  : 
e  de  como  fe  accrefcentáram  mais  dous 

Jui- 


DOS  Capítulos 

Juizes  por  -parte   de  Lopo  Vaz  ,    e  do 
que  mais  pajjou.  235'. 

LIVRO     IV. 

CAP.  I.  Dos  Juizes  que  fe  accrefcen- 
tarara  de  novo  :    e   de  como  Je  deo  a 
fentença  por  Lopo  Vaz  de  Sampaio  :   e 
de  como  Vero  Mafcarenhas  Je  embarcou 
pêra  o  Reyno,  Pag.  241. 

CAP.  II.  Do  que  pajjou  D.  Jorge  Capi^ 
tão  de  Maluco  com  D.  Garcia  Hciiri- 
que  fobre  certos  apontamentos  que  leva- 
va  ^  e  de  como  mandou  a  Malaca  pe- 
dir foccorro  ,  e  prendeo  D,  Garcia  em. 
ferros,  iço. 

CAP.  III.  De  como  os  de  Z).  Garcia  .0 
induziram  que  prenàejje  D,  Jorge  :  e 
de  como  o  fez  ,  e  fe  metteo  na  forta- 
leza, 2^7. 

CAP.  IV.  Do  que  fizeram  os  amigos   de 
Z).  Jorge  fabendo  fua  prizao  :  e  das  con- 
fias que  fiuc cederam  até  ofioltarem  :  e  do 
que   aconteceo   aos  que  D,  Jorge  tinha 
mandado  a  Borne  o,  263. 

CAP.  V.  Das  cmfias  em  que  o  Governador 
provéo ,  em  qtianto  efteve  em  Cochim :  e 
das  Armadas  ,  que  defipachou  pêra  fiara : 
e  da  grande  vitoria  ,  que  Z).  João  De  ca 
houve  de  huma  Armada  de  Calecut  :  c 

de 


Índice 

de  como  Chrijlovão  de  Mendoça  foi  etí' 
trar  na  fortaleza  de  Ormuz ,  e  da  mor- 
te do  Guazil  Rax  Hamede,  272. 

CAP.  VI.  Do  que  acontcceo  a  António  de 
Miranda  no  eftreito  do  mar  Roxo ,  e  das 
prezas  que  fez,  278. 

CAP.  VII.  De  como  Simão  de  Soufa  Gal- 
vão ,  que  hia  pêra  Maluco  ,  foi  com  tem- 
po fortuito  tomar  a  barra  do  Achem  \  e 
da  grande ,  e  efpa^itofa  batalha  que  te- 
've  com  huma  Armada  fua  j  em  que  foi 
morto  ^  e  a  galé  tomada,  282. 

CAP.  VÍII.  De  coyno  Gonçalo  Gomes  de  Aze^ 
vedo  ,  que  hia  pêra  Maluco  ,  chegou  a 
Banda ,  e  do  que  alli  pajfou  com  D,  Gar- 
cia Henriques  :  e  de  como  chegou  a  Tido- 
.  re  Álvaro  de  Sayavedra  Ceron ,  que  par- 
tio  da  nova  Hefpanha  ,  e  do  que  aconte- 
ceo  a  D.  Jorge  com  elle,  292. 

CAP.  IX.  Do  que  aconteceo  a  António  de 
Miranda  ,  que  invernou  em  Ormuz  :  e 
de  como  Diogo  de  Mef quita  foi  cativo 
da  Annada  de  Cambaya ,  e  foi  mettido 
em  huma  bombarda  ,  pêra  que  fe  fizejfè 
Mouro  5  e  da  grande  conflancia  que  te- 
ve :  e  de  como  efla  Armada  pelejou  com 
Henrique  de  Macedo^  e  da  brava  bata- 
lha que  tiveram.  -504. 

CAP.  X.  Do  que  aconteceo  71a  jornada  a 
Martim  Affonfo  de  Mello  Juzar te  :  e  de 

CO- 


DOS  Capítulos 

como  fe  perdeo  na  cojla  de  Bengala  ;  e 
dos  grandes  trabalhos  que  pafjbu  até  fer 
cativo,  3 1  !• 

LIVRO    V. 

CAP.  I.  De  como  ElReyD.  joao  vian- 
dou por  Governador  da  Índia  Nuno 
da  Cunha  :  e  do  que  aconteceo  na  jor- 
nada, Pag.  325'. 

CAP.  II.  Tio  que  fuccedeo   ás  mais  nãos 

-  da  companhia  do  Governador  Nuno  da 
Cunha :  e  de  como  elle  fe  perdeo  na  Ilha 
de  S,  Lourenço  :  e  do  que  aconteceo  d 
gente  da  companhia  de  Manoel  de  La- 
cerda, 333. 

CAP.  III.  De  huma  Armada  nojfa  ,  que 
par  tio  de  Cochim ,  e  fe  perdeo  no  rio  de 
Chatud  :  e  de  como  o  Governador  Lopo 
Vaz  de  Sampaio  partio  pêra  Cochim ,  e 
desbaratou  huma  grande  Armada  do  Ca- 
morim,  3  3  ç), 

CAP.  IV.  De  como  o  Governador  Lopo  Va^ 
de  Sampaio  defiruio  o  Arei  de  Porca  : 
e  da  Armada  que  do  Reyno  partio  :  e 
do  que  lhes  aconteceo  7ia  jornada  até 
chegar  a  Cochim,  348. 

CAP.  V.  De  como  o  Governador  Lopo  Vaz 
de  Sampaio  foi  avifado  de  huma  Arma- 
da de  Cambaya  que  andava  fora  :   e  de 


Índice  dos  Capítulos 

como  a  foi  hufcar ,  e  pelejou  com  ella  ,  e 
a  desbaratou  de  todo.  3  5"  2. 

CAP.  VI.  Da  guerra  que  Heitor  da  Sil- 
veira fez  na  cojla  de  Cambaya  :  e  de 
como  dejiruio  a  Cidade  de  Baçaim  ,  e 
as  Villas  de  Tanà  ,  Bombaim ,  e  outras  : 
e  do  que  o  Governador  Lopo  Vaz  de 
Sampaio  fez  em  Goa  ,  e  do  que  acoute- 
ceo  no  Malavar,  362. 

CAP.  VII.  De  como  Qhrijlovâo  de  Mendo- 
ça  Capitão  de  Ormuz  mandou  António 
Tenreyro  por  terra  ao  Reyno  com  as  nO" 
vas  das  galés ,  e  da  jornada  que  efte  ho- 
mem fez  pelo  deferto  de  Arábia  :  e  de 
como  chegou  ao  Reyno,  e  ElRey  mandou 
Manoel  de  Macedo  a  Ormuz  a  prender 
Rax  Xarrafo,  370. 

CAP.  VIII.  Das  coufas  que  aconteceram 
em  Malaca  até  chegar  Garcia  de  Sd: 
dos  ardis  de  que  o  Achem  ufou  com  Fe- 
ro de  Faria  ,  por  ver  fe  podia  colher  em 
feu  porto  algum  navio :  e  de  outras  cou- 
fas que  mais  paffdram,  378. 

CAP.  IX.  De  como  ElRey  do  Achem  to- 
mou por  engano  hum  galeão ,  de  que  era 
Capitão  Manoel  Pacheco  :  e  de  como  fo^ 
ram  defcubertos  huns  tratos  que  Sinaya 
de  Raya  Chely  de  Malaca  trazia  com  ê 
do  Achem  y  e  de  como  foi  morto,        jSj. 

DE- 


_...™..- .-™. } 

DÉCADA  (QUARTA. 
LIVRO    I. 

Dos  Feitos  5  qiie  os  Portuguezes  fizeram 
no  defcubrimento  ,   e  conquifta  dos 
mares,  e  terras  do  Oriente ,  em 
quanto  governaram  a  índia  Lo- 
po Vaz  de  Sampaio ,  e  par- 
te de  Nuno  da  Cunha. 


CAPITULO     I. 

De  como  por  morte  do  Governador  Dom 
Henrique  de  Menezes  fuccedeo  na  gover^ 
nança  da  Índia  Fero  Mafcarenhas ,  que  ef- 
tava  por  Capitão  de  Malaca  :  e  do  jnodo 
for  que  Affonfo  Mexia  Veador  da  fazenda 
a  brio  a  terceira  fuccefsao  ^  em  que  fuccedeo 
Lopo  Vaz  de  Sampaio, 


Alecido  o  Governador  Dom 
Henrique  de  Menezes  na  for- 
taleza de  Cananor ,  no  fim  de 
Janeiro  defteanno  de  15' 26,  em 
que    com  o  favor  Divino  en- 
tramos ,    como  no  fim  da  terceira  Década 
Couto.  Tom,  L  P.  L  A  de 


2    ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

de  João  de  Barros  fe  conta,  eílando  feu  cor- 
po depofitado  na  Capella  da  Igreja ,  lendo 
prefentes  D.  Simão  de  Menezes  Capitão  de 
Cananor ,  AíFonfo  Mexia  Veador  da  fazen- 
da ,  Vicente  Pegado  Secretario  do  Eftado , 
o  Licenciado  João  deOíouro  Ouvidor  Ce- 
rai 3    D.  Vafco    Dcça  ,   Ruy  Vaz  Pereira , 
Dom  AíFonfo   de  Alenezcs  tiiho  do  Conde 
de  Cantanhede  ,  Manoel  de  Brito  ,  António 
da  Silva  de  Campo  maior ,  Lopo  de  Mef- 
quita  ,  e  Diogo  de  Mefquita  ambos  irmãos , 
Djogo   da  Silveira  ,    Manoel  de  Macedo , 
António   de  Miranda  de  Azevedo  ,   Dom 
Vafco  de  Lima,  Martím  AíFonfo  de  Mello 
Jufarte ,  D.Jorge  de  Menezes,  D.  António 
da  Silveira,  D.  Jorge  de  Caílro,  Francifco 
de  Ataíde ,  e  outros  Fidalgos  ,  e  cavalleiros. 
E  prefentes  todos  ,   abrio  o  Veador  da  fa- 
zenda hum  cofre ,  em  que  eftavam  guarda- 
das as  fuccefsoes  da  governança  da  índia  , 
que  eram  três ,  que  trouxe  comíigo  o  Con- 
de Almirante  D.  Vafco   da  Gama    quando 
veio  porVifo-Rey,  que  foram  as  primeiras 
que  á  índia  vieram  ;  porque  antes  delle  não 
havia  eíta  ordem  ,  nem  nós  pudemos  faber 
a  queElReyD.  Manoel  tinha  dado,  fendo 
cafo  que  faleceíFe  o  Governador  da  índia ; 
porque  nem  João  de  Barros  ,  nem  Damião 
de  Góes  o  declaram.  Aberto  o  cofre ,  tirou 
o  Veador  da  fazenda  delle  a  fegunda  fuc- 

cei- 


Década  IV.  Liv.  L  Ca?.  L      3 

Cefsâo  ,  porque  a  primeira  fora  aberta  por 
morte  do  meímo  Conde  Almirante  ,  na  qual 
tinha  fuccedido  D.  Henrique  de  Menezes  , 
cujo  corpo  eílava  prefente  j  e  dando  a  íuc- 
ceísão  ao  Secretario ,  elle  a  amoftrou  a  to- 
dos pêra  que  viíTem  que  eftava  ferrada  ,  e 
fellada  com  o  lêllo  das  armas  Reaes  fem  fe 
nella  bolir  ,  nem  tocar ,  e  a  deo  ao  Capi- 
tão, e  ao  Ouvidor  geral  pêra  que  a  exami- 
naíTem  bem  ,  e  elles  a  tomaram  ao  Secreta- 
rio que  a  abrio  ,  e  achou- fe  nella  Pêro  Mas- 
carenhas 5  que  eílava  por  Capitão  de  Mala- 
ca. Eíie  Alvará  de  fucceísao  moftrava  fer 
feito  em  Évora  aos  10.  dias  de  Fevereiro 
de  1524.  Nomeado  Fero  Mafcarenhas  por 
Governador  ,  ficaram  todos  embaraçados , 
porque  não  podia  vir  de  Malaca  fenao  dalli 
a  quatorze  mezes.  E  porque  fe  não  pude- 
ram logo  determinar  no  que  fe  devia  fazer , 
enterraram  o  corpo  do  Governador  D.  Hen- 
rique de  Menezes.  Ao  outro  dia  fe  ajunta- 
ram todos  em  cafa  do  Capitão  ,  onde  o  Vea- 
dor  da  fazenda  lhes  fez  hum.a  breve  falia , 
em  que  lhes  reprefentava  as  neccílidades  cm 
que  o  Eílado  eftava  ;  aíli  pelas  novas  que  ha- 
via de  galés  de  Rumes ,  como  pela  guerra 
que  eílava  aberta  com  Cambaya  ,  e  com  o 
Camorim  ;  pêra  o  que  era  neceíTario  tomar- 
fe  determinação  fobre  aquelle  negocio  do 
Governador,  pois  Fero  Mafcarenhas  eítava 

A  ii  tão 


4    ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

tão  longe.  Sobre  iílo  fe  moveram  grandes 
alterações ,  fendo  quaíl  todos  de  parecer  que 
fe  efperaíTe  por  Fero  Mafcarenhas  ,  e  que 
entretanto  fe  ordenaíTem  regentes ,  que  go- 
vernaíTem  em  feu  lugar.  Eftando  a  coufa  af- 
íi  baralhada  em  porfias  ,  diíTe  o  Licenciado 
João  de  Ofouro  ,  que  fe  fe  pudera  faber  qual 
era  o  Fidalgo  da  terceira  fuccefsao  ,  que  ef- 
fe  fe  poderia  eleger  pêra  aquellc  negocio, 
Affonfo  Mexia  deitando  a  orelha  áquelle  pon- 
to difle  :  Que  mão  feria  ,  Senhores ,  abrir- 
fe  a  terceira  fuccefsao  ^  e  entregar  fe  efe  go- 
verno ao  que  Jtella  eftiver ,  jurando  primei- 
ro todos  os  .que  aqui  eftam ,  que  qualquer 
que  fe  achar  nella  goveritará^  a  Índia  até 
'vir  Pêro  Mafcarenhas ,  a  quem  a  tornará  a 
entregar ;  e  que  tanto  que  elle  chegaffe  ,  ne- 
nhum conheceria  mais  outro  Governador  fe- 
ndo a  elle  ?  Não  pareceo  mal  aquillo  a  al- 
guns Fidalgos  ,  que  cuidavam  poderiam  fuc- 
ceder  naquelie  lugar ,  dizendo ,  que  o  me- 
lhor meio ,  que  naquelie  negocio  fe  pudera 
tomar  ,  era  aquelle ;  mas  fó  D.  Vafco  De- 
ça ,  reprovando  aquelle  parecer ,  fallou  mui- 
to alto  ,  dizendo  ,  que  nas  fuccefsoes  da  ín- 
dia fe  não  podia  bulir  fenão  pela  ordem  que 
ElRey  mandava  ,  que  era  por  falecimento 
da  peífoa  que  governaíTe  o  Eftado;  e  que 
Pêro  Mafcarenhas ,  que  fuccederá  per  mor- 
te do  Governador  D.  Hemúque ,  eílava  vivo , 

e  que 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  I.     $ 

C  que  abrindo- fe  outra  fucceísão ,  fe  daria 
matéria  a  grandes  divisões  ;  porque  pela 
ventura  que  o  homem  ,  que  fuccedeíte  na  ou- 
tra via  ,  nao  quereria  depois  entregar  a  ín- 
dia a  Pêro  Mafcarenhas  ,  no  que  forçado 
havia  de  haver  defconcertos  ,  e  bandos ,  por- 
que Pêro  Mafcarenhas  era  hum  Fidalgo  mui- 
to cavalleiro ,  de  grandes  merecimentos ,  e 
muito  aparentado  ,  e  que  das  defavenças  que 
diíTo  fuccedeíTem  ,  todos  os  que  prefentes  ef- 
tavam  haviam  de  dar  conta  a  EIRey.  Pa- 
receo  iílo  tão  bem  a  alguns  que  eftavam  do 
outro  parecer  ,  que  fe  retrataram  ,  e  dilTe- 
ram  ,  que  aquillo  ,  que  D.  Vafco  Deça  tinha 
dito  5  era  o  que  cumpria  ao  ferviço  de  Deos  , 
e  d'EiRey  ,  e  que  elles  eram  do  mcfmo  pa- 
recer. Mas  o  Veador  da  fazenda  como  fi- 
cava então  fendo  a  prim.eira  peíToa  da  ín- 
dia pelos  poderes  de  feu  cargo  ,  diíTe ,  que 
elle  tomava  fobre  íi  aquelle  negocio ,  e  que 
fe  abriria  a  fuccefsão  ,  c  o  que  nella  fe  achaf- 
fe  aíHnaria  hum  auto ,  em  que  fe  obrigaíTe 
a  entregar  a  índia  a  Pêro  Mafcarenhas  ;  e 
que  elle  Veador  da  fazenda  com  todos  os 
Fidalgos  5  e  Officiaes,  que  alli  cílavam,  fariam 
hum  juramento  folemne,  que  Ihefiriam  en- 
tregar a  índia  tanto  que  chega ífe  de  Mala- 
ca. E  logo  o  Ouvidor  geral  deo  juramento 
a  todos ,  que  obedeceriam  a  Pêro  Mafcare- 
nhas tanto  que  viefle ,  e  não  ao  que  gover- 

naf- 


6    ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

naíTe  pela  terceira  fuccefsão  ,  porque  não  ha- 
via de  fer  Governador  mais  que  até  fua  vin- 
da. Difto  tudo  fez  o  Secretario  Vicente  Pe- 
gado hum  auto  ,  em  que  fe  aílináram  todos  , 
e  juntos  na  Igreja  tiraram  a  terceira  fuccef- 
são ,  e  abrindo-a  ,  achou- fe  nella  Lopo  Vaz 
de  Sampaio  ,  que  cílava  por  Capitão  de  Co- 
chim.  Efte  Alvará  moftrava  fer  também  fei- 
to em  Évora  aos  26.  de  Fevereiro  do  anno 
de  I5'24.  dezefeis  dias  depois  do  de  Pêro 
Mafcarenhas  ,  e  logo  alli  o  Veador  da  fa- 
zenda ,  e  todos  os  que  tinham  alTuiado  no 
auto  5  tornaram  a  ratificar  o  paíTado  ,  jurando 
de  novo  de  não  obedecerem  a  Lopo  Vaz 
mais  que  até  á  hora  que  chegaíTe  Pêro  Maf- 
carenhas, a  que  logo  fariam  entregar  a  ín- 
dia. Diílo  tornou  o  Secretario  fazer  outro 
auto ,  em  que  todos  fe  tornaram  a  aííinar , 
que  foi  feito  aos  3.  de  Fevereiro  de  1^26. 
e  logo  íe  embarcaram  todos  pêra  Cochim 
pêra  irem.  entregar  o  governo  a  Lopo  Vaz 
de  Sampaio. 


CA- 


Década  IV.  Liv.  I.  7 

CAPITULO     II. 

De  como  Affonfo  Mexia  entregou  a  índia 

a  Lopo  Vaz  de  Sampaio :  e  de  corno  o 

Governador  fe  par  tio  pêra  Goa  :  e  da 

grande  vitoria  que  houve  de  hu- 

ma  Armada  do  Çamory  no  rio 

de  Bacanor» 

Oucosdias  píizeram  oVeador  da  fazen- 
da 5  e  todos  aquelles  Fidalgos  até  Co- 
chim  5  e  defcmbarcando  em  terra,  fe  ajun- 
taram logo  na  Sé ,  onde  mandaram  chamar 
Lopo  Vaz  de  Sampaio ,  e  o  Veador  da  fa- 
zenda lhe  deo  conta  do  que  eflava  aíTenta- 
do  ,  e  lhe  leo  os  autos ,  e  juramentos  que 
eftavam  feitos  entre  todos  aquelles  Fidalgos  , 
e  Capitães  primeiro  que  fe  abriífe  a  tercei- 
ra fuccefsão  em  que  clle  eílava  ,  notiíican- 
do-lhe  o  modo  de  como  havia  de  ter  o  go- 
verno,  que  era  até  vir  Pêro  Mafcarcnhas  , 
a  quem  todos  haviam  de  obedecer  como 
a  verdadeiro  Governador.  E  acceitando  Lo- 
po Vaz  a  fuccefsáo  por  aquelie  modo  ,  lo- 
go alii  fe  lho.  deo  juramento  em  hum  Mif- 
fal ,  que  tanto  que  Pêro  Mafcarcnhas  vieíTe 
lhe  entregaria  a  governança  ,  e  qWq  ficaria 
depois  como  peíToa  privada  ,  e  debaixo  de 
fua  jurdicao  :  e  de  tudo  ilío  fez  o  Secreta- 
rio  outro  auto   em  que  Lopo  Vaz   fe  alli- 

nou , 


8    ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

liou,  e  com  clle  oVeador  da  fazenda,  Fi- 
dalgos 5  Capirães ,  e  todos  os  Officiaes  da 
juftiça  3  e  fazenda ,  os  quaes  tornaram  a  ju- 
rar de  novo  de  obedecer  a  Pêro  Mafcare- 
nhas  tanto  que  chegaíTe  de  Malaca.  Aca- 
bado efte  auto  ,  foi  logo  Lopo  Vaz  entre- 
gue da  govern-mça  da  índia  ,  dando  a  ome- 
nagem  delia  pela  forma  coftumada  nos  Rey- 
rios  de  Portugal ,  declarando  nella  que  go- 
vernaria até  chegar  Pêro  Mafcarenhas  ,  que 
era  o  legitimo  Governador  ,  a  quem  logo 
a  entregaria.  Daqui  por  diante  começou  Lo- 
po Vaz  de  Sampaio  a  correr  com  fuás  obri- 
gações 5  e  a  primeira  coufa  em  que  proveo 
foi  na  capitania  de  Cochim  ,  quedeo  a  Dom 
Vafco  Deça ,  e  em  defpachar  pêra  Bengala 
RiiyVaz  Pereira  5  a  quem  deo  aquella  via- 
gem 5  que  era  de  muito  proveito.  E  dando 
ordem  a  muitas  coufas  ,  embarcou-fe  com 
muita  preíla  por  fer  avifado  que  no  rio  de 
Bacanor  eílava  huma  grande  Armada  de  Ca- 
lecut, de  que  era  Capitão  CotialeMarcá  Mou- 
ro grande  coiTairo.  Levava  o  Governador 
alguns  gnlcoes ,  de  que  eram  Capitães  Dio- 
go da  Silveira  da  Tereva  ,  D.  Aífonfo  de 
Menezes  ,  D.  Pedro  Manoel ,  Manoel  de 
Brito  ,  Manoel  de  Macedo  ,  António  da  Sil- 
va ,  Diogo  deMcfquita,  Lopo  deMefqui- 
ta  5  a  fora  aIg^.lns  catúres ,  e  navios  de  re- 
mo y   cuja  cópia ,  e  Capitães  não  achámos. 

O 


I 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  II.     9 

O  Governador  hia  embarcado  na  galé  baf- 
tarda ,  de  que  era  Capitão  D.  Vaíco  de  Li- 
ma 5  e  com  toda  eíla  Armada  fe  fez  á  véla  a 
dezefeis  de  Fevereiro  ;  e  tomando  Cananor , 
achou  cartas  de  D.  Jorge  Téllo ,  e  de  Pêro 
de  Faria  ,  que  eílavam  com  dous  galeões  no 
Malavar  ,    em  que  lhe  faziam  a  faber  que 
ficavam  fobre  a  barra  do  rio  Bacanor ,  e  que 
tinham  dentro  encerrada  huma  Armada  do 
Camori  de  mais  de  fetenta  velas  ,    em  que 
havia  mais  de  três  mil  Mouros ,  e  que  efta- 
vam  favorecidos  de  hum  Capitão  d'EIRey 
de  Narilnga  ,  cuja  a  terra  era  ,  que  tinha  der- 
redor  de  vinte  mil  homens.    Tanto  que  o 
Governador  vio  as  cartas  ,    e  que  foube  o 
poder  dos  inimigos  ,  vendo  que  em  toda  a  íua 
Armada  não  haveria  mais  de  fetecentos  ho- 
mens ,  defpedio  hum  catúr  muito  ligeiro  pê- 
ra Goa  com  cartas  a  Chriílovao  de  Soufa , 
e  a  António  da  Silveira  ,  que  lá  eftavam  com 
feus  galeões  ,  pêra  que  logo  fe  foflein  pêra 
elle  ;  e  defpedio  Manoel  de  Brito  no  feu  ga- 
leão 5  pêra  que  fe  foíTe  ajuntar  com  D.  Jor- 
ge 5  e  Pêro  de  Faria  no  rio  de  Bacanor  ,  pê- 
ra que  a  Armada  dos  inimigos  não  pudefle 
fahir  pêra  fora.  Partidos  eíles  navios ,  tomcu 
o  Governador  alguns  mantimentos,  e  agua  , 
e  logo  fe  fez  á  véla.    Coíiale  Capitão  mor 
da  Armada  Malavar  logo  foi  avifado  de  co- 
mo  o  Governador  era  partido   de  Cochim 

em 


IO  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

em  biiíca  dellc  •,  e  não  fe  atrevendo  a  pele- 
jar com    os  galeões  ,    que  eítavam  fobre  a 
barra  ,    determinou  de  o  efperar  em  terra , 
pêra   o  que  mandou    com  muita  brevidade 
fazer  defronte  da  Cidade ,  onde  tinha  a  Ar- 
mada ,  algumas  tranqueiras ,  em  que  aíTeílou 
muita  artilheria  ,   e  no  rio  de  huma,  e  de 
outra  parte  mandou  atravefiar  muitas  eftaca- 
das   de  páos  groíTos  pêra  impedir   a  paíTa- 
gem  aos  ncíTos  navios  ,    deixando-lhe  pelo 
m.eio  hum  canal  tão  eílreito  ,   que  não  pu- 
deíTem  por  elle  entrar  fenão  hum  ,    e  hum 
a  fio  5  pêra  das  tranqueiras  os  m.etterem  no 
fundo ;  e  de  humas  eílacadas  a  outras  man- 
dou atraveíTar  viradores  groíTos  por  de  bai- 
xo da  agua  ,  pêra  que  os  navios  encalhaíTem 
nelles.  O  Governador  foi  feguindo  fua  via- 
gem até  chegar  a  Bacanor ,  onde  furgio ,  e 
foube  daquelles  Capitães  o  modo  de  como 
os  inimigos  eftavam  fortificados,  fazendo-lhes 
a  entrada  duvidofa ;  mas  o  Governador  co- 
mo era  muito  cavalleiro,  e  fora  de  todo  o 
medo ,  fem  embargo  de  todas  as  difficulda- 
des  que  lhe  repreíentavam ,  determinou  de 
entrar  o  rio,  e  pelejar  com  os  inimigos  em 
terra  ,  fem  efperar  pelos  Capitães  que  tinha 
mandado  chamar  a  Goa  ,   e  mandou  logo 
ordenar  em  quatro  batéis  grandes,  e  fortes, 
mantas ,  e  arrombadas  ,  e  em  cada  hum  man- 
dou metter   hum  camelo   de  marca  grande 

pe- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  IL  ii 

pêra  baterem  as  eftancias ;  e  pondo  eftc  ne- 
gocio em  confelho  ,  diíTe  neJJc  a  todos  os 
Capitães  5  que  a  Qlle  lhe  parecia  bem  com- 
mctter  os  inimigos  fem  eíperar  pela  Armada 
de  Goa  ,  porque  não  era  credito  do  eílado 
deixar-fe  eftar  fobre  aquella  barra  fem.  n  en- 
trar 5  e  ir  commetter  os  inimigos  em  fuás  tran- 
queiras 5  porque  haveriam  elles  que  os  recea- 
va ,  que  o  eílado  da  índia  não  fe  havia  de 
fuftentar ,  e  dilatar  fenão  com  a  reputação , 
e  opinião  com  que  fe  ganhou  ,  a  qual  tanto 
que  os  Portuguezes  a  perdeíFem  com  os  inimi- 
gos ,  logo  fe  perderia  tudo ,  e  que  fobre  if- 
to  lhe  podiam  livremente  dizer  o  que  lhes 
parecia.  E  votando  aquelles  Capitães  ,  foram 
todos  de  parecer ,  que  fe  não  arrifcaiTe  o  ef- 
tado  da  índia  em  hum  feito  tão  duvidofo , 
€  em  que  nada  fe  ganhava  ,  antes  fe  perde- 
ria muito  5  acontecendo  hum.  defaílre,  que 
o  tempo  não  fugia  ,  que  os  inimigos  dentro 
os  tinham  feguros  ,  que  fe  efperaífe  pelos 
Capitães  que  tinha  mandado  chamar  a  Goa  , 
e  que  então  fe  commetteíTem  os  inimigos  ,  e 
que  Deos  lliQ  daria  a  vitoria  ;  mas  que  era 
neccíTario  ter-fe  primeiro  alguns  cumprimen- 
tos com  o  Capitão  d'ElRey  de  Bifnagá  qlie 
alli  cftava  ,  pois  era  amigo  do  Eftado.  Al- 
guns cuidaram  ,  que  alguns  deftes  Capitães 
de  inveja  de  Lopo  Vaz  governar  a  índia 
lhe  queriam  tirar  aquella  vitoria,    e  honra 

das 


12  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

das  mãos.  E  Fernão  Lopes  de  Caftanheda 
diz  5  que  andavam  os  mais  delles  pejados  no 
governo  de  Lopo  Vaz  ,  porque  cuidava  ca- 
da hum  que  lhe  cabia  aquelle  higar  melhor 
que  a  elle  :  o  que  parece  foi  imaginação  , 
porque  primeiro  que  Lopo  Vaz  foffe  entre- 
gue da  índia ,  podiam  elles  eílorvallo ,  por 
ferem  muitos  ,  e  muito  principaes  Fidalgos  , 
que  fe  quizeram  ,  não  confentíram  a  Aífbn- 
fo  Mexia  o  que  fez  ,  nem  acceitáram  em 
Cochim  a  Lopo  Vaz  por  Governador ;  mas 
a  verdade  he  ,  que  o  feito  era  temerário , 
que  na  vitoria  todos  haviam  deter  tamanho 
quinhão  como  Lopo  Vaz.  Vendo  eJle  todos 
aquelles  Capitães  daquelle  voto  ,  diíTe  ,  que 
fícaíTe  a  couía  fem  fe  refumir  até  ver  o  rio  , 
o  que  elle  em  peíToa  queria  fazer  de  ma- 
drugada 5  e  até  mandar  recado  ao  Capitão 
d'ElRey  deBifnagá.  E  logo  defpedio  hum 
Mouro  5  que  fe  lançou  em  terra  com  reca- 
do aquelle  Capitão ,  em  que  lhe  fazia  a  fa- 
ber,  que  elle  era  alli  chegado  pêra  pelejar 
com  aquella  Armada  do  Çamorim  ,  que  era 
inimigo  do  Eftado  da  índia ,  c  que  foubera 
eftar  elle  Capitão  alli  ;  e  como  EIRey  de 
Portugal  era  grande  amigo  do  de  Bifnagá , 
e  elle  como  quem  eílava  cm  feu  lugar  não 
queria  deferviilo  cm  nada  ,  lhe  pedia  que 
lhe  mandaífe  entregar  aquelles  navios  que 
eftavam  dentro.^  pois  eram  de  Mouros  feus 

ini- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  IL  13 

inimigos  5  fcnáo  que  foubefle  de  certo  que  os 
havia  de  ir  bufe  ar ,  e  que  não  quizeile  elie 
romper  a  paz  ,  que  eftava  feita  entre  feus 
Reys  5  porque  o  de  Bifnagá  não  fc  haveria 
por  fervido  delle.  Efte  recado  fe  deo  ao 
Capitão  ,  que  refpondco  ,  que  aquelia  Arma- 
da fe  recolhera  naquelle  rio ,  e  que  não  era  li- 
cito entregalla  elle ,  pois  fe  recolheram  alli 
de  baixo  do  amparo ,  e  favor  d'ElRey  de 
Bifnagá  :  e  que  ainda  que  elle  os  quizeile 
entregar,  os  Mouros  eílavam  tão  fortes  que 
fenão  atrevia  com  elles :  que  íhdlc  os  que- 
ria ir  tomar  5  que  muito  bem  o  podia  fazer, 
porque  elle  fe  não  fahiria  da  fua  Cidade , 
nem  lhe  daria  favor,  e  ajuda.  Eíla  refpof- 
ta  veio  ja  de  noite  ,  com  a  qual  o  Gover- 
nador fe  determinou  de  ir  pelejar  com  os 
Mouros.  E  fendo  meio  quarto  d'alva  ren- 
dido ,  efcoiheo  três  catúrcs  os  mais  ligeiros 
de  todos ,  e  embarcando-fe  em  hum  ,  levou 
comíigo  os  outros  ,  dos  quaes  eram  Capitães 
Manoel  de  Brito  ,  e  Paio  Rodrigues  de  Araú- 
jo 5  e  com  a  enchente  foi  entrando  pelo  rio  , 
e  notando  o  modo  das  eftacadas :  iílo  não 
pode  fer  em  tanto  íilencio ,  que  não  foffeni 
fentidos  dos  Mouros  ,  que  defcarregáram 
nelles  huma  tempeílade  de  bombardas ,  que 
lhes  não  fizeram  damno ,  por  irem  os  catú- 
res  cofidos  com  a  terra.  O  Governador  foi 
paliando  por  todos  os  pelouros  até  chegar 

a  ver 


14  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

a  ver  as  tranqueiras  ,  que  eíleve  reconhecen- 
do á  fiia  vontade  ,  fem  as  bombardadas  que 
choviam  fobre  elie  o  divertirem.  Depois 
de  bem  notado  tudo ,  tornou  a  voltar  pelo 
rio  a  baixo  ,  e  mandou  por  homens  de  con- 
fiança cortar  os  cabos ,  que  atravelTavam  as 
eílacadas  ,  deixando  o  caminho  deíimpedido. 
Chegada  a  Armada  ,  mandou  chamar  os 
Capitães ,  e  lhes  deo  conta  do  que  vio ,  fa- 
cilitando-lhes  a  deíembarcaçao  ,  e  vitoria  y 
mas  nem  com  iíTo  deixaram  de  lhe  dizer , 
que  fe  efperaíTe  pela  gente  de  Goa ,  com  o 
que  o  Governador  fobreeíteve ,  porque  não 
quiz  commetter  eíle  feito  contra  vontade  dos 
homens ,  porque  o  gofto ,  e  o  defgofto  del- 
les  algumas ,  e  muitas  vezes  dá ,  e  tira  a 
vitoria  ;  m.as  todavia  não  tardaram  os  de 
Goa  dous  dias  que  não  chegaíTem  ,  trazendo 
Chriílovão  de  Soufa ,  e  António  da  Silvei- 
ra nos  léus  galeões  de  ventagem  de  trezen- 
tos homens.  O  Governador  fez  novo  ajun- 
tamento ,  e  tornou  a  tratar  o  negocio  ,  dan- 
do de  novo  informação  do  que  vira  ,  pa- 
ra aquelles  Capitães  que  eram  chegados  de 
novo  laberem  o  que  paíTava.  E  tornando  a 
votar  fobre  aquillo  ,  foram  os  mais  dos  pri- 
meiros de  parecer  5  que  fe  havia  de  diílimu- 
lar  com  aquelie  negocio ,  aííi  pelo  feito  fer 
temerário  ,  como  por  não  romper  com  o 
Rey  de  Bifnagá ,  cuja  a  terra  era  j  masChrif- 

to- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  II.  15* 

tovão  de  Soiifa ,  e  António  da  Silveira  dif- 
leram  ,  que  em  nenhum  modo  dcixaíTcm  de 
commetter  os  inimigos  de  toda  a  maneira  que 
eftiveílem  ,  ainda  que  íe  arrifcaíTe  tudo  ;  por- 
que fe  deixaíTem  de  o  fazer ,  cobrariam  os 
Mouros  tanto  brio ,  que  os  iriam  commet- 
ter dentro  a  Goa  ;  que  pêra  o  Governador  da 
índia  diííimular ,  nao  havia  de  tomar  aquel- 
lã  barra  j  mas  já  que  eftava  fobre  ella  ,  e  ti- 
nha mandado  recado  ao  Capitão  d'ElRev 
de  Biínagá  de  cumprimentos  ,  que  não  con- 
vinha ao  credito,  e  reputação  dos  Portuguc- 
zes,  e  do  Eftado  deixar  de  commetter  os  inimi- 
gos. Aííentado  niílo  ,  em  que  quaíi  todos 
tornaram  a  conformar  ,  deo-lhes  o  Gover- 
nador recado  que  íe  fizeíFem  preíles  pêra  o 
outro  dia  ,  que  eram  vinte  e  cinco  de  Fe- 
vereiro 5  ordenando  alli  com  os  Capitães  o 
rnodo  que  fe  havia  de  ter  na  defembarca- 
ção  5  que  havia  de  fer  por  efta  maneira.  As 
quatro  barcaças  na  dianteira  ,  pcra  invefti- 
rem  as  eftacadas ,  e  baterem  as  tranqueiras , 
c  nellas  poz  Capitães  de  muita  confiança , 
de  que  nao  acho  os  nomes  mais  que  a  Ma- 
noel de  Brito ,  e  Paio  Rodrigues  de  Araú- 
jo. Apôs  os  batéis  havia  de  entrar  o  Capi- 
tão mor  do  Malavar  D.  Jorge  Téllo  com 
todos  os  navios  de  remo ,  os  Capitães  dos 
galeões  em  feus  batéis  ,  e  em  outros  navios  , 
e  detrás  de  todos  o  Governador  com  alguns 

Ca- 


i6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Capitães  velhos.  E  fazendo-fe  todos  preftes 
no  quarto  d'aíva  ,  foram  entrando  o  rio  com 
grande  eílrondo  de  pifaros  ,  tambores  ,  trom- 
betas 5  e  outros  inftrumentos  de  guerra  ,  paf- 
fando  as  barcaças  pelas  eítacadas  ,  fazendo 
caminlio  aos  catúres  até  pojarem  de  fronte 
das  tranqueiras  ,  indo  rompendo  por  meio 
de  nuvens  de  bombardadas  ,  e  efpingarda- 
das  ,  e  frechadas ;  e  pondo-fe  a  tiro  de  ef- 
pingarda  ,  começaram  a  bater  as  eítancias 
dos  Mouros ,  em  que  fizeram  grande  dam- 
no  até  chegar  toda  a  Armada.  D.Jorge  Téi- 
lo ,  que  levava  a  dianteira  ,  endireitou  com 
a  terra  por  meio  daquella  infernalidade ,  in- 
do já  de  miftura  com  clles  Manoel  de  Bri- 
to ,  e  Paio  Rodrigues  de  Araújo  ,  que  fe 
pafTáram  a  navios  pequenos  ,  deixando  as 
barcaças  á  bateria ,  e  pojando  em  terra  fal* 
taram  dos  dianteiros  Manoel  de  Brito  y  e 
Paio  Rodrigues  com  huma  companhia  de 
foldados  5  e  apôs  elles  o  Capitão  mor  com 
perto  de  quinhentos  homens  ,  e  poílos  em 
terra  ,  acharam  os  Mouros  fora  das  tranquei- 
ras ,  que  os  eiperavam  com  grande  deter- 
minação ;  e  travando  com  elles  huma  for- 
moía  batalha  ,  em  que  houve  damno  de  par- 
te a  parte  ,  foram  os  noíTos  lançando  os  inimi- 
gos do  campo  ,  e  mettendo-os  pelas  tran- 
queiras ,  onde  fe  defenderam  com  muito  va- 
lor muito  grande  efpaço.  Mas  como  osnoí- 

fos 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  11.  17 

fos  hiam  com  aqiiclle  furor  ,  e  determina-^ 
çao  5  paíTando  por  todos  aquelles  impedimen- 
tos ,  e  rifcos  ,  cavalgaram  as  tranqueiras , 
onde  fizeram  nos  inimigos  grande  eílrago  ,  e 
vendo-íe  tão  apertados  ,  largaram  tudo ,  e 
acolhéram-fe  á  Cidade ,  que  cllava  hum  pou- 
co pelo  fertão  ,  na  qual  eftava  o  Capitão 
d'ElRey  de  Narfinga  com  toda  a  gente  pof- 
ta  em  armas  pêra  a  defender,  fe  os  noíTos 
a  quizeíTem.  commetter.  O  Governador ,  que 
vio  noíTas  bandeiras  arvoradas  nas  tranquei- 
ras,  chegou  a  ellas,  e  mandou  tocar  a  rer 
colher ,  e  diíTe  aos  Fidalgos  velhos  que  fe 
puzeíTem  nas  portas  que  hiam  pêra  o  fertão  , 
pêra  que  não  deixaíTem.  fahir  ninguém  pêra 
fora  ,  porque  receou  que  houveífe  algum  def- 
arranjo  ,  e  que  quizeíTem  os  foldados  fe- 
guir  os  Mouros  até  á  Cidade ,  onde  eftava 
o  Capitão  d'ElRey  de  Narfinga  ,  já  que  lhe 
elle  teve  tanto  refpeito  que  não  fahio  delia. 
Depois  de  ter  ifto  feguro  ,  mandou  dar  fo- 
go ás  tranqueiras  ,  e  a  todas  as  embarcações 
dos  Mouros  ,  e  a  hum  grande  armazém  de 
todas  as  drogas  que  eftavam  pêra  carregar, 
mandando  embarcar  oitenta  peças  de  artilhe- 
ria  que  havia  nas  tranqueiras  ,  e  navios.  Fei- 
to efte  negocio  ,  que  foi  hum  dos  grandes 
da  índia  ,  e  de  menos  perda  ,  porque  não 
morreram  mais  de  quatro  Portuguezes ,  em- 
barcou-fe  o  Governador,  e  deo  á  vela  pe-^ 
'  CQuto,TonuLF,L  B  ra 


i8  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ra  Goa.  Andava  nefte  tempo  de  Armada  nas 
Ilhas  de  Maldiva  Jorge  Cabral ,  que  o  Go- 
vernador D.  Henrique  tinha  defpedido  de 
Cochim  a  efperar  as  náos  de  Meca ,  como 
fe.vê  na  terceira  Década  de  João  de  Barros, 
Andando  efte  Fidalgo  entre  aquellas  Ilhas , 
chegáram-lhe  novas  de  Cochim  da  fuccefsão 
de  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  como  era  muito 
feu  amigo,  determinou  de  o  avifar,  e  en- 
tregando a  Armada ,  que  era  de  fete  navios 
de  remo ,  a  hum  dos  Capitães ,  elle  na  fua 
galeota  deo  á  vela  pêra  Malaca ,  e  de  fua 
jornada  adiante  daremos  razão. 

CAPITULO     III. 

Do  que   o  Governador  pajjott  em  Goa  com 
Francifco  de  Sã ,  Capitão  daquella  Cida- 
de ,  fohre  o  itao  querer  receber  nella : 
e  de  alguns  Capitães  que  defpachou 
pêra  fora :  e  de  corno  o  Governa- 
dor par  tio  pêra  Ormuz. 

EStava  por  Capitão  da  Cidade  de  Goa 
hum  Fidalgo  velho  de  muitos  ferviços 
chamado  Francifco  de  Sá  Veador  da  fazen- 
da da  Cidade  do  Porto  ,  filho  do  fegundo 
João  Rodrigues  de  Sá  Alcaide  mór  daquel- 
la Cidade ,  e  fenhor  de  Matofmhos  ,  e  das 
terras  de  Sever  ,  Baltar ,  e  Paiva.  O  qual 
Francifco  de  Sá  tinha  ElRey  D.  João  man-^ 
í  A /•.•..:  da- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  III.    i^ 

dado  em  companhia  do  Conde  Almirante , 
quando  veio  por  Vifo-Rey  ,  pêra  ir  fazer 
huma  fortaleza  no  porto  da  Sunda ,  por  fer 
avifado  que  em  Sevilha  fe  tratava  de  man- 
dar fazer  alli  outra  por  cafo  do  trato  da 
pimenta  ,  por  fer  alli  huma  grande  efcala 
delia.  E  porque  o  Conde  Almirante  não  te- 
ve tempo  de  o  aviar  ,  quando  fuccedeo  o 
Governador  D.Henrique,  Ihedeo  a  capita- 
nia de  Goa.  Eíle  Fidalgo  como  era  grande 
peíToa  na  índia ,  fabendo  o  que  fe  fizera  cm 
Cananor  nas  fuccefsoes ,  e  como  o  Veador 
da  fazenda  ,  fem  confultar  os  Fidalgos  ,  e 
Capitães  da  índia  abrira  a  terceira  fuccefsão  , 
eftando  declarado  na  primeira  Pêro  Mafca- 
renhas  ,  teve-o  muito  a  mal ,  e  houve  que 
Affonfo  Mexia  tomara  mais  do  que  era  feu  , 
e  que  fora  contra  o  ferviço  d'ElRey  ;  e  con- 
fultando  eílas  coufas  com  os  Vereadores  da 
Cidade,  e  com  as  peíToas  principaes  delia, 
aíTentáram  que  o  Veador  da  fazenda  ,  no 
abrir  da  terceira  fuccefsão ,  tinha  defacerta- 
do ,  e  que  não  eílavam  obrigados  a  obede- 
cer por  Governador  da  índia ,  fenão  a  Pê- 
ro Mafcarenhas.  Concluídos  niílo ,  fabendo 
que  Lopo  Vaz  hia  pêra  aquella  Cidade ,  af« 
fentáram  de  o  não  recolherem ,  e  de  lhe  fa- 
zerem, feus  proteílos ,  porque  o  não  conhe- 
ciam por  Governador ,  porque  não  eílavam 
obrigados  nem  por  juramento ,  nem  por  ai-» 

B  ii  gu- 


IO  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

guma  outra  coufa  a  iíTo ,  e  aíTi  fecharam  as 
portas  da  Cidade  ,  e  puzeram  nellas  gran- 
des guardas  ,  e  vigias ,  e  mandaram  pór  hu- 
ma  fuíla  na  barra  com  humTabelliáo  pêra 
notificar  a  Lopo  Vaz  o  que  citava  aíTenta- 
do.  Náo  tardou  muitos  dias  que  elle  che- 
gaíTe,  centrando  pelo  rio,  lhe  fahio  o  na- 
vio ,  e  o  official  lhe  notificou  Jium  proteílo 
que  levava ,  requerendo-lhe  que  nao  entraf- 
lè  dentro  ,  que  o  nao  haviam  de  recolher 
na  Cidade  ,  porque  nao  conheciam  por  Go- 
vernador fenão  a  Pêro  Maícarenhas  5  que 
era  feito  por  ElRey ,  e  não  a  elle ,  que  era 
feito  peio  Veador  da  fazenda  ,  fem  ordem  5 
nem  inílrucçao  d^ElRey.  Lopo  Vaz  ficou 
enfadado  ,  e  fem  refponder  coufa  alguma  , 
foi  entrando  pelo  rio  acima  até  furgir  de- 
fronte da  Cidade.  Alli  lhe  tornaram  a  fa- 
zer o  mefmo  requerimento ,  e  elle  mandou 
outro  á  Cidade  ,  no  que  íè  gaitou  grande 
efpaço  ,  refumindo-fe  os  da  Cidade  em  lhe 
não  abrirem  as  portas.  Os  Fidalgos ,  e  Ca- 
pitães da  companhia  de  Lopo  Vaz  vendo 
a  coufa  daquella  feição  ,  receando  hum  def- 
aítre  ,  commettêram  aquelle  negocio  a  Chri- 
ftovão  de  Soufa  por  fer  hum  Fidalgo  mui- 
to refpeitado  de  todos  ,  e  defembarcando 
em  terra  ,  foi-fe  ver  com  a  Cidade  ,  e  com 
o  Capitão  5  que  eílavam  poltos  em  armas , 
edetal  maneira  osperfuadio^  que  os  abran- 
dou ; 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  III.   21 

dou  5  e  confentíram  na  entrada  de  Lopo  Vaz  ^ 
que  logo  deíembarcou  ,  e  le  apoíentou  cm 
terra  ,  e  começou  a  correr  com  as  couías 
do  governo,  E  porque  fe  receou  que  vindo 
Pêro  Mafcarenhas  foííe  Francifco  de  Sá  da 
fua  parcialidade ,  determinou  de  o  faílar  de 
íi  ,  e  tratou  logo  cora  elle  de  o  mandar  a 
Sunda  a  fazer  a  fortaleza  que  ElRey  man- 
dava ;  e  porque  achou  também  cartas  da- 
quelle  Rey  ,  em  que  pedia  ao  Governador 
da  índia  ,  que  mandaíTe  fazer  huma  forta*» 
leza  naquelle  feu  porto,  que  lhe  daria  pêra 
ella  íltio  5  e  rodo  o  neceíTario  ,  porque  de- 
fejava  muito  de  ter  commercio  ,  e  amizade 
com  os  Portuguezes ;  Francifco  de  Sá  fol- 
gou miuito  com  a  jornada  ,  pois  viera  do 
Reyno  aíUnado  pêra  ella  ,  e  aííi  fez  feus 
apontamentos ,  concedendo-lhe  o  Governa- 
dor tudo  o  que  lhe  pedio ,  que  foi  hum  ga- 
leão ,  huma  náo  ,  duas  caravelas  ,  duas  ga- 
leotas  ,  cinco  fuílas ,  e  quatrocentos  homens. 
Com  efta  Armada  começou  a  correr  Fran- 
cifco de  Sá  5  e  Lopo  Vaz  deo  a  capitania 
de  Goa  a  António  da  Silveira ,  que  depois 
teve  aquelle  efpantofo  cerco  de  Dio  ,  o  qual 
antes  de  Lopo  Vaz  fucceder  no  governo, 
o  tinha  defpoíado  com  huma  filha  Ria  por 
palavras  de  futuro.  E  porque  D.  Jorge  de 
Menezes  filho  de  D.  Rodrigo  de  Menezes 
eftava  provido  pelo  Governador  D.  Henrií- 

que 


:i2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

que  da  capitania  de  Maluco  ,  o  defpachou 
pêra  ir  entrar  nella ,  dando-lhe  dous  navios 
com  cem  homens  ,  e  muitos  provimentos  , 
e  com  gUq  pêra  Capitão  mór  daquelle  Ar- 
chipéiago  Simão  de  Soufa  Galvão  íilho  de 
Duarte  Galvão.  E  por  ter  já  recado  que  Jor- 
ge Cabral  era  partido  pêra  Malaca ,  c  que 
ficavam  aquelles  canaes  das  Ilhas  de  Maldi- 
va  fem  guarda ,  defpachou  com  muita  preí^ 
fa  Martim  AíFonfo  de  Mello  Juíarte ,  a  que 
deo  huma  Armada  de  cinco  fuílas ,  c  huma 
caravela  em  que  clle  hia.  Todos  eíles  Ca- 
pitães defpedio  em  Março ,  indo  D.  Jorge 
de  baixo  da  capitania  de  Francifco  de  Sá 
até  Malaca.  Partidas  eftas  Armadas ,  vendo- 
fe  o  Governador  vago  ,  determinou  de  ir  a 
Ormuz  a  temperar  as  coufas  de  Diogo  de 
-Mello  com  o  guazil  Rax  Xarafo ,  por  lhe 
virem  cartas  que  o  tinha  prezo  ,  avexado , 
^  tyrannizado  íobre  o  que  já  o  Governador 
D.  Henrique  lhe  tinha  efcrito ,  fem  lhe  dar 
nada  de  fuás  cartas  ,  nem  fe  moderar  em  fua 
condição  ,  por  fer  hum  Fidalgo  forte  de  na- 
tureza. Tinha  prezo  o  guazil  em  huma  aC- 
periííima  prizão  debaixo  de  huma  efcada , 
cm  tempo  das  calmas  de  Ormux  ,  (cuja  quen- 
tura fe  ha  coufa  na  terra  que  fe  pofla  com- 
parar a  huma  femelhança  do  inferno,  aquel- 
la  fó  o  he)  não  lhe  dando  de  comer  fenão 
muito  rnal  ,  e  de  beber  peior.    O  que  lhe 

não 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  III.    25 

mo  perdoaram  os  pragiicntos  da  índia ,  em 
hans  porquês  que  íizeraai ,  fallando  hum  com 
Diogo  de  Mello  ,  fobre  o  que  Xarafo  ,  e 
ElRey  de  Ormuz  eíbrevêram  muitas  cartas 
ao  Governador  D.  Henrique  ,  que  foram 
aquella  mouçao  ter  ás  mãos  de  Lopo  Vaz. 
E  parecendo-ihe  que  lhe  convinha  acudir 
áquellas  coufas  primeiro  que  vieíTe  Pêro  Maf. 
carenhas  ,  porque  o  conhecia  por  homem 
muito  inteiro  na  jufliça  ,  e  que  não  havia 
de  foffrcr  áquellas  coufas  a  Diogo  de  Mel- 
lo ,  que  era  feu  tio  irmão  de  fua  mãi ,  de- 
terminou de  o  ir  fazer  amigo  com,  o  gua- 
zii  5  e  atalhar  áquellas  defordens.  Eíla  ida 
poz  em  confelho  dos  Capitães ,  que  lho  en- 
tranharam ,  lembrando-lhe  que  o  Malavar. 
eftava  de  guerra  ,  e  que  fe  fallava  em  galés 
de  Rumes ,  e  que  era  neceíTario  ,  fe  foUem 
as  novas  certas ,  tomarem-no  em  Goa  ,  pê- 
ra fe  preparar  contra  ellas  ,  e  não  fora  da 
índia  ,  e  em  parte  que  não  podia  vir  fenao 
com  monções  ,  no  que  fe  arrifcava  a  mui- 
to ;  mas  fem  embargo  deftas  razoes  fe  em- 
barcou ,  deixando  nomeado  por  Capitão  mor 
do  mar  a  António  de  Miranda  de  Azevedo  y 
a  quem  deixou  todos  os  navios  de  remo , 
e  eile  por  fím  de  Março  fe  fez  á  vela  ,  le- 
vando a  galé  baftarda ,  de  que  era  Capitão 
D.  Vafco  de  Lima ,  em  que  elle  hia  embar- 
cado ,   e  quatro  galeões,  de  que  eram  Can 

pi- 


24   ÁSIA   DE   DíOGO    DE   CoUTo' 

piráes  D.  Affonío  de  Menezes  ,  Diogo  da 
Silveira  ,  Manoel  de  Aí  acedo  ,  e  Manoel  de 
Brito  ,  defpachando  prinieiro  Cliriílovao  de 
Soufa  pêra  ir  entrar  na  capitania  de  Chaul , 
de  que  era  provido. 

CAPITULO     IV. 

Do  que  acoute ceo    a  Eitor  da  Silveira   no 

ejlreito  de  Meca  :    e  de  como  foi  ter  a 

Maçuâ ,  e  mandou  bufcar  D.  P^odrigo 

de  Lima  ao  Prefte  ^oao ;    e  do  que 

Ihefuccedeo  7ia  viagem  de  Ormuz, 

TVT  A  terceira  Década  de  João  de  Barros 
JL^  íe  conta,  como  o  Governador  Dom 
Henrique  de  Menezes  primeiro  que  faleceí- 
íè  5  defpcdio  pêra  o  eíireito  de  Meca  Eitor 
da  Silveira  por  Capitão  mor  de  huma  Ar- 
mada groíTa  5  levando  por  regimento  ,  que 
foíTe  eíperar  as  náos  de  Meca  a  monte  de 
Félix  ,  e  que  alli  efperaíTe  por  elle  até  mea- 
do Março  ,  (porque  tinha  elle  determinado 
ir  áquelle  eítreito  por  haver  novas  de  galés.) 
E  que  tardando  elle  até  então  ,  fe  foíTe  a 
Maçuá  efperar  D.  Rodrigo  de  Lima  ,  que 
eftava  por  Embaixador  na  Corte  do  Empe- 
rador  da  Abaília  ,  ao  qual  tinha  efcrito  que 
efte  Abril  o  mandaria  bufcar  ,  e  depois  de 
o  recolher  fe  foíTe  invernar  a  Ormuz.  Par- 
tio  Eitor  da  Silveira ,  e  fem  achar  contraf-. 

te 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  IV.    25* 

te  chegou  ao  cabo  de  Gardafui  ,  onde  íe 
deixou  andar  até  meado  Março  ,  íem  lhe 
acontecer  coula  digna  de  cfcritura  ;  e  ven- 
do que  o  Governador  tardava  ,  por  cumprir 
com  feu  regimento  fc  fez  á  vela  ,  e  entran- 
do as  portas  do  eftreito  ,  foi  demandar  a 
Ilha  de  Daleça  ,  onde  chegou  o  primeiro 
de  Abril :  dalii  defpedio  hum  correio  com 
cartas  a  D.  Rodrigo  de  Lima,  em  que  lhe 
fazia  a  faber  de  fua  chegada ,  e  de  como  o 
efperava  alli.  Eíla  carta  mandou  ao  Capitão 
de  Arquico  ,  pêra  que  lha  déíTe ,  ou  man- 
daíTc.  Eftava  D.  Rodrigo  de  Lima  em  Bar- 
vá  ,  onde  havia  pouco  era  chegado  com 
hum  Embaixador  do  Emperador  de  Erhio- 
pia  chamado  Zagazabo  ,  o  que  tinha  des- 
pachado pêra  ir  a  Portugal  com  cartas  ,  e 
prefentes  pêra  ElRey  D.  João  ,  e  pêra  dal- 
ii paflar  a  Roma  em  companhia  do  P.  Fran- 
ciíco  Alvares  ,  a  quem  vinha  entregue  pê- 
ra o  aprefentar  a  Sua  Santidade  pêra  em  feu 
nome  lhe  dar  obediência  ,  como  filho  Ca^ 
tholico.  Eítavam  D.  Rodrigo  ,  e  os  mais 
muito  triftes  receando  houveíTe  algum  eílor- 
vo  ainda  eíte  anno  pêra  não  ir  a  Armada 
por  elles  ,  com.o  o  Governador  lhe  tinha 
promettido ,  e  dalli  defpedíram.  dous  Portu- 
guezes  pêra  eftarem  no  porto  de  Arquico 
efperando  a  Armada  ,  que  havia  de  vir  da 
índia,  pêra  tanto  que  a  viíTem  lhe  mandai 

rem 


^6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

rem  recado.  Eftando  eftcs  vigiando  o  mar, 
chegaram  áquelle  porto  humas  náos  dos 
Mouros  com  grandes  fcílas ,  e  tangeres ,  dan- 
do por  novas  que  os  Portuguezes  eram  to-  i 
dos  mortos ,  e  que  tinham  perdida  a  índia,  fl 
Com  ellas  novas  que  pela  terra  fe  efpalhá-  I 
ram  houve  grandes  alegrias  ,  e  alvoroços 
entre  os  Mouros.  Os  Portuguezes  que  alli 
eílavam  tanto  que  viram  as  feílas ,  e  ouvi- 
ram as  novas  ,  com  grande  dor,  e  triíleza 
de  feus  corações,  fe  partiram  logo  pêra  Ba  r- 
vá  ,  e  as  deram  a  D.  Rodrigro  de  Lima. 
Era  efte  dia  do  fabbado  Santo  vefpera  de 
Pafcoa ,  cm  que  todos  eílavam  mui  alvoro- 
çados pêra  feílejarem  a  Reíiirreiçáo  do  Se- 
nhor ,  e  em  ouvindo  as  novas  aíli  ficaram 
cortados  ,  que  como  homens  pafmados  nao 
fabiam  o  que  fizeiíem  ;  mas  como  já  nao 
havia  outro  remédio  ,  fizeram  feus  difcur- 
fos,  affentando  de  fc  tornarem  pêra  a  Cor- 
te do  Preíle  João ,  e  alli  acabarem  fuás  vi- 
das ,  e  bufcarem  recolhimento ,  e  quietação 
conforme  ao  que  lhes  o  tempo  oíFereceíTe ; 
nas  como  Deos  NoíTo  Senhor  Pai  de  mi- 
fericordia ,  e  confolaçao  via  que  feus  fervos 
andavam  em  feu  ferviço  naquella  Chriftan- 
dade  tão  efcondida  ao  Mundo  ,  nao  quiz 
que  fua  triíleza  duraíTe  muito  ,  e  ordenou 
que  o  dia  de  Pafcoa  á  noite  ,  dia  todo  de 
mercês  fuás ,  lhes  vieífem  diíFerentes  novas , 

que 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  IV.   27 

que  foram  fcr  chegada  a  noíla  Armada  a 
Maçuá  ,  e  logo  apôs  ellas  chegaram  as  car- 
tas de  Eitor  da  Silveira  ,  com  o  que  todos 
como  doudos  de  alegria  nao  fabiam  o  que 
fizeflem.  D.  Rodrigo  quizera  logo  partir, 
mas  o  P.  Francifco  Alvares  lho  impedio , 
dizendo  ,  que  pois  Deos  naquelle  dia  lhes 
fizera  huma  tão  aílinalada  mercê ,  que  efpe- 
raíTem  até  paflarem  aquelles  dias  de  feíla , 
em  que  era  razão  deílem  muitas  graças  ao 
Altiílimo  Deos  ,  pois  em  tempo  de  tanta 
mágoa  j  e  dor  (como  tão  pouco  havia  ti- 
veram )  llies  mandara  novas  tão  alegres.  Paí^ 
fada  a  Pafcoa  ,  em  que  todos  fe  confeíTá- 
ram  ,  e  commungáram  com  grandes  alegrias 
das  almas ,  e  dos  corpos  ,  logo  fe  puzeram 
ao  caminho  hum  dia  que  foi  aos  nove  de 
Abril  ,  indo  o  Vifo-Rey  de  Barvá  em  fua 
companhia  com  mil  homens  de  mullas  ,  e 
alguns  poucos  de  cavallo.  Aquelle  dia  fo- 
ram dormir  a  Darigil  hum  pouco  duas  lé- 
guas de  Barvá  ,  alli  fe  coílumavam.  ás  fe- 
gundas  ,  e  terças  feiras  ajuntar  as  cáfilas, 
que  haviam  de  ir  pêra  Arquico  ,  por  amor 
dos  alarves ,  que  ha  muitos  por  aquelle  ca- 
minho ;  aqui  fe  ajuntaram  dous  mil  homens , 
e  todos  juntos  foram  caminhando  pêra  Ar- 
quico 5  que  era  quatorze  léguas  de  jornada. 
Neílc  caminho  gaíláram  até  o  fabbado  fe- 
guinte,  e  chegando  a  Arquico,  aponfentá- 

ram- 


i2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ram-fe  fóra  por  fer  noite  ,  porque  quiz  o 
Vilb-Rey  entrar  com  elles  de  dia ,  e  enrre- 
gallos  ao  Capitão  mor.  x\o  outro  dia  che- 
garam á  praia  ,  onde  Eitor  da  Silveira  os 
recebeo  com  grandes  feílas.,  falvas  de  arti- 
Iheria  ,  e  com  todos  os  inílrumentos  de  paz  , 
e  de  guerra.  O  Vifo-Rey  lhe  entregou  Dom 
Rodrigo  de  Lima  ,  e  o  Embaixador  Zaga- 
zabo  5  e  todos  os  Portuguezes ,  e  os  prefen- 
tes  que  levavam  affi  pêra  o  Governador ,  e 
Rey  de  Portugal ,  como  pêra  o  Summo ,  e 
Santo  Ponrifíce.  Eitor  da  Silveira  defpedio- 
fe  logo  do  Vifo-Re}"  ,  que  mandou  dar  á 
Armada  cincoenta  vaccas  ,  muitos  carneiros , 
gallinhas  ,  e  outros  mantimentos,  e  a  oito 
de  Abril  deram  á  veia  ,  e  foram  feguindo 
fua  viagem ,  e  ao  primeiro  de  Maio  chega- 
ram á  Ilha  de  Camarão  pêra  fazerem  agua- 
da. Alli  defenterrou  o  P.  Francifco  Alvares 
muito  fecretamente  a  oiTada  de  Duarte  Gal- 
vão ,  que  elle  mefmo  tinha  enterrada  ,  co- 
mo na  terceira  Década  fe  diíTe ,  e  a  embar- 
cou no  galeão  em  que  hia ,  com  tenção  de 
a  levar  ao  Reyno  ;  dalli  fe  fizeram  á  vela 
para  irem  invernar  a  Ormuz  ,  como  leva- 
vam por  regimento ;  e  deixallos-liemos  em 
fua  viagem  ,  por  continuarmos  com  a  do 
Governador.  Partido  logo  Lopo  Vaz  de  Sam- 
paio de  Goa  ,  como  atrás  dilTemos  ,  foi  atra- 
veíTando  o  golfo  de.Ormuz,  em  que  achou 
;  gran- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  IV.   29 

grandes  calmarias  ,  que  foram  caufa  de  gai- 
tar muitos  dias ,  e  lhe  morrer  muita  gente , 
e  entrando-lhe  o  tempo ,  foi  ferrar  o  porto 
de  Calayate  ,  cujo  Xeque  eftava  alevantado 
contra  os  Portuguezes  ,  por  mandado  d'El- 
Rey  de  Ormuz  ,  e  de  Rax  Xarrafo  ,  porque 
pelas  avexaçoes  que  padeceo ,  e  recebiam  de 
Diogo  de  Mello  ,  efcrevêram  a  toda  aquel- 
la  coíla  que  fe  levantaíTem  contra  os  Portu- 
guezes ,  que  foi  quaíi  outra  como  a  que  o 
mefmo  Xarrafo  fez  em  tempo  do  Governa- 
dor D.  Duarte  de  Menezes ,  (como  na  ter- 
ceira Década  de  João  de  Barros  fe  conta. ) 
Lopo  Vaz  tanto  que  foube  do  negocio ,  pe- 
20u-lhe  em  eftremo  das  defordens  de  Dio- 
go de  Mello  ,  e  tratou  de  quietar  o  Xeque , 
o  que  fez  com  lhe  affirmar  que  a  nenhuma 
outra  coufa  hia  a  Ormuz  ,  mais  que  a  fol- 
tar  Xarrafo  ,  ca  lhe  fazer  juftiça  ,  e  pêra 
caftigar  Diogo  de  Mello,  fe  o  mereceíle.  Com 
ifto  fe  compoz  o  Xeque  ,  e  fe  quietou  ,  man- 
dando refrefcos  ao  Governador.  Fazendo- 
íè  dalli  á  vela  5  chegando  á  aguada  deTei- 
ve ,  achou  o  galeão  de  Francifco  de  Men- 
doça  ,  hum  dos  Capitães  da  conferva  de  Ei- 
tor  da  Silveira  ,  que  com  tempo  fe  apartou 
da  Armada : .  delle  foube  as  novas  de  Dom 
Rodrigo  de  Lima  ,  e  do  Em.baixador ,  que 
o  Emperador  da  Ethiopia  mandava  a  Por- 
tugal ;  do  que  levou  eílranho  contentamen- 
to. 


30  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

to  ,  c  tomarxdo  o  galeão  comíigo ,  foi  ter 
a  Mafcare ,  que  também  eílava  alevantado , 
e  trabalhou  por  quietar  o  Xeque  como  fez , 
e  deixando  tudo  pacifico  chegou  a  Ormuz , 
onde  foi  mui  bem  recebido  do  Capitão  ,  e 
fe  agazalhou  na  fortaleza.  A  primeira  cou- 
fa  que  fez  foi  mandar  foltar  Rax  Xarrafo , 
e  levallo  diante  de  íi ,  e  fazendo-Ihe  muitas 
honras  ,  Uiq  diíTe ,  que  elle  era  alli  vindo  a 
lhe  fazer  juíHça  ,  que  a  requereíTe  contra 
Diogo  de  Mello ,  que  fem  embargo  de  fer 
feu  tio  ,  lha  havia  de  fazer  muito  inteiramen- 
te. O  Governador  foidahi  a  três  dias  viíitar 
ElRey  de  Ormuz  ,  aíiirmando-iJie  que  não  hia 
áquella  fortaleza  a  mais  que  a  fazer  juftiça 
ao  Guazil  ,  e  a  caíligar  Diogo  de  Mello. 
O  Guazil  tanto  que  foube  que  o  Governa- 
dor era  fobrinho  do  Capitão  ,  e  que  o  pu- 
nha á  cabeceira  da  fua  meza  ,  houve  que  lhe 
não  faria  juftiça  em  nada  ,  e  fazendo  da  ne- 
ceílídade  virtude,  diíTe  ao  Governador  a  fe- 
gunda  vez  que  o  vifitou  ,  que  elle  não  que- 
ria coufa  alguma  de  Diogo  de  Mello ,  que 
lhe  pedia  o  fizeíTe  amigo  com  elle:  o  Go- 
vernador chamou  Diogo  de  Mello  ,  e  o  re- 
conciliou com  o  Guazil  ,  e  elle  llie  pedio 
muitos  perdoes  ,  e  teve  com  elle  muitos  com-» 
primentos. 

CA- 


Decadà  IV.  Liv.  I.  3X 

CAPITULO     V. 

Do  que  aconteceo  a  Eitor  da  Silveira  nã 

viagem  até  Ormuz :    e  de  como  o  Go- 

vernador  recebeo  o  Embaixador 

do  Frejle  'João. 

PArtido  Eitor  da  Silveira  da  Ilha  de  Ca-» 
iTjarão  ,  foi  navegando  dez  dias  com 
vento  em  popa  até  fahirem  do  eílreito  pêra 
fora  ,  e  na  paragem  de  Adem  deo  hum  tem- 
po tão  rijo ,  e  forte  5  que  não  puderam  fof- 
frer  as  velas ,  e  com  fós  os  papafígos  foram 
correndo  á  vontade  dos  ventos ;  e  a  fegun- 
da  noite,  que  foi  de  grandiílima  farraçao , 
fe  apartou  toda  a  Armada  ,  e  foi  cada  hum 
correndo  pêra  fua  parte  a  Deos  mifericor- 
dia  5  e  quafi  alagados.  Durou-lhe  eíle  tra- 
balho quatro  dias  ,  nos  quaes  o  galeão  São 
Leão  perdeo  o  batel  com  hum  grumete  Fran- 
cez  5  não  dormindo  em  todos  elles  peíToa 
alguma  ,  porque  não  largaram  os  aldropes 
das  bombas  das  mãos  por  irem  alagados, 
edefapparelhados  de  feição,  que  quaíi  hiam 
defconfiados ;  mas  Deos  ,  que  fempre  acode 
nas  mores  neceííidades ,  os  encaminhou  até 
embocarem  o  eílreito  da  Períia  ,  do  cabo 
de  lafques  pêra  dentro  ,  e  o  primeiro  que 
foi  tomar  a  aguada  deTeive  foi  Franciíco 
de  Mendofa  ,  que  alli  tinha  chegado  pou- 
cos 


'52  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

cos  ciias  antes  do  Governador  ,  que  alli  o 
achou  j  como  atrás  diíTcmos.  Os  mais  navios 
tirando  o  Capitão  mor  foram  tomar  Mafca- 
te  a  vinte  e  oito  de  Maio.  O  Capitão  mor 
com  quem  hia  embarcado  D.  Rodrigo  de 
Lima ,  e  o  Embaixador  Abexi ,  foi  corren- 
do tempo  com  o  mefmo  trabalho  que  os 
outros  ,  governado-fe  tao  m.al ,  que  não  po- 
dendo tomar  o  eílreito  da  Períia  ,  foi  cor- 
rendo com  os  ponentes  pêra  a  cofta  da  ín- 
dia com  tenção  de  tom.ar  terra  aonde  pu- 
deíTe ;  e  quando  cuidou  que  ferraíTe  a  cofta 
de  Chaul ,  achou-fe  na  enfeada  de  Cambaya 
já  com  o  inverno  cerrado  ,  pelo  que  lhe  foi 
forçado  tornar  a  voltar  pêra  Ormuz ,  o  que 
fez  com  muito  trabalho  de  todos ,  bordean- 
do de  huma  parte  pêra  a  outra  ,  com  os 
mantimentos  já  gaílados  ,  e  a  agua  quaíi  de 
todo  ,  porque  com  o  trapear  do  galeão  fe 
lhe  abriram  as  vafilhas  *,  e  lendo  já  entrada 
de  Junho  fem  efperariÇa  de  poderem  tomar 
porto  ,  houveram-fe  todos  por  perdidos.  Ei- 
tor  da  Silveira  fem  nioftrar  hum  ponto  de 
deíconíiança  ,  animava  ,  e  confolava  a  to- 
dos ,  fendo  o  que  dormia  menos ,  e  comia 
pcior  5  e  o  primeiro  que  ferrava  do  traba- 
lho ;  e  todavia  vendo-fe  tão  apertado  ,  to- 
mou parecer  com  os  officiaes  íobre  o  que 
fariam ,  e  affentáram  que  já  fe  não  podia  ir 
demandar  fenao  Ormuz  ^  porque  como   o 

in- 


Década  IV.  Liv.  I.  Ca?.  IV.    33 

inverno  era  entrado  ,  e  os  Sudiieíles  curfa- 
vam  ,  ainda  que  foífe  com  trabalho  ,  que 
melhor  era  marear  pêra  lá.  Com  iílo  man- 
dou recolher  todo  o  mantimento  que  havia 
na  náo  ,  e  agua ,  (  que  tudo  era  bem  pou- 
co 5  )  dentro  na  fua  camará  ,  e  começou  a  re- 
partir iíto  com  grande  tento  ,  acudindo  aos 
mais  neceílitados ;  mas  como  tudo  era  pou- 
co, e  a  gente  muita,  logo  fe  lhe  acabou, 
ficando  fem  nenhum  remédio ,  nem  efperan- 
ças  delle ,  fenao  as  de  Decs  ,  em  que  fem- 
pre  foram  muito  feguros  ,  e  alFi  fem  comer, 
nem  beber  navegaram  três  dias ,  fendo  Ei- 
tor  da  Silveira  ,  e  D.  Rodrigo  de  Lima  os 
que  neíles  trabalhos  fe  mioítráram  fempre 
muito  alegres  a  todos  j  porque  como  todos 
traziam  os  olhos  nelles ,  era-ihes  aíFi  necefr 
lario  ,  porque  com  iíTo  fe  animavam  ,  e  con- 
tinuavam no  trabalho  ,  porque  fe  fora  dou- 
tra maneira ,  largaram  tudo ,  e  fem  dúvida 
ih  perderam.  Mas  Eitor  da  Silveira  com  hum 
animo  muito  grande  ,  e  com  hum  primor 
nunca  ufado,  procedeo  neíla  viagem  de  fei- 
ção ,  que  confundia  a  todos,  porque  defque 
recolheo  na  fua  camará  a  agua ,  e  o  manti- 
mento ,  nunca  mais  entrou  nella  ,  e  fe  aga- 
zalhou  na  tolda  por  dar  exemplo  a  todos , 
vifitando  duas  vezes  no  dia  os  doentes  ,  que 
eram  muitos  ,  dando-lhes  em  quanto  houve 
ijue  ,  alguma  coufa  pouca  ,  não  tomando 
Cpuío»  Tom»  L  P*  L  C  nun- 


34   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

nunca  mais  pêra  fi  ;  e  certo  que  era  efte  Fi- 
dalgo de  tanta  bondade  ,  que  mais  fentia  ver 
aquclles  enfermos  ,  íèm  ter  com  que  lhes  foc- 
correr ,  que  o  rifco ,  e  perigo  em  que  hia. 
Indo  aííi  neíla  delconfolaçâo  ,  aos  fete  dias 
do  mez  de  Junho  á  tarde  houveram  vifta  de 
Malcare ,  porque  Deos  os  encaminhou  pelo 
eílrciro  dentro  iem  o  elJcs  fabcrem  ,  e  já  a 
cfte  tempo  liiam  tao  fracos  ,  e  debilitados  , 
que  náo  podiam  comíigo.  E  porque  o  ven- 
to era  efcaíío-,  e  não  puderam  ferrar  o  por- 
to ,  começaram  a  bordear  já  com  tanto  alen- 
to ,  que  os  doentes  que  eílavam  para  mor- 
rer,  parecia  que  refu feita vam  ,  e  acudiam  a 
ver  a  terra.  Foi  o  galeão  logo  vifto  de  duas 
fuílas  ,  que  andavam  alli  de  Armada  ,  que 
acudiram  a  elle ,  e  entrando  dentro  os  que 
andavam  nellas ,  foram  feftejados  de  rodos , 
conio  homens  que  lhes  traziam  o  remédio ; 
e  vendo  o  deftroço  ,  e  miferia  daquelle  ga-  . 
Jeão  5  ficaram  palmados  ,  e  mandaram  levar  ! 
toda  a  agua  que  traziam  ,  e  algumas  con- 
fervas  ,  e  bifcouto ,  que  repartiram  por  to- 
dos ,  e  com  muita  preíía  fe  tornaram  a  Maf- 
cate  ,  e  carregando  de  agua ,  e  mantimen- 
tos ,  voltaram  o  mefmo  dia  pêra  o  galeão ,  ; 
e  tudo  fe  repartio  por  todos.  Aquella  noi- 
te foi  pêra  elles  a  melhor  ,  e  mais  alegre 
da  vida  ,  porque  os  ais ,  as  dores  ,  os  ge- 
midos p  e  fufpiros  paliados  fe  converteram 

em 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  IV.    3? 

cm  folias ,  feílas ,  e  alegrias ,  em  que  pafla- 
ram  toda  a  noite.  Ao  outro  dia  acudiram 
de  terra  muitos  batéis  eíquipados ,  e  toman- 
do o  galeão  á  toa  o  mettêram  em  Mafca- 
te  ,  onde  acharam  alguns  navios  de  íiia  com- 
panliia  ,  porque  os  mais  eram  paíTados  a 
Ormuz.  Aqui  fe  deixou  Eitor  da  Silveira 
ficar  alguns  dias ,  em  quanto  os  doentes  re- 
frelcáram ,  e  convalecêram  de  todo ;  e  co- 
mo fe  puderam  embarcar ,  deo  á  vela  pêra 
Ormuz  5  e  foi  furgir  no  poufo  defronte  da 
fortaleza.  O  Governador  foi  logo  avifado 
de  fua  chegada,  e  mandou-os  vifitar,  e  pe- 
dir que  fenão  defembarcaííem  fenáo  ao  ou- 
tro dia  ,  mandando-lhes  defpejar  em  terra 
cafas  pêra  todos  ,  e  armar  ,  e  negociar  as 
do  Embaixador  do  Abexi ,  e  prover  de  to- 
das as  coufas  neceíTarias.  Ao  outro  dia  pe- 
la manha  defembarcáram  todos  ,  levando  Ei- 
tor da  Silveira ,  e  D.  Rodrigo  de  Lima  o 
Embaixador  Zagazabo  no  meio  ,  cada  hum 
por  lua  mao ,  desfazendo-fe  a  fortaleza ,  e 
a  Armada  toda  em  bombardadas  ,  e  em  ef- 
trondos  de  alegria.  E  entrados  na  fortale- 
za 5  foram  á  Igreja  a  dar  graças  a  Deos 
NoíTo  Senhor:  alli  foi  o  Governador  buf- 
callos  ,  e  os  abraçou  a  todos  com  grandes 
nioílras  de  prazer ,  e  alegria ,  alli  eftiveram 
hum  pouco  até  que  os  mandou  recolher  pê- 
ra fuás  cafas  ,  e  logo  mandou   a  Eitor  da 

C  ii  Sil- 


36  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Silveira  ,   e  a  D.  Rodrigo  de  Lima  ,   e  ao 
Embaixador  i\bexi  duzentos  cruzados  a  ca- 
da hum  ,    e  ao  P.  Francifco  Alvares  cento. 
Ao  outro  dia  foram  todos  á  fortaleza  ,  e  o 
Governador  os  efperou  na  porra  da  Igreja , 
eeftiveram  a  huniaMiíTa,  que  fe  diíTe  com 
muita  folemnidade.  Acabada  elia ,  foram-fe 
pêra  os   apoíentos  do  Governador ,  levando 
D.  Rodrigo  fempre  pela  mão  ao  Embaixa- 
dor 5  que  hia  acompanhado  de  alguns  Fra- 
des Abexis ,  e  os  prefentes  em  mãos  de  feus 
criados ,    que  o  Embaixador  aprefemou  ao 
Governador  ,  e  lhe  deo  as  cartas.  O  prefen- 
te  pêra    o  Governador  era  huma  roupa   de 
feda  ,   com  cinco  chapas  de  ouro  diante  ,  e 
outras  cinco  detrás ,  e  em  cada  hombro  hu- 
ma ,   e  todas  feriam  do  tamanho  da  palma 
da  mão  ,  muito  formo fas  ,  e  lavradas  ,  a  car- 
ta era   em  refpoíla   da  que   lhe  efcreveo   o 
Governador  Diogo  Lopes  de  Siqueira  ,  que 
nós  temos  em  noíTo  poder ,  e  por  fer  mui- 
to comprida  deixamios  de    a  relatar.    Lopo 
Vaz  efiimou  muito  o  prefente  ^  e  teve  com 
G   Emibaixador    grajides   cumprimentos  ,   e 
mandou    aos  Officiacs   d'ElRey  que  correí- 
fem  dalli   por  diante  com  a  defpeza  de  fua 
cafa  ,    pêra    a  qual  aíFinou  hum  tanto  cada 
dia;  e  aíFi  mefmo  mandou  pagar  geralmen- 
te  a  toda  a  gente  da  Armada  ,    e  dar-lhes 
miezas.  Aqui  os  deixaremos ,  porque  he  ne- 

ceí- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VI.    37 

ceíTario  continuarmos  com  as  couías  que  fuc- 
cedêram  na  índia  ,  depois  do  Governador 
partir  pêra  Ormuz. 

CAPITULO     VI. 

J)e  como  Affonfo  Mexia  mandou  a  Malaca 
chamar  o  Governador  Pêro  Majcarenhas  : 
e    do  que  elle  fez  depois  que  fouhe   as 
novas :  e  do  que  aconteceo  72a  jorna- 
da a  Martim  Affonfo  Jufarte  ,  e 
a  Francifco  de  Sá, 

PArtido  Lopo  Vaz  de  Sampaio  de  Co- 
chim  ,  tratou  AfFonfo  Mexia  de  mandar 
avilar  a  Pêro  Mafcarenhas  de  fua  fuccef- 
são  5  e  mandou  negociar  o  galeão  de  que 
António  da  Silva  de  Menezes  era  Capitão , 
o  qual  Lopo  Vaz  deixou  em  companhia  de 
D.Jorge  Tello  de  Armada  na  cofta  do  Ma- 
lavar ,  e  entregou  a  António  da  Silva  o  traf- 
lado  dos  autos  ,  papeis  ,  e  fucceísÔes  pêra 
as  dar  ao  Governador  Pêro  Mafcarenhas  ,  a 
quem  efcreveo  que  fe  foíTe  logo  pêra  a  ín- 
dia. Eíle  galeão  deo  á  vela  meado  Março , 
e  foi  feguindo  fua  viagem  ,  a  quem  logo 
tornaremos ,  porque  he  neceífario  continuar 
com  os  Capitães  que  Lopo  Vaz  defpedio 
pêra  fora  ,  e  feja  primeiro  com  Martim 
Aífonfo  de  Mello  Jufarte.  Partido  eftc  Ca- 
pitão de  Goa ,  foi  feguindo  fua  viagem  até 
;.  ;.^  che- 


38  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

chegar  as  Ilhas  de  Maldiva  ,  e  cllc  fe  poz 
em  hum  daquelles  canaes  mais  ordinário  das 
náos  5  e  mandou  os  navios  de  remo  tomar 
outro;  e  em  Março  foi  dar  com  elle  huma 
uáo  de  Rumes  ,  que  hia  de  Tanacari  pêra 
Meca  j  que  levava  trezentos  hom.ens  bran- 
cos de  peleja  5  e  muito  bem  artilhada,  e  pe- 
trechada  de  tudo  ,  como  aquella  que  hia 
mui  rica  ,  e  profpera.  Martim  Aítbnfo  tan- 
to que  houve  viíla  delia  ,  levou  ancora  ,  e 
deo  o  traquete  5  pondo-fe  em  armas,  e  pre- 
parando íua  artilheria  mui  bem.  Tanto  que 
chegou  a  tiro  ,  defcarregou  nella  fua  muni- 
ção ,  arrombando-a  por  algumas  partes  ,  e  lo- 
go a  foi  inveílir ,  e  lhe  lançou  feus  arpéos. 
Levava  Martim  AíFonfo  cincoenta  bons  fol- 
dados  a  fora  os  Officiaes.  Ferrada  a  náo , 
começou-fe  fobre  a  entrada  delia  huma  mui- 
to cruel  batalha  ,  em  que  pelejaram  muito 
bem  de  ambas  as  partes  ;  e  ainda  que  dos 
Mouros  cahiam  muitos  feridos  dos  golpes  dos 
noíTos,  5  eram  elles  tantos  ,  que  onde  der- 
rubavam dous  5  íe  punham  logo  quatro.  Mar- 
tim Affonfo  como  era  m.uito  cavalleiro  ,  com 
ver  a  deíigualdade  que  havia  ,  determinou 
ou  de  morrer ,  ou  de  render  a  náo  ,  fazen- 
do por  feu  braço  mui  grandes  cavallcrias. 
Os  feus  animados  com  o  que  lhe  viam  fazer , 
trabalhavami  pelo  imitar ,  lançando  entre  os 
Mouros  muitas  paneilas   de  pólvora  ,   com 

que 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VI.    39 

que  os  abrazavam  ,  mas  não  largavam  os  lu- 
gares.   E  como  a  iiáo  era  grande ,  podero- 
fa  ,    e  com  tanta  gente  ,  por  muito  que  os 
noíTos  trabalharam  ,  a  não  puderam  entrar , 
ficando  aíli  abordados  todo  aquelle  dia  ,    e 
noite  j  pelejando  de  ambas  as  partes  fem  to- 
marem defcanço.    Ao  outro  dia  ,  poílo  que 
os  noíTos  eílavam  canfados  ,   e  a  mor  parte 
feridos ,   tanto  trabalharam  ,  tão  altas  proe- 
zas fizeram  ,    que   com  grande  damno  dos 
inimigos  entraram  a  náo  ,  e  mettêram  todos  - 
os  delia  a  efpada  ,  fem  lhe  ficar  algum.  Ren- 
dida a  náo  5  (  não  fem  cuílo   dos  noílbs  ,  de 
que  também  morreram  alguns  ,  )  lançaram 
ao  mar  os  mortos  ,   e  furgíram  com  a  náo 
que  eilava  cheia  de  fazendas.  Alli  fe  deixa- 
ram eílar  até  meado  de  Abril  que  deram  á  ve- 
la pêra  Goa  ,  levando  a  náo  comfigo  ,  e  che- 
gados   áquella  Cidade  foi  dcícarregada  ,    e 
vendida  a  fazenda  ,    e  deram  as  partes  aos 
foldados  5   ficando  huma   grande  fomma    a 
ElRey.  Agora  continuaremos  com  Jorge  Ca- 
bral ,  que  (como  diíTcmos)  partio  das  Ilhas 
de  Maldiva  pêra  Malaca  a  dar  as  novas  a 
Pêro  Mafcarenhas  de  fua  fuccefsao  j  e  indo 
feguindo  fua  jornada  com  bom  tempo,  che- 
gou áquella  fortaleza ,  e  foi  muito  bem  re- 
cebido de  Pêro  Mafcarenhas ,    a  quem  óqo 
as  novas,  que  elle  eftimou  muito,  por  ver 
a  conta  que  ElRey  tinha  com  feus  mereci- 

men- 


40  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

mentos,  e  promettco  a  Jorge  Cabral  aquel- 
Ja  capitania  de  ai  viçaras.  E  porque  não  ti- 
nha papeis  ,  nem  cartas  do  Veador  da  fa- 
zenda ,  nao  tomou  titulo  de  Governador , 
e  foi  correndo  com  o  cargo  de  fua  capita- 
nia 5  efperando  que  lhe  vielfe  tudo  na  mon- 
ção ,  o  que  não  tardou  ;  porque  hum  mez 
depois  da  chegada  de  Jorge  Cabral  furgio 
naquelle  porto  o  galeão  de  António  da  Sil- 
va ,  e  deíembarcando  deo  a  Pcro  Mafcare- 
nhas  as  cartas  ,  e  papeis  que  levava  ,  man- 
dando-lhc  notificar  que  foíTe  logo  tomar  en- 
trega da  governança  da  índia.  Com  eftes 
papeis  fe  ajuntaram  todos  os  Fidalgos ,  Ca- 
pitães ,  Cidadoes  ,  e  Officiaes  de  juftiça  ,  e 
fazenda  ,  e  logo  por  todos  foi  havido  por 
Governador  da  índia  ,  fazendo-fe  diíTo  hum 
termo  ,  cm  que  todos  fc  aííináram.  O  Gover- 
nador Pêro  Mafcarenhas  começou  a  correr 
como  Governador  ,  e  determinou  de  íe  ir 
a  efperar  os  levantes  aos  ilheos  de  Pulopuar 
pêra  ver  fe  em  Outubro  podia  paíTar  á  ín- 
dia. E  poilo  que  teve  contrariedades  da  par- 
te dos  Pilotos  5  todavia  entrada  de  Agoílo 
fe  embarcou  no  galeão  em  que  foi  António 
da  Silva ,  e  metteo  de  poíTe  daquella  capi- 
tania a  Jorge  Cabral ,  ao  que  veio  com  em- 
bargos Aires  da  Cunha;  porque,  conforme 
ao  Regimento  que  alli  deixou  Aífonfo  d' Al- 
boquerque,  a  clle  pertencia  aquelia  capita- 
nia 


I 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VI.    41 

iiía  por  Capitão  mí5r  daquclle  mar ,  o  que 
ElRey  depois  confirmou  por  hum  Alvará, 
pelo  qual  Nuno  Vaz  Pereira  por  morte  de 
Jorge  de  Brito  houve  fentença  contra  An- 
tónio Pacheco  que  era  Alcaide  mór.  A  tu- 
do refpondeo  Pêro  Malbarenhas  Governa- 
dor ,  que  elle  não  quebrava  Regimentos , 
que  aquella  fortaleza  não  vagava  por  fua 
tnorte  ,  fenão  por  fucceder  na  governança 
da  índia  ,  e  que  o  íeu  tempo  que  lhe  fal- 
tava por  fervir  o  podia  dar  a  quem  quizeC- 
fe :  fobre  iílo  proteílou  Aires  da  Cunha  por 
feus  ordenados  contra  elle.  Partido  o  Go- 
vernador de  Malaca  ,  foi  tomar  os  iíheos 
de  Pulopuar,  onde  lurgio  pêra  efperar  pe- 
los levantes ;  e  eítando  aqui ,  lhe  deo  hum 
tempo  tão  groíFo  que  eíleve  perdido ;  e  lhe 
foi  forçado  fazer-fe  á  vela  pêra  Alalaca  ,  aon- 
de chegou  com  o  maílo  quebrado  por  três 
partes.  Aqui  achou  Francifco  de  Sá ,  e  Dom 
Jorge  de  Menezes  ,  que  por  acharem  tem- 
pos contrários  ,  tardaram  até  então ,  os  quaes 
o  receberam  como  a  Governador  da  índia  , 
dando-lhe  a  obediência.  E  iábendo  elle  que 
D.Jorge  levava  a  capitania  de  Maluco^  por 
lha  ter  dada  o  Governador  ,  D.  Henrique 
lha  confirmou  ,  e  o  defpachou ,  dando-lhe 
mais  hum  navio,  e  o  defpedio  com  Regi^ 
mento  que  fe  foíTe  por  via  de  Borneo ,  por 
fer  a  jornada  mais  curta  ,  que  pela  Jaoa , 

por 


42  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

por  onde  era  forçado  invernar  em  Amboi- 
iio.  Simão  de  Soula  Galvão ,  que  iiia  pêra 
Capitão  mor  do  mar  de  Maluco ,  deixou-fe 
ficar  em  Malaca  ,  aíii  por  faber  alli  que  o 
que  levava  era  coufa  pouca ,  como  porque 
Pêro  Mafcarenhas  tratava  de  ir  Ibbre  Bin- 
tão  ,  em  quanto  Francifco  de  Sá  alli  eílava 
com  faa  Armada ,  por  fer  muito  neceíTario 
pêra  a  quietação  daquella  fortaleza  tirar 
dalli  aquelle  inimigo  :  pelo  que  tinha  man- 
dado preparar  muitas  coufas  pêra  aquelia  jor- 
nada ,  de  que  adiante  daremos  razão. 

CAPITULO     VIL 

De  como  Eitor  da  Silveira  partio  de  Or- 
muz a  efperar  as  nãos  de  Meca  :  e  de  co- 
?no  Melique  /Iz  Capitão  de  Dio  tratou  de 
dar  aquelia  fortaleza  aos  Portuguezes.  Do 
fundamento  daquella  Ilha  ,  e  do  tempo  em 
que  os  Mouros  conquiftàram  aquelle  i\ey no  ^ 
e  do  que  pajfou  Eitor  da  Silveira  com  Me- 
lique  Az. 

DEixámos  o  Governador  Lopo  Vaz  de 
Sampaio  invernando  em  Ormuz ,  on- 
de proveo  em  muitas  coufas  daquelle  Rey- 
no ;  e  tanto  que  fe  acabou  o  mez  de  AgoC- 
to ,  defpedio  Eitor  da  Silveira  por  Capitão 
mor  de  quatro  galeões ,  e  duas  caravelas  pe- 
ja ir  efperar  as  náos  que  haviam   de  ir  de 


Década  IV.  Liv.  L  Cap.  VIL  43 

I  Meca  pcra  Cambayn  ,  que  íèmpre  hiam  de- 
mandar á  ponta  de  Dio ,  onde  lhe  deo  por 
Regimento  que  efperaíTc  por  ellas.  Os  Ca- 
pitães de  fua  companhia  eram  Franciíco  de 
Mendoça ,  Manoel  de  Brito  ,  e  Manoel  de 
Macedo ,  que  hiam  em  galeões :  os  das  ca- 
ravelas não  achámos  os  nomes.  Partido  Ei- 
tor  davSilveira  de  Ormuz,  logo  o  Governa- 
dor deo  á  vela  apôs  elle  pêra  Goa.  Eitor 
da  Silveira  chegando  á  ponta  de  Dio  ,  dei- 
xou-fe  alli  andar  efperando  pelas  náos  ,  e 
liuns  ,  e  outros  deixaremos  por  hum  pouco, 
porque  he  neceíTario  darmos  razão  das  cou- 
ías  que  nefte  rempo  fuccedéram  no  Rcyno 
de  Cambaya  ,  que  fazem  ao  fio  da  noíTa  hií^ 
toria  y  e  primeiro  que  tudo  ,  diremos  de  fua 
origem, ,  e  fundamento  ,  poilo  que  João  de 
Barros  o  tenha  muito  bem  feito  na  fua  ter- 
ceira Década.  Mas  porque  algumas  coufas 
lhe  íicáram  ,  as  quaes  nós  alcançcámos  de  mais 
perto  5  que  nao  ferao  de  pouco  goíro  pêra 
os  curiofos  ,  as  tornaremos  a  recitar ,  por- 
que com  o  favor  Divino  havemos  de  ir  con- 
tinuando com  todos  os  Reys  ,  que  foram,  fuc- 
cedendo  nelle  até  vir  a  poder  de  Magores. 
Pelo  que  he  de  faber ,  que  efte  Reyno ,  que 
chamamos  de  Cambaya  ,  he  o  do  Guzara- 
te ,  que  os  mais  dos  Geógrafos  lançam  er- 
radamente do  Indo  pêra  fora  ,  como  em  ou- 
tra parte  moílraremos.  Efte  Reyno  foi  fem- 

pre 


44  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

p-e  povoado  de  dous  géneros  de  Gentios  , 
Guzarates ,  eBaneanes,  todos  muito  fuper- 
fliciofos ,  coino  em  Teu  lugar  fe  verá  ,  quan- 
do fallarmos  de  toda  eíla  gentilidade  da  ín- 
dia. Os  Guzarates  rodos  são  dados  á  mecâ- 
nica ,  em  que  fe  eílremáram  de  todos  os  do 
Oriente ,  cujas  louçainhas  já  em  tempo  dos 
Romanos  eram  muito  eftimadas  ,  as  quaes 
hiam  ter  a  elies  por  via  do  mar  Roxo,  co- 
mo fe  vê  em  Arriano  Author  Grego  no  tra- 
tado que  fez  fobre  aquella  navegação  ,  no 
qual  nomea  muitas ,  e  diverfas  fortes  de  rou- 
pas ,  como  sáo  ,  ganife  ,  monoclie  ,  fagma- 
togene ,  milcciíini ,  que  diz  ferem  muito  fi- 
nas ,  e  de  algodão  :  pelo  que  quanto  a  nós 
parece  ,  que  eram  os  canequis  ,  bofetás  ,  bei- 
rames ,  fabagagis ,  e  outras  ,  que  fe  acham 
efcritas  nos  livros  das  leis  dos  Romanos , 
dos  quaes  coftumavam  a  pagar  grandes  di- 
reitos ,  e  ainda  hoje  entre  nós ,  com  aquel- 
le  Reyno  eftar  deílruido  ,  pelas  mudanças 
que  nelle  houve  ,  a  fineza  de  fuás  roupas 
de  muitas  fortes  ,  a  delicadeza  de  fuás  obras 
são  tidas  em  mais  perfeição  que  todas  as  da 
índia.  OsBaneanes  sao  todos  dados  á  mer- 
cancia 5  em  que  também  precederam  a  to- 
dos por  fua  grande  habilidade  ,  e  agudeza  , 
pela  qual ,  e  per  outras  partes  que  nelles  fe 
notam  ,  prefumem  os  Theologos  Chriílãos 
da  índia,  que  defcendem  de  algum  dos  tri- 

bus 


y  í 


1 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VII.  45* 

bus  de  Ifrael ,  que  sao  defaparecidos  ;  e  ain- 
da mais  o  parecem  no  grande  eftudo  ,  e  cui- 
dado que  todos  põem  em  enganar  os  Chrií^ 
tãos  5  como  coufa  que  tem  por  preceito.  Am- 
bas  eílas  naç6es    de  gentes  sao  tão  fraquií^ 
limas  ,  e  aíFeminadas ,  que  não  fazem  dilFe- 
rença  a  mulJieres ,  m,ais  que  nas  barbas.  Vi- 
veram eftes  homens  muitas  centenas    de  an- 
nos   fem  fentirem  jugo  alheio  até  quaíi   os 
de  noíTa  Redempção  de  cento  ,  que  defcêram 
deíTes  defertos  debaixo  do  Norte  hum  gran- 
de  enxame   de    Gentios   repartidos   em  tri- 
bus  5   huns  Magores  ,  outros  Tártaros  ,  ou- 
tros Chacatais ,  e  outros  Resbutos  ,  que  vie- 
ram conquiílando  tudo   o  que  jaz  do  Cau- 
cafo  pêra  baixo  até  efte  Reyno  de  Cambaya  , 
repartindo- íe  eftes  tribus  por  eftas  Provincias , 
ficando-as  lenhoreando ,  e  aqueIJas  do  Aga- 
ra  5  Mandou  ,  e  outras  por  derredor  ficaram 
em  poder  de  Magores  ,   cujos  Reys  as  fe- 
nhoreáram  muitos  annos  ,   e  ainda  hoje  na 
Cidade  do  Mandou  lé  vem  três  ,    ou  qua- 
tro  fepulturas    de  Reys  que  alli  reinaram , 
cujos  letreiros  dizem  lerem  Magores.  E  ain- 
da fe  prefume  mais ,  que  eftes  Magores  fo- 
ram ienhores  de  toda  a  índia  até  o  mariti- 
mo  delia  ,  onde  ainda  hoje  fe  vem  duas  for- 
mofas  Cidades  fundadas  porelles,  huma  na 
cofta  de  Dio,   e  outra  na  do  Canará ,  cha- 
madas  Mangalor  ^  cujo  verdadeiro  nome  he 

Mon- 


46  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Mongulor  ,  porque  aíll  fe  chamam  eítas  gen- 
tes ,  e  não  Magores ;  e  na  da  coíla  do  Ca- 
nará  íe  vem  também  fepulturas  antiquiílimas , 
por  cujos  letreiros  fe  vê  que  jazem  alli  Reys 
Magores  .  ícgundo  nos  affirmáram  alguns 
Canarás  doutos ,  e  antigos.  Depois  foi  efte 
'  Reyno  Guzarate  lenhoreado  de  Resbutos , 
homens  muito  dados  ás  armas  ,  mas  gran- 
des ladroes  ,  e  tyrannos.  Eíles  parece  que  tira- 
ram efte  Reyno  das  mãos  dos  Magores ,  e 
repartiram  todas  aquellas  Provincias  entre 
íi  5  tomando  as  cabeças  o  titulo  de  Raiáz , 
que  he  o  mefmo  que  Governadores.  Eftes 
ficaram  íenhores  de  todo  o  Induftao  até  mui 
perto  dos  annos  mil  e  trezentos  ,  que  tor- 
nou a  fortuna  a  defandar  eíla  roda ,  (como 
tem  feito  em.  todas  as  Monarquias  .  e  não 
poderão  deixar  de  o  fazer  em  quanto  du- 
rar o  Mundo  ,  por  fer  naturalmente  variá- 
vel ,  e  inconílanre.)  Vieram  todos  eftes  Raiáz 
a  ferem  conquiílados  de  hum  Rey  do  Dely 
chamado  Soltao  Nofaradi  ,  que  fe  alevan- 
tou  no  Mundo  quafi  cem  annos  primeií-Q 
que  ogrãoTamurlang ,  e  foi  maior  que  el- 
le ,  aíli  em  forças ,  como  em  eftados ,  por- 
que veio  a  fenhorear  defdo  rio  índio  até  o 
Gango  5  e  tem  mais  de  quarenta  gráos  de 
latitud  pêra  o  Norte.  Neííe  Reyno  do  Gu- 
zarate deixou  hum  Governador  ,  e  em  to- 
dos os  do  Decaii  outro  ,  de  quem  em  feii 

lu- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VIL  47 

lugar  fallaremos,  e  recolhido  pêra  oDely, 
falcceo  em  poucos  tempos.  Tanto  que  lua 
morte  foi  íabida ,  Jogo  fe  lhe  rebelaram  to- 
dos os  Eftados  5  e  Jevantáram-fe  com  elles 
os  Capitães  tomando  títulos  de  Reys  :  efte 
do  Guzarate  fe  intitulou  Soltao  Maamed  , 
que  foi  homem  valerofo  ,  efoube-fe  fuílen- 
tar  naquelle  império  ,  deixando-o  a  feu  fi- 
lho Daudarcan  muito  engrandecido.  Efte 
Daudarcan  nao  foi  de  menos  animo  que  feu 
pai  5  e  engrandeceo  em  feu  Reyno  tudo  o 
que  pode  ,  e  foi  o  que  edificou  a  Cidade 
de  Dio  naquella  Ilha  ,  que  antigamente  era 
habitada  de  pefcadores  :  tendo  aííi  niílo  ,  co- 
jno  em  tudo  o  mais  a  que  depois  chegou 
a  mefma  fortuna  que  a  Cidade  de  Veneza, 
tão  pequena  em  feu  principio ,  tamanha  de- 
pois em  grandeza  ,  riqueza ,  e  poder.  Rei- 
nou efte  Rey  muitos  annos ,  e  iuccedeo-lhe 
feu  filho  Soltão  Mahamede  ,  que  havia  já 
mais  de  quarenta  annos  que  reinava ,  quan- 
do aquelle  valerofo  Capitão  Vafco  da  Ga- 
ma delcubrio  a  índia.  Efte  foi  o  que  deo 
aquella  Ilha  a  Melique  Az  ,  (como  fe  vê 
na  terceira  Década  de  João  de  Barros.)  Por 
fua  morte  herdou  o  Reyno  feu  filho  Amo- 
dofar ,  que  teve  muitos  filhos ,  e  o  primo- 
génito fe  chamou  Soltan  Bador,  e  não  Ba- 
dur  5  como  as  hiftorias  da  índia  lhe  cha- 
mam.  Eíle  fendo  ainda  moça,  ou  por  di- 


48  ÁSIA  DE  Diogo  de  Coiíto 

zercm  a  fcu  pai  os  Aílrologos ,  que  em  po- 
der do  filho  mais  velho  le  perderia  aquelle 
Reyno  ,  ou  (o  que  parece  mais  certo)  que 
por  defejar  de  o  dar  ao  outro  filho  mais 
moço  ,  a  que  eílava  afeiçoado ,  parece  que 
moílrava  má  vontade  no  Bador  ,  que  ou  por- 
que foíle  avilado  diílo,  ou  porque  entendeí- 
fe  no  pai  que  Ihedefeiava  a  morte,  furtou- 
Ihe  o  corpo  ,  efoi-íè  por  eíTe  Induítao  acima 
em  trajos  de  peregrino,  a  que  clles  chamam 
Calandar  ,  e  aíTi  andou  muitos  annos  apren- 
dendo diíFerentes  línguas,  vendo,  e  notan- 
do novos  ritos  ^  e  coftumes  ,  e  coulas  muito 
novas ,  e  peregrinas.  Em  quanto  ellc  aíli  an- 
dou faleceo  o  pai ,  e  fuccedeo  no  Reyno  o 
irmão  a  que  o  pai  defejava  de  o  dar ,  que 
durou  pouco ,  e  deixou  o  Reyno  ao  outro 
irmáo  mais  moço ,  a  que  não  ioubemos  os 
nomes.  Correndo  as  novas  por  eíTe  Induf- 
tão  da  morte  de  Pvlodofar  ,  chegaram  ao 
Bador  ,  que  logo  voltou  pcra  vir  requerer 
o feu  Pveyno  ,  e  aíli  em  trajos  de  Calandar, 
dizem  ,  que  entrou  na  Corte  do  Amadabá , 
onde  eílava  ainda  fua  mai  viva  ,  e  o  Rey 
feu  filho,  que  era  ainda  mancebo;  efem  le 
dar  a  conhecer  a  peíToa  alguma  ,  entrou  com 
a  mai ,  c  fc  lhe  dcfcubrio  ,  pedindo-lhe  que 
quizeíle  ordenar  com  que  houveííe  o  feu 
Reyno.  A  Raynha  (pode  muito  bem  fer 
que  não  foffe  fua  mãi,  fenao  fua  madrafta, 

e  que 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VIL  49 

€  que  os  Guzarates  que  ifto  contâo  fe  em- 
barníTcin)  IhediíTe,  que  fe  fofle ,  porque  fe 
feu  irmão  foubeífc  delle  ,  que  o  mandaria 
matar ,  do  que  nós  inferimos  que  eila  feria 
mai  do  Rey  ,  e  nao  do  Bador.  Elle  vendo 
feu  defengano  ,  foi-fe  pêra  o  Rey  do  Man- 
dou 5  e  fe  llie  defcubrio ,  pcdindo-ihe  aju- 
da ,  e  favor  pêra  cobrar  feu  Rcyno.  E  co- 
mo os  grandes  do  Mundo  nenhuma  coufa 
mais  os  move  ,  que  miferias  de  hum  Prin- 
cipe  deílerrado  ,  prometteo-lhe  rodo  o  favor 
até  ir  em  peífoa  ajudallo  ;  e  pêra  iíTo  foli- 
citou  alguns  Reys  vizinhos  ,  que  fe  ajuntá- 
r^ii  com  elle  com  grande  poder.  Alguns 
Bfcritores  noíTos  dizem  ,  que  o  Bador  que 
fe  fora  ver  com  a  Raynha  de  Chitor ,  que 
fecliamava  Crementi ,  que  havia  pouco  viu- 
vara ,  e  lhe  ficara  Imm  filho  menino  ,  em 
cujo  lugar  ella  governava  aquelle  Reyno  , 
e  que  ella  fora  a  authora  da  liga  com  o 
Rey  do  Mandou  ,  e  outros  pêra  reftituirem 
Bador  no  feu  Reyno  ,  no  que  fe  enganaram  , 
antes  o  mor  inimigo  que  efta  fenhora  teve 
foi  o  Bador  ,  porque  depois  de  eítar  quie- 
to no  Reyno  de  Cambaya  ,  lhe  foi  tomar 
o  feu  ,  como  na  quinta  Década  diremos. 
Em.  fím  juntos  aquelíesRcys  com  o  Bador, 
que  também,  folicitou  por  cartas  alguns  Se- 
nhores de  Cambaya  pêra  ferem  de  fua  par-» 
te  5  foi  centra  o  irmão ,  e  entrou  conquif- 
Couto.Tom.LP.L  D  tan- 


5'0    ÁSIA  DE  Diogo  DE  Couto 

tando  aquelle  Reyno  ,  e  íliliindo-lhc  o  ir- 
mão ao  encontro  em  huma  batalha  eampal  , 
foi  morto  ,  e  desbaratado  ,  e  o  Bador  fe 
apoderou  daquelle  Reyno.  Succedeo  iílo  no 
anno  de  vinte  e  cinco  atrás  paíTado.  O  Ba- 
dor, como  era  máo  ,  cruel,  ç  fraco ,  C^o^J" 
fas  que  andam  fempre  juntas  fraqueza  a  crue- 
za , )  começou  a  matar  todos  os  Capitães 
que  favoreceram  o  irmão  ,  e  o  quiz  fazer 
a  outro  fó  que  lhe  ficava  ,  que  era  o  menor 
de  todos ,  que  por  fer  aviíado  ,  fe  acolheo 
era  trajos  mudados ,  e  fe  foi  por  elTa  terra 
dentro,  e  dahi  a  alguns  annos  por  via  do 
Cinde  foi  ter  a  Ormuz  .  lendo  Capitão 
daquella  fortaleza  António  da  Silveira  ,  que 
teve  rebate  delle  ,  e  o  tomou  ,  e  embarcou 
pêra  Goa  ,  e  o  mandou  ao  Governador  Nu- 
no da  Cunha  ,  como  na  quinta  Década  di- 
remos. Eftava  naquelle  tempo  por  Capitão 
deDioMelique  Saca  filho  de  Melique  Az, 
aquém,  o  Soítão  A^amude  tinha  dado  aquel- 
la  Ilha.  Eíle  receando-fe  das  muitas  cruezas 
que  o  Bador  ufava  com  todos,  não  fe  ha- 
vendo por  feguro  delle  ,  determinou  prei- 
tear-fe  com  os  Portugueze?  ,  e  dar-lhes  aquel- 
la  fortaleza  pêra  fegurar  lua  vida  ,  e  a  de 
fua  mulher,  c  filhos,  e  feus  ihefouros.  Pe* 
lo  que  logo  defpedio  recado  a  Chriftovao 
de  Soufa  Capitão  de  Chaul  ,  pedindo-lhe 
lhe  •  mandaíTe   hum  homem   honrado    pêra 

tra- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VIL  5-1 

tratar  com  clle  coiiflis  que  cumpriam  aofer- 
viço  d'E!Rey  de  Portugal.  Chegou  eíle  ho- 
mem a  Chaul  ,  e  dco  o  recado  a  Chriíto- 
váo  de  Soufa  ,  que  o  deteve  ,  porque  cada 
dia  cfperava  pelo  Governador.  Poucos  dias 
depois  chegou  áquella  Cidade  Eitor  da  Sil- 
veira com  três  náos  de  Meca  ,  que  tomou 
na  ponta  de  Dio  ,  cujos  quintos  fó  pêra 
EiRey  miontáram  leíTenta  mil  pardáos  ;  e 
logo  a  quinze  de  Setembro  hum  dia  ,  ou 
dons  depois  ,  chegou  o  Governador ,  que 
foi  bem  recebido  da  Cidade  ,  e  apoíentan- 
do-íe  na  fortaleza  ,  lhe  aprefentou  Chriílo- 
váo  de  Souía  o  Em.baixador  do  ?víelique 
Saca  ,  e  elle  lhe  deo  o  feu  recado.  O  Go- 
vernador vendo  que  o  negocio  era  de  im- 
portância ,  determinou  de  ir  em  peíToa  a 
Dio  ,  mas  foi  contrariado  dos  Capitães  ,  di- 
zendo-liiC  ,  que  náo  convinha  abalar-fe  pêra 
coufa  que  nao  fabiam  fe  feria  invenção , 
mas  que  mandafie  huma  peílba  de  confian- 
ça ,  e  que  fe  detiveiTe  naquella  Cidade  té 
ver  o  em  que  aquilio  parava.  Com  ifto  def- 
pedio  o  Governador  Eitor  da  Silveira  com 
alguns  navios  ligeiros  ,  e  huma  galé  ,  em 
que  elle  hia  ,  e  furgio  na  bahia  de  Dio  ,  man- 
dando pelo  Embaixador  pedir  a  Melique 
Saca  que  fe  viflem  fòs ,  o  que  Melique  Sa- 
ca fez  ,  e  de  noite  foi  Eitor  da  Silveira  á 
porta  da  fortaleza ,  e  á  borda  da  agua  veio 

D  ii  Me- 


5'2   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Meliqiie  Saca  failar-lhe  :  e  nas  praticas  que 
teve  com  elle  lhe  diííe  ,  que  elle  dcícjava 
muito  de  entregar  aquelia  fortaieza  ao  Go- 
vernador da  índia  ,  ir.as  que  havia  de  íer 
com  condição ,  que  o  liavia  de  mandar  pôr 
em  Jaqnete  com  toda  a  artill^eria  delia  ,  que 
havia  de  levar  ,  e  que  lhe  haviam,  de  dar 
ametade  do  rendimento  da  Alfandega  daquel- 
la  Ilha.  Eiror  da  Silveira  lhe  louvou  fua 
determinação  ,  e  íe  lhe  cíFereceo  ao  por  li- 
vremente na  parte  que  quizeíTe  ,  e  que  pê- 
ra as  condições ,  que  lhe  punha  ,  cUq  trazia 
poderes  do  Governador  ,  em  cujo  nome  tu- 
do lhe  concedia.  Concluídos  niilo  ,  tornou- 
feEitor  da  Silveira  pêra  a  Armada  ,  porque 
Mclique  Saca  lhe  pedio  que  íe  detivefle  al- 
guns dias  em  quanto  negociava  luas  cou- 
lãs. 

CAPITULO     VIII. 

De  como  Hag  Mamuãe  tirou  a  MeUque 
Saca  de  entregar  a  fortaleza  a  Eitor  da 
Silveira^  e  elle  fe  foi  pêra  Chaul  fem  coit- 
cluir  em  nada  :  e  de  como  o  Hag  Mamude 
lhe  tomou  a  fortaleza  por  traição  ^  e  a  en- 
tregou a  ElRey  de  Camhaya. 

EStava   ccin  Melique  Saca  hum  Mouro 
-feu   parente   chamado  Hag    Aíamudo, 
homem  máo,  perverfo,  e  muito  ambiciofo  : 

d' 


Década  IV.  Liv.  L  Cap.  VIIL  5-3 

efte  fahendo  dos  tratos  que  o  parente  trazia 
com  Eicor  da  Silveira ,  porque  fe  fiou  del- 
le  ,  e  entendendo  neiíe  o  grande  inedo  que 
tinha  d'£lRey  ,  conccbco  em  feu  animo  de- 
fejo  de  fe  fazer  fenhor  daquella  Ilha  ,  e  nas 
praticas  que  tiveram  fobre  o  negocio  ,  fem- 
pre  IhQ  gabou  a  determinação  que  tinha  to- 
mado na  entrega  da  fortaleza  ;  mas  que  hu- 
nia  fò  coufa  receava,  e  era,  que  como  Ei- 
tor  da  Silveira  o  tiveílb  em  feu  poder ,  com 
a  cubica  do  muito  thefouro  que  tinha ,  lhe 
quebraífe  a  f e ,  e  elle  ficaíTe  lem  fortaleza  , 
fem  flizenda  ,  e  fem  liberdade.  Não  foou 
ifto  mal  ao  Aielique  Saca  ;  porque  ,  como 
todos  os  Mouros  são  falfos  ,  e  fementidos  , 
fempre  imaginam  nos  outros  o  que  elles  di- 
riam ,  e  pedio  ao  Hag  Mamude  ,  que  o 
aconfelhaíte  naquelle  negocio.  O  Hag  Ma- 
mude como  tinha  já  traçado  na  fantaíia  a 
malicia  ,  e  traição  ,  que  com  qUq  depois  ufou  , 
diíTe-lhe  ,  que  era  de  parecer ,  que  refpon- 
delTe  a  Eitor  da  Silveira  ,  que  pêra  maior 
diííimulação  daquelle  negocio ,  fe  foííe  ellc 
pêra  Chaul ,  e  que  entre  tanto  ficaria  nego- 
ciando fuás  coufas  ,  e  embarcando  fua  fa- 
zenda em  algumas  cotias  que  pêra  iífo  ti- 
nha ,  fazendo-lhe  crer  que  já  na  Cidade  ha- 
via fobre  ilTo  algum  reboliço  ;  e  que  depois 
de  embarcar  a  artilheria  ,  pêra  que  havia 
miíler  vagar  ,   entregaria  a  fortaleza   a  qUq 

Hag 


54   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Hag  Mamude ,  e  que  depois  delle  ido  pê- 
ra Jaquete  elle  o  mandaria  chamar  ,  e  íhQ 
entregaria  a  fortaleza.  OMeiique  Saca  não 
entendendo  oamargoz  que  liia  debaixo  dcÇ- 
te  dourado  ,  parecco-lhe  aquelle  confeJlio 
bem  ,  e  pedio-Ihe  que  foíTe  ellc  o  portador 
daquelle  recado.  Hag  Mamude  foi-íe  huma 
noite  á  galé  de  Eitor  da  Silveira  ,  e  lhe 
pintou  aquillo  como  lhe  parcceo  convinha 
á  fua  tenção.  Eitor  da  Silveira  parccendo- 
Ihe  que  o  Meíique  Saca  eftava  já  arrepen- 
dido 5  lhe  diíTe  ,  que  do  alvoroço  da  Cida- 
de IhQ  nao  déíTe  coala  algutna  ,  porque  co- 
mo a  fortaleza  eftava  íobre  o  iut:  ,  facil- 
mente fe  Dodia  embarcar  com  tudo  o  que 
quizeíTe,  e  qUc  íicar  logo  de  poíle  da  for- 
taleza ,  fem  lho  ninguém  poder  eftorvar. 
Hag  Mamude  lhe  diíle  ,  que  aquillo  nao 
podia  fer  ,  porque  pêra  embarcar  roda  a 
artilheria  ,  e  fozenda  ,  havia  miíler  muitos 
dias  5  e  muito  vagar,  e  que  fe  aquella  Ar- 
mada eftivelfe  alli  todo  aquelle  tempo  ,  nao 
faria  mais  que  encher  aos  da  Cidade  de  fuf- 
peitas  ,  porque  já  traziam  algumas  ;  que  o 
bom  feria  defipparecer  dalli  ,  e  que  como 
Melique  Saca  tiveíTe  tudo  embarcado ,  lo- 
go o  mandaria  chamar  a  Chaul ;  e  que  tu- 
do eram  mais  dez  ,  ou  doze  dias.  Eitor  da 
Silveira  vendo  aquellas  cautelas  acabou  de 
aíTentar,  que  o  Melique  Saca  eftava  de  to- 
do 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VIII.  $$ 

do  arrependido  ,  e  que  o  meímo  Hiig  Ma- 
mude  o  aconlelh.aria  ,  e  o  divertiria  de  fua 
deteri-ninacáo.   HasfMamudc  fe  deípedio  de 
Eitor  da  Silveira  ,  que  logo  delpachou  hum 
navio  muito  ligeiro    com  cartas    ao  Gover- 
nador ,    em  que  í\\q  dava  conta  de  tudo  o 
que  paííava  ,  pedindo  que  lhe  mandaíTe  di- 
zer o  que  faria  naquella  matéria.    Eíla  car- 
ta a  mòílrou  o  Governador  em  confelho  aos 
Capitães  ,  pêra  ]Jie  aconíel harém  o  que  re- 
fponderia  ,  e  debatido  entre  elles  aquelie  ne- 
gocio ,   ficou  o  coQÍelho  partido    em  dife- 
rentes pareceres ;  porque    huns  diziam  ,  que 
ninguém    melhor    que   o  mefmo    Eitor   da 
Silveira ,  que  lá  eílava  com  o  negocio  entre 
as  mãos  ,    íe  poderia    determinar  naquelle , 
que  era  de  tanta  importância,  e  de  que  tan- 
ta honra  poderia  relultar  ao  Eítado    da  ín- 
dia ,   que  fe  lhe  remetteííe  toda  a  rcfoluçao 
delle.  Outros ,  em  que  a  inveja  parece  tinha 
entrado  ,  por  fer  aquelie  o  mór  negocio  ,  e 
mais  honrofo  da  índia  ,  diíTeram  ,  que  pois 
Eitor  da  Silveira  eílaudo  lá  onde  via  tudo, 
mandava  pedir  confelho  ,    fem  fe  iabcr  der 
terminar  ,    que    o  bom  feria  mandar  lá  ou- 
tro Capitão  ,   que  folTe  homem  ,  que  náo  fi- 
caífe  dependurado  de  parecer  alheio,  fenao, 
que  fe  pudeíTe  refumir  com  o  feu  próprio , 
cuidando  cada  hum  dos  que  nifio  votaram , 
que  poderia  fer  eleito  peni  aquiilo  >  e  fazer 

na- 


^6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

naquclie  negocio  mais  que  Eitor  da  Silvei- 
ra 5  que  era  hum  dos  Capitães  de  esforço  , 
confeiho  5    e  experiência,  que  cm  feu  tem- 
po houve.  lílo  tbi  fempre  muito  antigo  na 
índia  entre  os  Fidalgos  ,  vituperarem  nuns 
aos  outros   que  eílam  em  melhor  lugar  ,    c 
t]ue  são  mais    pêra  elle  ,    fó  por  verem   íe 
os  podem  abater  pêra  íe  elles  alevantarem  : 
tendo  muitas  vezes  no  votar  mais  relpeitos 
aos  íeus  particulares ,  que  ao  ferviço  de  Deos  , 
■e  d'ElRey  ,   pelo    que  alguns  foram  caufa 
de  fe  perderem  grandes  occafióes ,  e  de  íuc- 
Cederem  muitos  deíaítres  ,    e  grandes  defa- 
-venturas.  E  tornando  a  noíTo  rio  ,  vendo  o 
Governador  aquella  confusão  ,   foi  com  os 
que  votaram  que  fe  remetteíTe  o  negocio  a 
Eitor  da  Silveira ,  e  logo  \\\q  jefpondeo  pe- 
lo mefmo  navio,  que  fizeífe  eile  o  que  lhe 
melhor  pareceiTe  ,    pois  eílava  com  o  jogo 
na  mão.    Dillo    também   houve   entre   ciles 
algumas  murmurações ,  dizendo  ,    que  tam- 
bém o  Governador  tivera  naquillo  refpeito 
ao  feu    particular  ,    e  que  queria    grangear 
Eitor  da  Silveira  pêra  o  ter   da  fua  parte, 
porque  parece  que  já  entendiam  nelle  aguas 
de  não  entregar  o  governo   a  Pêro  Maica- 
renhas.    Dada  eíla  carta  a  Eitor   da  Silvei-» 
ra  ,  como  o  tomou  já  defconíiado  ,  e  enfa- 
dado das  dilações  do  Zviouro  ,    parecendo- 
Ihe  que  nunca  entregaria   a  fortaleza  ,  lar- 
gou 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap/VIII.  5-7 

goii  tudo  ,  e  deo  á  vela  pêra  Chaiil ,  fcni 
outras  occafioes  n^ais  que  as  de  fuás  íuípei- 
tas  ,  cm  que  fe  enganou  ,  como  depois  fe 
verá.  Cheirado  Eitor  da  Silveira  a  Chaul , 
pelas  informações  que  deo  ao  Governador 
dcfirtio  do  negocio  ,  e  determinou  de  o  man- 
dar -ao  eftreito  de  Meca  ,  por  haver  algu- 
mas novas  de  galés  ,  de  que  também  quiz 
aviíar  ElRey  ,  c  mandou  com  muita  brevi- 
dade negociar  hum  daquellcs  galeões,  de  que 
deo  a  capitania  a  Francilco  de  Mendoça , 
e  o  defpedio  pêra  o  Reyno  em  fim  de  Ou- 
tubro ,  eícrevendo  a  ElRey  tudo  o  que  até 
então  tinha  fuccedido,  e  certiíicando-lhe  fa^ 
zerem-fe  em  Suez  preíles  muitas  galés  pêra 
paíTarem  á  índia  ,  pedindo  gente  ,  munições  , 
e  outras  coufas  ,  porque  já  de  Ormuz  tinha 
efcrito  de  lua  faccefsáo  ,  encommendando 
muito  a  Franciíco  de  Mendoça  ,  que  ira- 
balhaíTe  por  tomar  as  náos  antes  que  par- 
tiíTem  do  Reyno.  Defpedio  dalli  também 
o  Governador  o  navio  do  trato  de  ÇoFala , 
de  que  era  Capitão  Nuno  Vaz  de  Caílello- 
branco  ,  dando-lhe  por  regimento  déíTe  as 
novas  das  galés  por  toda  a  cofta  de  Melin- 
de ,  e  Moçambique,  porque  eíliveífem  fo- 
bre  avifo ,  e  o  mefmo  efcreveo  a  Ormuz, 
e  ás  mais  Cidades  da  índia  ,  pedindo-lhes 
que  oquizeíTem  ajudar  com  alguns  navios, 
porque  determinava  de  ir  bufcar  os  Rumes, 

e  pe- 


5*8   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

e  peleijar   com  elíes  ,   o  que  todas  fizeram 
.mui  bem  ,  poraue  a  Cidade  de  Goa  armou 
logo  hum  galeão  ,  liuma  caravela  ,  e  huma 
galé  no  eftaleiro  ,  e  as  fizeram    á  cufta  dos 
moradores  com  muita  brevidade.  A  Cidade 
de  Chaul   fez    outra   galé.   O   Governador 
defpedio  dalli  gente ,   e  munições  pêra  Or- 
muz ,   e  efcreveo  a  Diogo  de  Mello ,  que 
mandaíle    ter   na    boca    do  eílreiro    Perfico 
navios  ligeiros  pêra  o  aviiarem  fe  houveíTe 
galés.  Providas  eftas  coufas ,  e  outras ,  que- 
rendo o  Governador  embarcar-ie  pêra  Goa  , 
tornou  a  tomar  parecer  lobre  as  coufas    de 
Dio  ,   e  aírentou-fe   que  deixaíTe   alli  Eitor 
da  Silveira  com  Armada  ,   e  que  mandaíTe 
faber   de  Meliqne  Saca    fua    determinação  ; 
mas  Eitor   da  Silveira  ,    que    fe  achou   no 
mefmo  confelho  ,    aíHrmou  que  tudo  o  de 
Melique  Saca  eram  invenções  ,  e  enganos , 
e  que  elle  fabia  muito  certo  que  nunca  en- 
tregaria   a  fortaleza  ;    e  aíTi  certificou  iílo  , 
que  defiftio  o  Governador   da  empreza  ,   e 
deo  á  véla  pêra  Goa.  E  em  quanto  faz  ef- 
ta  jornada  ,   continuaremos    com  Alelique 
Saca  ,  que  como  falia va  verdade  ,  e  fua  ten- 
ção foi   fempre    entregar   aquella   fortaleza 
aos Portuguezes,  por  fegurar  lua  vida,  erri 
Eitor  da  Silveira  dando  á  véla  pêra  Chaul , 
começou  a  embarcar  a  artilheria ,  e  fua  fa- 
zenda, e  paílalla  ajaquete  pouco,  e pouco. 

Hag 


! 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  VIII.  $9 

HagMamude  como  trazia  máos  pcrilamen- 
tos  ,  e  era  inimigo  dos  Portuguezes ,  como 
rodos  os  Mouros  o'  são  por  natureza ,  ven- 
do a  preíTa  que  Melique  Saca  dava  no  dei. 
pejar  da  fortaleza ,  começou  cm  íegredo  a 
ajuntar  gente  ,  e  lendo  o  Melique  Saca  a 
folgar  a  luima  quinta  fua  que  tinha  da  ou- 
tra banda  duas  léguas  pela  terra  dentro , 
(  que  inda  hoje  guarda  feu  jiome  ,  e  fe  cha- 
ma a  quinta  do  Melique  ,  ")  metteo-fe  Hag 
Mamude  na  Cidade  com  muita  gente  arm.a- 
da  ,  e  começou  appellidalia  por  d'EiRcy  de 
Carabaya  :  e  logo  lhe  defpedio  recados  mui 
aprelTados  do  que  tinha  feito  ,  e  da  determi- 
nação de  Melique  Saca.  Dando-íc  eíie  re- 
cado a  ElRey  ,  logo  fe  partio  pêra  Dio  afor- 
rado com  dez  ,  ou  doze  mil  cavallos.  Meli- 
que Saca  que  citava  na  quinta  foube  logo 
a  traição  que  lhe  o  parente  ordenou  ,  e  en- 
tão cntendeo  a  malicia  ,  e  tenção  com  que- 
o  aconfelhára  naquellas  coufas  ,  e  partindo- 
fe  apreíTado  pêra  Dio ,  paíTou-íè  á  Ilha ,  e 
foi  delembarcar  á  porta  da  fortaleza  ,  em 
que  ainda  eílava  fua  mulher,  filhos  ,  e  fa- 
mília ,  e  mettendo-fe  dentro  fem  ninguém 
lho  poder  eílorvar  ,  defpedio  logo  recado 
mui  apre  (Fado  a  Chaul  a  chamar  Eitor  da 
Silveira  pêra  lhe  entregar  a  fortaleza.  Efte 
recado  foi  dado  a  Chriftovao  de  Soufa  ,  que 
por  não  ter  navios  não  foi  em  peffoa  ^  mas 

def- 


'6o  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

defpedio  huma  almadia  ligeira  com  recado 
ao  Governador ,  e  entre  tanto  foi  entreten- 
do o  Meliqje  Saca  cinco  ,  ou  íeis  dias  ,  man- 
dando-! he  affirmar  que  logo  feria  com  elle. 
ElRey  de  Cambaya  como  hia  pela  pofta , 
chegou  á  outra  banda  de  Dio  três  dias  de- 
pois que  o  Melique  Saca  defpedio  o  reca- 
do a  Chaul  ,  o  qual  fabendo  da  chegada 
d'ElRe7  5  logo  fe  em.barcou  com  fua  famí- 
lia ,  e  fe  paíTou  a  Jaqucte ,  deixando  a  for- 
taleza defpejada.  ElRey  de  Cambaya  paf- 
íbu-feáílha,  e  deo  a  capitania  daquella  for- 
taleza a  Hag  Mamude  ,  refervando  pêra  fi 
as  rendas  da  Alfandega.  Efte  Mouro  foi  de- 
pois o  mor  inimigo  que  o  eftado  teve  ,  como 
pelo  decurfo  da  hiftoria  fe  verá  ,  donde  fe 
vê  claro  quanto  pode  hum  defcuido  ,  e  quan- 
ta força  tem  hum  refpeito  particular ,  que 
muitas  vezes  foram  caufa  de  grandes  da- 
mnos ,  e  fizeram  perder  grandes  occafioes  , 
como  vimos  nefte  negocio ,  de  que  refultou 
perderem  os  Portuguezes  defta  vez  eíla  for- 
taleza,  e  vir  a  poder  do  mór  inimigo  que 
a  índia  teve ,  e  cuftar  depois  tantas  mortes 
de  Fidalgos ,  e  Cavalleiros  ,  tantas  defpezas 
em  Armadas  primeiro  que  tornaíTe  a  vir  a 
noífo  poder,  tendo-a  deíla  vez  na  mão  fem 
cuíto,  e  fem  trabalho. 


CA- 


Década  IV.  Liv.  I.  6i 

CAPITULO     IX. 

Da  armada  qtie  ejlc  anno  de  Tinte  e  féis 

fartto  do  Reyno :  e  das  fwvas  fuccefsoes 

que  ElRey  yiwjtdou :    e  de  como  Affon- 

fo  Mexia  Veador  da  fazenda  abrio 

a  primeira  fuccefsao  ,  em  que  fuc- 

cedeo  Lopo  Vaz  de  Sardpaio, 

PElas  cartas  que  o  Governador  D.  Hen- 
rique de  Menezes  mandou  per  terra  ao 
Reyno  ,  em  que  dava  conta  a  ElRey  da 
morte  do  Conde  Almirante ,  e  de  lua  fuc- 
cefsao ,  e  do  eítado  cm  que  a  índia  íicava  , 
que  foram  dadas  a  ElRey  eíle  Outubro  pal- 
fado  de  vinte  c  cinco ,  foube  elle  as  novas 
do  que  na  índia  paflava.  E  fem  embargo 
de  andar  occupado  em  fuás  vodas ,  por  ca- 
iar com  a  Raynha  D.  Catliarina  Irmã  do 
Emperador  Carlos  V.  nao  fe  defcuidou  de 
prover  nas  coufas  da  índia  ,  mandando  ne- 
gociar cinco  náos  com  muita  preíTa  ,  que 
defpedio  efte  Março  de  vinte  e  féis  ,  pro- 
vendo em,  muitas  coufas  neceiíarias  ao  bom 
governo  da  índia,  principalmente  nas  luc- 
cefsões  da  governança ,  em  que  fez  mudan- 
ça ,  como  logo  fe  verá.  Eíla  Armada  náo  le- 
vou Capitão  mor :  os  Capitães  eram  Fran- 
cifco  de  Anhaya  ,  Triílão  Vaz  da  Veiga , 
António  de  Abreu  ,  (que  levava  a  capita- 
nia 


62  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

nía  iv.óv  do  mar  de  Malaca  ,  )  e  Vicente  Gil 
filho  de  Duarte  Triftao  armador  das  náos ; 
o  outro  foi  x\ntonio  Galvão  íilho  de  Duar- 
te Galvão,  que  por  fe  negociar  mais  tarde, 
quando  quiz  fahir  pêra  fóra  ,  faltou-lhe  o 
tempo  ,  e  depois  íe  fez  á  vela  a  dezefeis 
de  Maio  tao  tarde  ,  que  já  fe  defconfiava 
de  poder  paíTar  á  índia.  Efta  náo  indo  fe- 
guindo  fua  viagem  ,  entrando  na  coita  de 
Guiné ,  lhe  deram  tamanhas  calmarias  ,  que 
o  detiveram  porella  quarenta  dias,  e  quan- 
do lhe  deo  o  tempo  ,  que  já  foi  em  fim  de 
Junho  ,  houve  grandes  requerimentos  dos 
Oíiiciaes  que  fe  tornafíe  pêra  o  Reyno  ,  por- 
que além  de  fer  m.uito  tarde  ,  a  náo  era 
ruiín  ,  e  foífria  mal  a  véla ;  mas  como  An- 
tónio Galvão  era  homem  virtuofo  ,  e  de 
grande  animo ,  e  esforço ,  quietou  a  todos 
com  lhes  dizer,  que  cfperava  em  Deos  que 
lhe  havia  de  dar  muito  boa  viagem  dalli 
por  diante  ,  e  que  os  havia  de  levar  á  ín- 
dia juntamente  com  as  outras  náos ;  e  pon- 
do cobro  na  agua  ,  e  mantimentos  ,  foi  fe- 
guindo  fua  viagem  ,  ora  com  contraíles  ,  ora 
com  bonanças  até  dobrar  o  Cabo  de  Boa 
Efperança  já  no  tnez  de  Setembro.  Dalli 
foi  tomando  fua  derrota  com.  determinação 
de  ir  por  fóra  j  mas  o  Piloto  lhe  requereo 
que  folTe  tomar  Moçambique  ,  e  que  dalli 
iriam  invernar  á  índia  em' Abril  ^  e  que  af- 

a 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  IX.  63 

ji  fcguravam  as  vidas ,  e  a  náo ,  porque  in-» 
do  por  fóra  podiam-lhe  entrar  os  levantes 
que  era  já  tempo  ,  que  os  pediam  tom.ar  em 
paragem ,  que  quando  quizeíTem  voltar  pa- 
ra Moçambique  nao  pudeílem..  António  Gal- 
vão lhes  diíTe  ,  que  eíperava  na  Virgem  Nof- 
fa  Senhora  ,  que  os  havia  de  levar  a  Co- 
chim.  E  afii  era  tao  devoto  da  Senhora , 
que  quebrando- lhe  hum  dia  íeu  a  verga  gran- 
de ,  nao  quiz  que  trabalhaíTem  ,  c  aquelle 
dia  nao  fez  viagem  ,  aíli  eila  teve  particular 
cuidado  de  fuás  coufas.  António  Galvão  , 
porque  o  Piloto  lie  encampou  a  náo,  a  to- 
mou á  fua  conta  ,  mandando  a  via  .  toman- 
do o  Sol  ,  e  carteando  ,  porque  era  niílo 
muito  efperto ,  e  deo-lhe  NoíTo  Senhor  tão 
bom  tempo,  que  em  fim  de  Outubro  foram 
haver  viíla  das  Ilhas  de  Maldiva  ,  onde  lhe 
fahio  huma  embarcação  da  terra  com  hum 
Piloto  que  os  encaminhou  até  os  lançar  fó- 
ra delias ;  e  em  quinze  de  Novembro  foram 
tomar  Cochim  ,  onde  já  eílavam  as  náos  de 
Trilião  Vaz  da  Veiga  ,  e  Francifco  de  iV- 
nhaya  ,  que  também  foram  por  fóra  com 
tempos  bem  roins.  As  nãos  de  Vicente  Gil , 
e  de  António  de  Abreu  foram  por  dentro  , 
e  ficaram  invernando  em  Moçambique.  Che- 
gadas as  náos  ,  deram  ao  Veador  da  fazen- 
da os  faccos  das  vias ,  e  dentro  achou  duas 
fuccefsôes   da  governanta   da  índia  ,   com 

duas 


64  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

duas  cartas  dirigidas  ao  Veador  da  fazenda  , 
que  continham  o  legiiinte  :  Jjj/onfo  Mexia. 
EuElRey  "vos  envio  nuntofaudar,  Vor  duas 
Vias ,  que  vam  nejia  Armada  ,  vos  ynaiido 
dons  faccos  de  cartas  ,  e  de  [pachos  das  cou- 
fas  àefjas  partes  ,  que  ouve  por  yneu  ferviço 
que  agora  fof] em.  Hum  dclles  leva  Triftao 
Vaz-  da  Veiga ,  e  outro  Francifco  de  Anbaya  : 
tomai  as  cartas  que  vam  pêra  vós  ,  e  as 
do  Capitão  mor  lhe  dai  ^  e  ajji  a  todas  as 
outras  pejjoas  pêra  quem  vam  ,  e  não  fique 
nenhuma  por  dar  :  aos  que  efiiverem  fora 
donde  vós  efiiverdes ,  mandai-lhas  a  muito 
bem  recado  ,  e  neJla  Armada  me  enviai  hum 
rol  do  modo  que  tivejles  em  as  dar ,  e  em 
as  enviar  ,  e  tomai  difto  bom  cuidado  ,  por- 
que ei  por  muito  meu  ferviço  ferem  dadas 
todas  as  ditas  cartas.  As  Provisões  que 
aqui  vara  dasfuccefsoes  da  governança  da 
índia  tende  naquella  boa  guarda ,  e  fegre- 
do  ,  que  cumpre  a  meu  ferviço  ,  como  de  vós 
confio.  Efcrita  em  Almeirim  a  trinta  de 
Marco.  Fero  de  Alcáçova  Carneiro  a  fez 
anno  de  1526.  Tinha  outra  partícula  mais 
íibaixo  ,  que  dizia  afíi:  E  das  outras  Pro^ 
visões  quejd  lá  tendes  ,  7mo  fe  ha  de  ufar , 
e  as  tereis  em  boa  guarda ,  e  mas  trareis 
quando  embora  vierdes,  A  outra  Carta  era 
efcrita  a  quatro  de  Abril  ,  cinco  dias  de- 
pois,  enao  tinha  eíla  pofiilla ,  que  falia  no 

abrir 


Década  IV.  Liv.  L  Cap.  IX.  6j 

abrir  das  fuccefsocs.  Viílas  eílas  Cartas  pe- 
lo Veador  da  fazenda  ,  e  confiderando  ef- 
ta  addiçáo  derradeira  da  primeira  Via  ,  que 
dizia  que  fo  nao  ufaíTe  das  lucceísóes  que 
na  índia  eílavam ,  determinou  logo  de  abrir 
aquellas  que  hiam  de  novo.  E  ajuntando-fe 
na  Sé  de  Cochim  com  o  Capitão  D.  Vafco 
Deça  ,  e  António  Riquo ,  que  naquellas  náos 
tinha  vindo  com  o  cargo  de  Secretario  ,  João 
de  Ofouro  Ouvidor  geral  ,  João  Rabello 
Feitor  5  e  Alcaide  mor  ,  Duarte  Teixeira 
Thefoureiro  das  mercadorias  ,  os  Capitães 
das  náos  do  Reyno  ,  os  Vereadores ,  e  Of- 
ficiaes  da  Camera  ;  e  lendo-Ihcs  a  Carta  d'El- 
Rcy  ,  lhes  dilTe ,  que  por  ella  fe  mòftrava 
muito  claro ,  que  a  tenjao  d'ElRey  era  nao 
fe  ufar  das  fuccefsoes  que  na  índia  eílavam  , 
fenão  daquellas  que  naquellas  nios  manda- 
va ,  pelo  que  elíe  as  queria  abrir.  A  ifto 
atalhou  D.  Vafco  Deça  ,  dizendo  ,  que  fe- 
ria muito  grande  deferviço  d'ElRey  fe  tal 
fizeíTe  ,  porque  fua  tenção  não  era  ,  nem  po* 
dia  fer  ,  que  tendo-fe  já  uíâdo  das  fuccef- 
socs que  eítavam  na  índia  ,  fe  abriílem  as 
outras ,  porque  aííl  ficava  ElRcy  aíFrontan- 
do  o  Fidalgo  que  tiveííe  fuccedido  ,  fican- 
do cm  obrigação  de  lhe  fatisfazer  fua  hon- 
ra 5  porque  os  Reys  a  que  mais  eílimavam 
era  a  de  feus  vaíTallos  ,  porque  fe  foíTe  de 
outra  maneira  ,  não  haveria  quem  arrifcaffe 
Qouto.  Tom.  L  P.  /•         E  as 


66  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

as  vidas  por  feu  fervido  ,  (  coítio  os  Fidal- 
gos cada  dia  faziam)  com  tlperanças  de 
eJJe  os  honrar  ,  e  lhes  fazer  mercês  :  Qiie 
fe  ElRey  mandara  por  aquella  particula , 
fora  por  cuidar  nao  fe  ter  ainda  ufado  das 
fucceísoes ;  e  que  fe  fua  inten^^ão  fora  abri- 
rem-feeítas,  c  nâo  fe  ufar  das  que  já  lá  ef- 
tavam  ,  forçado  houvera  de  declarar ,  que 
poílo  que  fe  tivcíTe  ufado  das  fuccefsoes  que 
na  índia  eílavam,  havia  por  bem  abriffem 
aquella  ,  que  de  novo  mandava  ;  e  que  o 
homem  que  íiveíTe  fuccedido  nas  outras ,  fe 
embarcaífe  pcra  o  Reyno  ,  mandando  náo , 
e  ordem  pêra  ifTo :  E  que  a  tenção  d'ElRe)r 
mandar  ter  em  fegredo  as  fuccelsôcs  ,  que  na 
índia  dantes  eílavam  ,  era  por  nao  íi*tberem 
os  Capitães  que  nellas  eftavam ,  fe  fazia  el- 
lencllas  alguma  mudança  ,  pelos  nao  efcan- 
dalizar :  Que  lhe  requeria  da  parte  d'ElRey 
não  boliíTe  nas  fucceísoes  ,  porque  Pêro  Mal- 
carenhas  era  legitimo  Governador  ,  e  nao 
déíTe  occafião  a  divisões  ,  e  alterações  em 
meio  de  tantos  inimigos ,  e  mais  em  tempo 
que  eram  táo  certas  as  novas  das  galés  de 
Rumes  ,  que  pêra  as  efperar  era  neceífario 
cílarem  todos  unidos ,  e  conformes ,  e  nao 
em  bandos ,  como  eflavam  certos  bolindo- 
fe  nas  fuccefsoes.  Defte  parecer  foram  a  mor 
parte  dos  que  alli  eftavam ,  e  os  outros  do 
do  Veador  da  fazenda,  que  fe  refumio  em 

abrir 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  IX.  67 

abrir  a  primeira  fucccfsâo  ,  dizendo ,  que 
eJle  tomava  íobre  (i  aquelle  negocio ,  e  que 
eJIe  daria  conta  a  EIRey  do  que  fizera.  E 
abrindo  a  primeira  fucceísao ,  a  deo  a  Fer- 
não Nunes  Elcriváo  da  fazenda ,  que  a  leo 
alto  5  e  achou-íe  neila  dizer  EIRey  ,  que  ha- 
via por  bem  que  per  morte  do  Governador 
D.  Henrique  íuccedeííe  em  feu  lugar  Lopo 
Vaz  de  Sampaio  com  dez  mil  cruzados  de 
ordenado  ,  cinco  mil  em  dinheiro  ,  de  que 
íè  pagaria  na  índia  ,  e  outros  cinco  mil  em 
pimenta  comprado  do  leu  dinheiro  ao  par- 
tido do  meio.  E  que  feria  Capitão  mor  do 
xr.ar  António  de  Miranda  de  Azevedo  com 
dows  mil  cruzados  de  ordenado  cada  anno , 
mil  cm  dinheiro,  e  mil  em  pimenta  ao  par- 
tido do  Governador  ;  e  que  falecendo  dÍQ 
Lopo  Vaz  5  depois  de  entrar  na  governan- 
ça ,  em  tal  cafo  havia  por  bem  que  fucce- 
ácíTe  Pêro  Mafcarenhas  com  o  mefmo  or- 
denado. Eíla  fucceísao  foi  feita  em  Almei- 
rim por  Jorge  Rodrigues  a  quatro  de  Abril 
de  1^26,  O  Veador  da  fazenda  mandou  al- 
li  fazer  hum  auto  da  publicação  ,  em  que  fe 
aííinou  com  os  que  foram  do  feu  parecer; 
mas  todos  os  mais  clamaram  ,  e  proteílá- 
ram ,  dizendo  ao  Veador  da  fazenda ,  que 
cile  roubava  a  honra  a  Pêro  Mafcarenhiis , 
que  era  hum  Fidalgo  muito  honrado,  e  de 
grandes  merecimentos ,    e  que  já  fe  nao  el- 

E  ii  ca- 


68  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

cufavam  divisões  ,  e  bandos,  de  que  elle  ha- 
via de  dar  conta  a  ElRey.  AfFonfo  Mexia 
defpcdio  logo  hum  catúr ,  em  que  foi  Dom 
Henrique  Deça  com  recado  a  Lopo  Vaz 
do  que  tinha  feiro  ,  mandando-Ihe  a  nova 
fuccefsão  5  e  o  auto  da  poffe  da  governança 
da  índia ,  que  lhe  dava ,  e  efcrevco  á  Cida- 
de de  Goa  ,  requercndo-lhe  ,  que  conhecef- 
fem  Lopo  Vaz  por  verdadeiro  Governador , 
porque  ElRey  aííi  o  mandara  naquellas  náos  , 
e  que  houveíTem  por  bem  o  que  eftava  fei- 
to. Deixemos  D.  Henrique  Dcça  ,  e  tor- 
nemos a  continuar  com  o  Governador  Lo- 
po Vaz ,  que  deixámos  partido  pêra  Goa. 
Aos  dous  dias  que  parrio  de  Chaul  foi  fur- 
gir  fobre  a  barra  de  Dabul ,  onde  já  trazia 
determinado  de  dar  hum  bom  cafligo  ,  por- 
que fahiara  de  feu  porto  algumas  fuílas  a 
roubar  os  mercadores  que  navegavam  ,  e  car- 
regavam dentro  algumas  náos  pêra  Meca  , 
que  levavam  muita  pimenta.  Alli  ordenou 
toda  a  fua  gente ,  e  deo  ordem  á  defembar- 
cação  5  dando  a  dianteira  a  Eitor  da  Silvei- 
ra 5  e  paíTou  toda  a  gente  aos  navios  ligei- 
ros ,  e  batéis  dos  galeões ,  e  o  Governador 
na  gale  baftarda  foi  entrando  pelo  rio  den- 
tro com  grandes  eftrondos  de  inftrumentos  \ 
e  fendo  a  meio  rio ,  chegou  á  galé  do  Go- 
vernador huma  embarcação ,  em  que  vinha 
o  Tanadar  da  Cidade ,  e  entrando  na  galé 

apre- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap-  IX.  69 

aprefentou-fc  diante  do  Governador  com 
muita  humildade  ,  e  lhe  pedio  perdão  de  ' 
fuás  culpas ,  e  que  elle  eílava  muito  preftes 
pêra  as  fatisfazer ,  e  de  novo  guardar  as  pa- 
zes com  as  condições  que  elle  quizeíTe.  O 
Governador  o  recebeo  humanamente  ,  e  lhe 
diííe  ,  que  lhe  perdoava ,  porque  os  Gover- 
nadores d'EIRey  de  Portugal  tinham  por 
obrigação  recolherem ,  favorecerem  ,  e  per- 
doarem a  todos  os  que  fe  lhe  humilhaíTem  : 
que    elle    lhe  perdoava   com  condição  que 

Ilogo  mandaíTe  entregar  todos  os  navios  de 
remo  com  fua  artilheria  que  houveíTe  na- 
quelle  porto  ,  e  aíH  mefmo  huma  náo  que 
eftava  á  carga  pêra  ?víéca  por  ter  em  li  mui- 
ta pimenta.  O  Tanadar  lhe  diíTe  que  em  tu- 
do o  latisfaria ,  que  não  paíTaíTe  mais  avan- 
te. O  Governador  mandou  í urgir  no  meio 
do  rio  :  o  Tanadar  fem  fahir  da  galé,  man- 
dou trazer  tudo  o  que  o  Governador  lhe 
pedio,  e  lhe  entregou  alguns  navios,  e  a 
náo  com  a  carga  que  tinha.  O  Governador 
lhe  concedeo  novas  pazes ,  e  favores  ,  com 
que  elle  ficou  fatisfeito.  Aqui  chegou  hum 
Thomé  Pires  Capitão  de  hum  catúr  feu , 
muito  apreíTado ,  e  pedio  alviçaras  ao  Go- 
vernador de  como  fuccedêra  na  governança 
'  pelas  vias  que  EíRey  mandara  nas  náos ,  e 
i  que  D.  Henrique  Deça  ficava  em  Goa ,  e 
:  lOs  papeis.  O  Governador  lliedeo  alvi;ai^as, 

fen- 


70  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fentindo-fe  nelle  grande  alvoroço  ,  porque 
*  havia  que  já  ficava  ícgiiro  na  governança. 
Eílas  novas  fe  efpalháram  logo  pela  Arma- 
da ,  eftranhando  todos  o  que  AíFonfo  Me- 
xia fizera  ;  edilTeram  publicamente,  que  Pê- 
ro Malcarenhas  era  o  verdadeiro  Governa- 
dor ,  e  que  a  elle  conheciam  por  eíTe.  Lo- 
po Vaz  deo  logo  d  véla  pêra  Goa  ,  onde 
foi  recebido  como  Governador ,  e  D.  Hen- 
rique Deça  lhe  moftrou  o  traslado  da  iuc- 
cefsão  ,  e  outra  da  poíTe  ,  pelo  que  entregou 
logo  a  capitania  mor  do  mar  a  António  de 
Miranda  de  Azevedo ,  e  mandou  preparar 
huma  Armada  de  galeões  pêra  irem  ao  ef- 
treito  ,  e  deo  aquelia  jornada  a  Eitor  da  Sil- 
veira. E  em  quanto  fe  ficou  preparando  ^ 
elle  fe  embarcou  pêra  Cochlm  pêra  ir  fazer 
a  carga  ás  náos  do  Reyno.  Poucos  dias  de- 
pois do  Governador  partido  fe  embarcou 
Eitor  da  Silveira ,  e  dando  a  véla ,  logo  á 
fahida  de  Goa  achou  o  recado  de  Chrifto- 
váo  de  Soufa ,  em  que  o  mandava  chamar 
pêra  ir  tomar  poíTe  da  fortaleza  de  Dio.  E 
apreíTando-fe  com  eílas  novas  ,  chegou  a 
Chaul  ,  onde  já  era  chegado  recado  ,  que 
Melique  Saca  era  fugido ,  e  que  ElRey  de 
Cambaja  ficava  em  Dio ;  e  aííi  por  hum  na- 
vio que  chegou  de  Adem  ,  veio  nova  certa  , 
como  de  Suez  era  partida  huma  groíTa  Ar- 
mada de  Rumes,  que  o  Turco  mandava  à 


Dec.  IV.  Liv.  L  Cap.  IX.  E  X.  71 

índia  contra  os  Portuguezes.  Com  eílas  no- 
vas rcquereo  Cliriftovao  de  Souía  a  Eitor 
da  Silveira  que  fe  tornaíTe  pêra  o  Governa- 
dor ,  porque  nao  era  bem  foíTe  ao  eftreito 
com  aquella  Armada  ,  a  rifco  de  dar  com 
as  galés,  e  perder-fe,  no  que  fe  arrifcava 
toda  a  índia  ,  porque  nao  ficava  ao  Gover- 
nador Armada  com  que  poder  pelejar  com 
os  Turcos.  Eíle  requeri ii>ento  pareceo  bem 
a  Eitor  da  Silveira ,  e  tornou  a  voltar  pê- 
ra Goa. 

CAPITULO     X. 

Do  que  fez  o  Governador  em  Cochim  :  e  das 
nãos  que  partiram  pêra  o  Reyno  :    e  de 
como  ElRey  Z).  João  rcccbeo  o  Em- 
baixador AbexL 

PArtido  Lopo  Vaz  de  Sampaio  da  Ci- 
dade de  Goa ,  em  poucos  dias  chegou 
a  Cochim  ,  onde  foi  muito  bem  recebido 
de  Aítbnío  Mexia.  E  como  naquella  Cida- 
de eftava  a  mor  parte  da  nobreza  da  índia  , 
em  que  entravam  muitos  parentes ,  e  ami- 
gos de  Pêro  Mafcarenhas  ,  havia  grandes 
murmurações  fobre  a  fuccefsao  de  Lopo 
Vaz  ,  e  muitos  ajuntamentos  ,  e  magotes  pú- 
blicos ,  com  eftrondos  ,  e  uniões ,  dizendo 
foltamente,  que  roubavam  a  honra  a  Pêro 
Mafcarenhas,  e  que  elle  era  o  verdadeiro 

Go- 


72  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Governador  da  índia;  e  como  Lopo  Vaz 
lambem  rinha  muitos  do  feu  bando,  hiam- 
fe  travando  br'gas  ,  e  iiida  alguns  defahos 
particulares;  e  o  que  mais  avivou  ido,  foi 
chegar  hum  Junco  de  Malaca  pelas  oitavas 
do  Natal  ,  em  que  dava  novas  de  como  Pê- 
ro Mafcarenhas  ficava  embarcado  pcra  a  ín- 
dia j  e  obedecido  por Goveiuador  pela  pof- 
fe,  e  3utos  que  lhe  mandou  o  Voador  da 
fazenda  por  António  da  Silva  de  Menezes. 
Difto  ficou  Lopo  Vaz  de  Sampaio  muito  en- 
fadado 5  e  determinou  de  atalhar  algumas  def- 
ordens ,  com  mandar  avifar  Pêro  Mafcare- 
nhas do  que  era  fuccedido  ,  porque  nâo  cui- 
dafle  que  vinha  pêra  governar  a  índia  :  e 
logo  mandou  o  traslado  da  fuccefsao  que 
veio  do  Reyao ,  e  o  auto  da  pjlfe  a  Hen- 
rique Ferreira  Alcaide  mor  de  Coulão ,  pc- 
ra que  vindo  alli  Pêro  Mafcarenhas  ,  lho 
notificaífe ,  mandando-lhe  por  huma  Provi- 
são,  que  fe  quizeíTe  obedecer  áquelles  au- 
tos 5  que  o  agazalhaíTe  muito  bem  ,  e  quan- 
do não  ,  que  deixaíTe  cumprimentos  ,  e  o 
não  recolheííe  na  fortaleza.  E  porque  as 
uniões  crefciam  cada  vez  mais  ,  quiz  o  Go- 
vernador juílificar-fe  com  os  homens ,  prin- 
cipalmente com  os  Capitães  das  náos ,  por- 
que em  Portugal  lhe  não  eílranhaíTem  o  que 
fizera.  E  mandou  chamar  Baftião  de  Soufa , 
a  quem  tinha  dado  a  capitania  da  náo  de 

An- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  X.    73 

António  de  Abreu  ,  e  António  Galvão  ,  Frnn- 
cilco  de  Anhaya  ,  TrilMo  Vaz  da  Veiga,  e  Fi- 
lippe  de  Craílo  ,  que  alli  invernou  do  anno 
paíTado  ;  e  prefente  o  Secretario  António  Ri- 
co ,  lhes  dille  ,  que  da  uniáo  que  em  Co- 
chim  havia  fobre  íua  íliccefsao  ,  não  queria 
lomar  o  caíligo  que  o  cafo  merecia  nos  per- 
turbadores do  po\^o  ,  porque  def^íjava  de 
os  moderar ,  e  quietar  por  bem  :  que  lhes 
pedia  muito  ,  como  Fidalgos  honrados ,  e 
Capitães  d'EIRey  ,  e  que  o  não  haviam  mii- 
ter,  pois  lè  hiam  pêra  o  Reyno  ,  que  lhe 
diíTeflem  livremente  o  que  lhes  parecia  áã- 
quelle  negocio,  ele  entendiam  que  por  vir- 
tude dafuccefsão,  que  feabrio,  podia  el!e 
fer  Governador  da  índia  ,  e  fobre  iílo  lhes 
deo  juramento  dos  Santos  Evangelhos.  E 
como  elle  lhes  perguntou  ifto  ílmplesmente  , 
com  a  mefma  limplicidade  lhe  refpondéram 
que  não  tinham  dúvida  a  elle  ler  Governa- 
dor, porque  dafuccefsão  fe  entendia  clara- 
mente fer  eíTa  a  tenção  d'ElRey  :  fenao  quan- 
to Trilião  Vaz  paflbu  adiante,  e  diíTe,  que 
por  fe  evitarem  coufas  em  dcferviço  de  Deos  , 
e  d^ElRey  ,  elle  devia  de  fer  Governador 
da  índia  ,  pois  já  eílava  de  poíTe  ,  e  que  quan- 
to ao  direito  de  Pêro  Mafcarenhas  era  ne- 
celTario  ver  todas  as  Provisões  paíTadas  ,  por- 
que fem  iíTo  elle  não  podia  refolver-fe  em 
CO  ufa  alguma.  De  tudo  aquillo  mandou  Lo- 
po 


74  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

po  Vaz  fazer  hum  auto ,  em  que  todos  fe 
aflináram.  A  mefma  pergunta  fez  a  hum  Fr. 
João  de  Hayo  ,  da  Ordem  dos  Pregadores , 
homem  bom  Letrado  ,  que  lhe  affirmou  que 
era  verdadeiro  Governador  j  e  que  para  fer 
mais  notório  a  todos  ,  elle  o  affirmaria  o 
dia  feguinte  5  (que  era  da  Circumcisao  do 
Senhor  ,  )  em  que  havia  de  pregar ,  e  aííi 
o  fez ;  porque  no  cabo  do  Sermão  tratou 
das  murmurações  que  na  terra  havia  contra 
Lopo  Vaz  de  Sampaio  por  parte  de  Pêro 
Mafcarenhas ,  eftranhando-o  muito ,  e  affir- 
mando ,  que  Lopo  Vaz  de  Sampaio  eftava 
legitimamente  de  poíTe  da  governança  por 
alTi  fer  a  tenção  d'ElRey  ,  dando  fobre  iP- 
to  muitas  razoes ;  e  concluio  com  dizer ,  que 
o  mefmo  que  alli  dizia  fjftentaria  em  Sala- 
manca ,  e  Paris  ,  e  em  Portugal ,  para  on- 
de aquelle  anno  hia ,  pelo  que  fe  devia  de 
crer  que  falia va  verdade  fcm  fufpeita  ,  pois 
era  Frade  ,  que  não  tinha  neceíFiiade  do 
Governador ,  affirmando  ,  que  era  mor  ami- 
go de  Pêro  Mafcarenhas ,  que  feu.  E  re- 
quereo  a  Lopo  Vaz  da  parte  de  Deos ,  e 
d'ElAey  5  que  lhe  lembralTe  que  tinha  en- 
tre mãos  hum  negocio  de  muita  importân- 
cia,  e  de  que  fe  podia  feguir  hum  grande 
tr3b3lho  á  índia  ,  e  que  era  obrigado  a  caf- 
tigir  os  perturbadores  da  quietação,  e  que 
fe  degraJaíTem  de  Cochim  os  homens ,  que 

fal- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  X.    75* 

fâlIaíTem  contra  o  fcu  direito.  Lopo  Vaz 
com  eftas  couías  cobrou  mais  alento  ,  e  lo- 
go procedeo  contra  alguns ,  que  tinham  mais 
culpa,  que  foram  Vicenie  Pegado  ,  que  aca- 
bara de  ler  Secretario  ,  e  Simão  Tofcano 
da  obrigação  de  Pêro  Maícarenlias  ,  que  de- 
gradou hum  pêra  Chaul ,  e  outro  pêra  Cou- 
láo.  E  dando  expediente  á  carga  das  náos , 
as  fez  á  vela  até  dez  de  Janeiro  ,  embarcan- 
do o  Governador  na  deTriftáo  Vaz  da  Vei- 
ga a  D.  Rodrigo  de  Lima  com  o  Embai- 
xador Zagazabo  ,  a  quem  deo  todas  as  cou- 
fas  neceíTarias  muito  abaíladamente.  Na  náo 
de  António  Galvão  le  embarcou  a  olTada 
de  leu  pai ,  e  o  P.  Francilco  Alvares  ,  que 
a  trouxe  de  Camarão.  Elias  náos  tiveram  tao 
boa  viagem  ,  que  chegaram  a  Lisboa  vei- 
pera  de  Sant-Ligo  .  eílando  EIRey  em  Coim- 
b^-a  fugido  de  hum  rebate  de  pefte ;  e  por 
ter  já  novas  do  Embaixador  por  huma  ca- 
ravela que  das  Ilhas  terceiras  lhe  mandaram 
diante,  tinha  dado  recado  em  Lisboa  que 
logo  o  levaíTem  a  Santarém  ,  e  foram  apo- 
fentados ,  elle ,  e  D.  Rodrigo  de  Lima  em 
Alfange,  onde  lhe  ElRey  mandou  dar  ro- 
das as  coufas  neceíTarias  pêra  ornamenro 
de  fua  cafa  ,  peíToa  ,  e  criados.  Aqui  eíli- 
veram  alguns  dias  até  ElRey  os  mandar  le- 
var a  Coimbra  ,  com  grande  companhia 
de  criados ,  mulas ,  e  azemalas ,  e  antes  de 

che- 


76  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

chegarem  á  Cidade  os  foi  cfperar  ao  cami- 
nho Diogo  Lopes  de  Siqueira  Almotacé 
mor,  que  foi  Governador  da  índia,  que  era 
o  mefmo  que  áquella  embaixada  mandara 
D.  Rodrigo  de  Lima  ,  que  eílava  acompa- 
niiado  de  muitos  parentes ,  amigos ,  e  cria- 
dos 5  o  recebeo  com  muitos  gazalhados.  A' 
entrada  da  Cidade  o  mandou  ElRcy  rece- 
ber pelo  Marquez  de  Villa  Real ,  e  por  to- 
dos os  Prelados,  e  Senhores  que  havia  na  Cor- 
te, que  o  levaram  até  o  Paço.  O  Alarquez 
entrou  na  cafa  onde  ElRey  eílava  ,  com  o 
Embaixador  Zagazabo  por  huma  inao  ,  e 
D.  Rodrigo  de  Lima  da  outra  parte  por  ou- 
tra. Eílava  ElRey  na  fala  ricamente  arma- 
da ,  e  tinha  comíigo  o  Cardeal  ,  e  Infante  : 
e  ao  entrar  da  porta  defcco-fe  ElRey  do  eí^ 
trado ,  e  o  recebeo  á  borda  dclle  com  gran- 
des gazalhados  ,  perguntando-lhe  pela  faude 
do  Emperador  feu  Senhor ,  de  fua  mulher  , 
e  filhos.  O  Embaixador  Ih:^  refpondeo  ,  que 
todos  ficavam  bem ,  e  defejofos  de  faberem 
novas  da  de  S.  A.  Depois  deíles  primeiros 
cumprimentos  lhe  diííe  ElRey ,  que  recebia 
muito  grande  confolaçao  com  aquella  em- 
baixada ;  e  que  efperava  que  delia  fe  fegui- 
ria  algum  grande  ,  e  aífinalado  ferviço  de 
Deos  NoíTo  Senhor  ,  e  do  Emperador  da 
Ethiopia  feu  irmão  ,  e  a  elle  muita  honra. 
Zagazabo  deo  a  ElRey  duas  cartas ,  huma 

pe- 


Década  IV.  Liv.  I.  Cap.  X.    'jj 

pera  ElRey  D.  Manoel ,  (porque  inda  era 
vivo  quando  o  defpachou  5)03  outra  pera 
elle ;  e  aíH  lhe  deo  huma  coroa  de  ouro , 
e  prata  ,  e  lhe  diíTe ,  que  o  Emperador  feu 
Senhor  mandava  aquella  coroa  a  ElRey  Dom 
Manoel ,  porque  de  filho  pera  pai  nunca  vi- 
nha a  coroa  ,  íenão  de  pai  pera  filho  ,  e  por- 
que como  o  tinha  por  eíTe ,  tomara  atrevi- 
mento pera  lhe  mandar  aquella,  pela  qual 
era  conhecido  em  feus  Reynos ,  e  affi  que- 
ria que  S.  A.  o  foíTe  em  todos  os  da  Abaf- 
íia  ;  e  que  depois  de  o  ter  defpachado  pera 
ElRey  D.  Manoel ,  íbubera  de  feu  faleci- 
mento 5  e  lhe  mandara  ,  que  tudo  o  que  tra- 
zia pera  elle  déífe  a  S.  A.  pois  era  feu  filho  , 
elhe  ficava  a  elle  em  lugar  de  irmáo.  Jun- 
tamente com  iíto  lhe  entregou  o  P.  Francis- 
co Alvares  duas  cartas  que  levava  a  feu 
cargo  pera  o  Summo  Pontífice ,  pelas  quaes 
lhe  mandava  dar  aquelle  Rey  a  obediência 
como  filho  da  Igreja  Romana  j  e  afil  lhe 
entregou  huma  boceta  pequena  ,  em  que  hia 
huma  cruz  de  ouro  com  o  Santo  Lenho  , 
que  fe  abrio  ,  e  ElRey  de  joelhos  tomou 
a  cruz  ,  e  a  beijou ,  dando-a  ao  Secretario 
António  Carneiro  com  as  cartas  ,  pera  fe 
tornar  tudo  ao  P.  Francifco  Alvares  ,  quan- 
do o  defpediffe  pera  Roma  ;  e  diíTe  ao  Em- 
baixador,  que  dava  muitas  graças  a  Deos , 
pois  por  feu  meio  chegava   a  ver  fujeitar» 

fe 


yS  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fe  o  Império  da  Abaília  d  Igreja  Romnna, 
E  delpedindo  o  Embaixador,  mandou-lhe 
dar  cafa  muito  honradamente ,  com  três  m.u- 
las  5  pêra  clle  ,  e  pcra  deus  Frades  que  le- 
vava comfigo  ,  e  aílinou-lhe  pêra  a  íua  me- 
za  dous  cruzados  cada  dia  ,  com  hum  tof- 
tão  pêra  cada  cavalgadura  ,  e  aíTi  lhe  man- 
dou huma  rica  cama  ,  e  huma  baixclla  de 
prata  de  lodo  ferviço  pêra  fua  meza  ,  e  lhe 
deo  pêra  ter  cuidado  de  íua  cafa  hum  Fran- 
cilco  Peres  cavalleiro  honrado.  O  anno  fe* 
guinte  defpedio  ElRey  o  Embaixador,  en- 
tregue ao  P.  Franciíco  Alvares  ,  pêra  ir 
dcir  a  obediência  ao  Santo  Padre  ;  e  porque 
efta  jornada  he  da  êfTencia  da  Chronica  d'El- 
Rey  D.João  ,  a  deixaremos ,  e  fomente  dire- 
mos a  fubílancia  da  embaixada.  Mandava 
aquclle  Rey  pedir  ao  Santo  Padre  que  lhe 
concedeíTe  dalli  por  diante  Patriarcas  pêra 
os  inftruirem  nos  Eliatutos  Romanos  ,  por- 
que os  que  até  entalo  tinham  ,  eram  da  Igreja 
Grega  ;  e  o  que  ao  prefente  vivia  ,  que  fe 
chamava  Marcos ,  era  homem  que  palTava 
de  cem  annos.  Ufavam  os  Abexins  por  mor- 
te de  feus  Patriarcas  mandar  pedir  outros  a 
Jerufalem  ,  que  fe  elegiam  por  todos  os  Fra- 
des que  havia  na  Cala  Santa  ,  de  fua  na- 
çáo  ,  mas  fempre  era  eleito  daquelles  que 
leguem  a  Regra  de  Santo  António  primeiro 
Ermitão,  e  havia  de  ler  natural  de  Alexan- 
dria* 


Década  IV.  Liv.  L  Cap.  X.   79 

d  ria.  Eíles  Patriarcas  níío  tinham  poderes 
pêra  mais  que  pêra  dar  Ordens ,  e  crifmar, 
que  os  Bifpados  ,  e  Benefícios  ló  o  Prefte 
Joáo  os  podia  prover.  O  Summo  Pontifice 
rcccbeo  efta  embaixada  com  grande  alegria , 
dizendo  por  fua  venerável  ,  e  fanta  boca 
muitas  palavras  em  louvor  do  Emperador 
da  AbaíTia ,  e  lhe  concedeo  tudo  o  que  lhe 
mandou  pedir  ;  confagrando  em  Patriarca 
de  Erliiopia  hum  Religiofo  douto  nas  le- 
tras Divinas,  e  na  lingua  Chaldea,  e  Gre* 
ga ,  homem  cílrangeiro ,  e  nunca  achám^os 
quem  nos  difleíTc  de  que  nação  era  ,  mas 
quanto  a  nós ,  havemos  que  era  Arménio  , 
de  que  adiante  trataremos  com  o  favor 
Divino. 


D& 


f  %lxx>^i<xxxxx>^xxxxxxí:.^:.x.-r  11 


DÉCADA  (QUARTA. 
LIVRO    II. 

Da  Hiítoria  da  índia. 


CAPITULO    L 

Da  origem  ,   e  princípio  do  Keyno  ,  e  Reys 

de  Malaca  ;   e  do  tempo  em  que  recebe- 

ram  a  lei  de  Mafamede ;  e  do  fundamen-- 

to  5  e  defcripção  da  Ilha  de  Bintao. 

A  Gora  continuaremos  com  Pêro  Mas- 
carenhas ,  que  deixámos  fazendo-fe 
preftes  pêra  ir  fobre  Binráo.  E  pri- 
meiro que  tratemos  deita  jornada  ,  nos  pa- 
receo  bem  darmos  razão  do  fundamento  def» 
te  Rcyno  Ma!ayo  ,  e  princípio  de  feus  Reys  , 
por  guardarmos  a  ordem  que  levamos  n^f" 
ta  noíía  Hiíloria ,  que  he  moftrar  o  tempo 
em  que  todos  os  Reys  Mouros ,  com  qucrrr 
contendemiOs ,  receberam  a  Lei  de  Mafame- 
de.  Pelo  que  fe  ha  de  faber ,  que  eíles  Ma- 
layos  fempre  fe  tiveram  por  mais  honrados , 

qu6 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  I.  8í 

que  todvOs  os  vizinhos  ,  pela  divindade  que 
tem  arrribuido  a  fua  genitura  ,  e  princípio 
de  que  fabulam  patranhas  ,  que  náo  tem  fun- 
damento algum.  Dizem  que  hum  Rey  ,  que 
era  fenhor  de  todo  o  Mundo  ,  defejando 
de  faber  os  fegredos  do  mar ,  mandara  fa- 
zer hum  caixão  de  ferro  com  algumas  vi- 
draças, em  que  fe  fizera  lançar  no  pego  def- 
fe  mar  Oceano  ,  e  que  o  Rey  cias  aguas 
o  recebera  m.uito  bem ,  e  lhe  dera  huma  íí- 
Jha  emcafamento,  de  que  houvera  dous  fi- 
lhos; e  indo  a  vifitar,feus  Reynos  ,  nunca 
mais  tornara  :  a  miái  faudoíli  do  marido,  man- 
dara os  filhos  em  bufca  delle ,  e  os  caval- 
gara em  golfinhos,  em  que  aportaram  am- 
bos na  Ilha  de  Çamatra  na  praia  de  Pleam- 
ba  ,  a  que  corruptamente  chamamos  Palibao^ 
Sendo  edes  moços  (  que  eram  muito  perto 
de  dez  annos  )  viílos  da  gente  da  terra  ,  ven- 
do-os  tão  formofos ,  e  tão  ricamente  atavia- 
dos 5  os  levaram  ao  feu  Rey ,  que  os  reco- 
Jheo  ,  e  creou  como  filhos ,  e  hum  delles  ca- 
fou  depois  com  huma  filha  d'ElRey  de  Ja- 
pu ra ,  na  coda  dajaoa,  e  outro  com  huma 
filha  de  huma  fenhora  de  Sincapúra  viuva , 
chamada  Milãotania.  E  deixando  as  fabulas 
que  contam  neíla  creação ,  e  cafamentos  ,  a 
verdade  he  que  o  Rey  de  Pleamba  teve  deus 
filhos,  que  cafou  com  eílas  duas  mulheres. 
Efte  que  fuccedeo  no  Rey  no  de  Sineapiira 
Q^íito.  Tonu  /.  P.  L  F  vi- 


Sz  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

vivco  muitos  annos  ,  e  por  fiia  morte  lhe 
fuccedeo  hum  chamado  Rajal  Sabu  ,  que  foi 
o  primeiro  que  povoou  Aíalaca  ,  como  io- 
go  diremos.  E  aíTi  João  de  Barros  nas  fuás 
Décadas,  como  Affonfo  d'Alboquerque  em 
feus  Commentarios  ,  e  Damião  de  Gois  na 
Chronica  d'EIRey  D.  Manoel ,  lhe  chamam 
Xaque  Darxa  ,  porem  cfte  nome  não  he  co- 
nhecido entre  os  naturaes ,  nem  eRe  titulo 
de  Xá  ,  que  propriamente  quer  dizer  Rey , 
^nem  fe  ufou  entre  eíles  Gentios  fenao  de- 
pois que  receberam  a  lei  de  Mafamede  •  mas 
porque  homens  tão  graves  não  haviam  de 
efcrever  fem  fundam.ento,  querendo-os  £il- 
var  a  elles ,  a  nós  nos  parece  que  teria  am- 
bos eíies  nomes :  e  que  ElF.ey  de  Sinca pu- 
ra fe  chamaria  Rajal  Sabu  :  e  que  depois 
de  o  fer  de  Malaca  ,  fe  inritulaíTe  do  outro 
de  Xá.  E  também  fe  pode  cuidar  nafcer  efta 
confusão  dos  cfcritores  Malayos  í  porque 
depois  que  aprenderam  as  Jetras  Arábigas , 
em  que  renovaram  fjas  efcrituras ,  tratando 
de  todos  os  Reys  ,  afli  Gentios  ,  como  Mou- 
ros ,  os  no  meariam  com  eíle  titulo  de  Xá , 
fcmícizerem  differença  dos  Gentios  ,  que  an- 
tes de  Mouros  fe  chamavam  Rajas  ;  mas  to- 
davia algumas  efcrituras  antigas  ainda  no- 
nieam  eíle  por  Rajal  Sambu.  Eíle ,  íendo  Rey 
de  Bintão  ,  tomou  huma  filha  a  hum  fcu 
Veador  da  fazenda  ^  e  a  teve  por  manceba 

ai" 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  I.  83 

alguns  annos  :  e  parece  que  depois  toman- 
do delia  alguns  fiumes ,  a  envergonhou  pu- 
blicamente ,  e  a  deitou  fóra.  O  pai  aíFron- 
tado  daquillo  ,  como  era  peíToa  principal , 
e  de  muita  poíTe ,  carteou-fe  com  alguns  ic- 
nhores  da  Corta  da  Jaoa  ,  que  vieram  em  feu 
favor  com  poderofas  Armadas  ,  e  defembar- 
cando  em  Sincapura ,  nao  oufando  o  Rey 
aos  efperar ,  fugio,  e  paíTou-fe  á  Coíla  de 
Malaca  pêra  hum  lugar  chamado  Sencu- 
der ,  junto  de  Ujantana  ,  ficando  o  Reyno 
de  Sincapiira  ,  e  Bintáo  em  poder  do  vaíFal^. 
lo  ,  em  cujos  herdeiros  andou  muitos  annos. 
Alli  em  Sencuder  efteve  o  Rey  degradado 
alguns  tempos  ,  dando-fe  bem  com  os  da 
terra,  e  ordenando  Armadas  com  que  íal- 
teava  aqucllcs  eftreitos.  E  tendo  a  informa- 
ção daquella  parte  onde  depois  íe  fundou 
Malaca  ,  que  então  era  huma  pobre  povoa-^ 
çio  de  pefcadores  ,  paíTando-fe  a  elía  ,  aíTen- 
tou  alli  fua  vivenda ,  e  começou  a  fundar 
huma  nova  Cidade.  E  porque  íoube  que  a 
terra  era  d'EiRey  de  Sião ,  lhe  mandou  pe- 
dir que  lha  quizeíle  dar  com  o  titulo  de 
P.ey .  que  elle  fe  lhe  obrigaria  á  vaíTallagem  : 
o  que  elle  fez  aíTmando-lhe  os  limites  ,  que 
na  fegunda  Década  de  João  de  Barros  fe 
verão.  A  efta  Cidade ,  que  logo  fe  começou 
a  engrandecer ,  poz  efte  Rey  por  nome  Ma- 
laca ,  que  em  língua  própria  quer  dizer  de- 

F  ii  grs- 


Sjf.  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

gredo  5  porque  foi  ter  a  ella  degradado  ,  e 
deitado  fóra  de  feii  antigo  Reyno  ,  e  aíFi  foi 
crefcendo  cm  poucos  annos  ,  que  fe  fez  maior 
que  todos  os  vizinhos  ,  alTi  em  poder ,  co- 
ino  em  riqueza ,  por  acarretar  áquelle  por- 
to todas  as  embarcações  de  todas  as  partes 
cio  Oriente  ,  com  o  que  veio  a  engroífar , 
e  a  ter  iiuma  certa  fuperioridade  fobre  os 
mais  Reys  vizinhos ,  como  Emperador  de 
todos.  Teve  elle  Rey  dous  filhos  ,  o  herdei- 
ro chamado  Manoar ,  o  outro  Cacemo :  e 
depois  do  pai  viver  muitos  annos ,  fuccedco- 
Ihe  o  filho  mais  velho ,  que  receando-fe  do 
Irmião  5  o  degradou  pêra  huma  daquellas 
Ilhas  do  mar ,  onde  viveo  pobremente.  Rey- 
nou  Manoar  alguns  annos  ,  e  faleceo  lèm 
filhos  ,  pelo  que  os  do  Reyno  foram  buf- 
car  o  Irm.âo  ,  e  o  juraram  por  Rey.  Em  tem- 
po defte  foram  ter  a  Malaca  algumas  náos 
dos  portos  de  Arábia  ,  e  veio  hum  anno  nel- 
las  hum  CaíTiz  pêra  ir  pregar  a  Ley  de  Mafa- 
mede  por  aquellas  partes.  Eíle  ficando  alli  com 
ElRey  ,  aíli  fe  lhe  affeiçoou  ,  e  elle  lhe  re- 
prefentou  a  largueza  de  fua  feita  ,  que  o  con- 
vcrteo  a  ella ,  e  lhe  mandou  o  nome ,  e  lhe 
poz  ode  Mahamede  por  honra  do  feu  Pro- 
feta ,  e  lhe  deo  o  titulo  de  Xá ,  chaman- 
do-lhe  Xá  Mahamede.  Eíle  foi  o  primeiro 
Rey  Mouro,  que  Malaca  teve,  o  que  fuc- 
ccdeo  mui  perto  aos  aunos   do  Senhor   de 

1384- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  I.  85' 

1384.  em  que  começaremos  a  origem  dos 
Reys  Mouros.  Viveo  cíle  muitos  annos  ,  e 
fuccedeo-lhc  leu  filho  Manfor  Xá  ,  c  a  elle 
ícu  filho  Malafar  Xá ,  a  efte  feu  filho  Ale- 
vidim  ,  e  a  elle  também  feu  filho  Mahame- 
de  Xá  5  ( que  foi  a  quem  Aífonfo  d'Albo- 
querque  tomou  a  Cidade  de  Malaca  , )  que 
fe  paíTou  pêra  Muar ,  até  que  António  Cor- 
rêa o  lançou  do  Pago  ,  como  na  fegunda 
Década  de  João  de  Barros  fe  conta ,  e  dal- 
li  fe  palTou  á  Ilha  de  Bintao  feíTenta  léguas 
ao  nafcente  de  A-Ialaca ,  fora  do  eílreito  de 
Sincapúra  pegada  a  terra  firme  ,  da  que  a 
devide  hum.  eílreito  rio  que  fe  vai  metter  no 
mar ,  e  a  cerca  toda  á  roda :  ao  longo  def- 
te  rio  hum  pedaço  de  fua  foz  eftá  íituada 
a  Cidade  ,  que  também  fe  chama  Bintao  ,  e 
corta  pelo  meio  a  Equinoccial.  Na  parte  on- 
de eílá  a  Cidade  fe  faz  huma  bahia  ,  por- 
que entra  hum  braço  do  rio ,  com  hum  ca- 
nal que  vai  em  muitas  voltas,  por  onde  en- 
tram os  feus  juncos ,  e  embarcações.  Neile 
canal  mandou  ElRey  fazer  huma  eftacada 
de  maftos  mui  groíTos ,  que  também  hia  em 
caracol ,  como  o  canal ,  deixando  hum  tão 
eílreito  ,  que  não  podia  nelle  virar  huma  ga- 
lé, e  a  Cidade  mandou-a  cercar  de  huma 
tranqueira  de  duas  faces  mui  larga  ,  e  grof- 
la  ,  entulhada ,  com  feus  baluartes  grandes  , 
e  formofos  j  e  pêra  a  banda  que  vai  pêra 

a  ter-  . 


26  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

aterra  firme  febre  o  rio  armou  huma  pon- 
te até  a  outra  banda  pêra  lerventia  da  Ilha  , 
em  que  mandou  fabricar  dous  fortiilimos 
baluartes  ,  hum  na  entrada  da  ponte  da  ban- 
da da  Ilha,  e  outro  na  da  terra  firme.  Nef- 
tes  baluartes  ,  e  na  fortificação  da  Cidade 
havia  trezentas  peças  de  artilheria  de  bron- 
zo ,  de  camellos  até  meios  berços.  Derre- 
dor da  Cidade  no  lufi^ar  da  cava  havia  três 
ordens  de  crtrepcs  poftos  em  revés  ,  huns  pê- 
ra defenderem  a  entrada ,  e  outros  a  fahi- 
da  ,  todos  muito  cruéis ,  e  perigoíbs  ,  por 
ferem  hervados  nas  pontas.  Efta  parte ,  em 
que  eftá  a  povoação ,  heroda  muito  apaula- 
da, e  alagadiça:  c  efta  he  a  razão  por  que 
todas  fuás  caías  são  edificadas  fobre  gran- 
des eíleios  de  pão ,  levantadas  no  ar ,  e  a 
ferventia  he  por  pontes  ,  fó  as  cafas  d^El- 
Rcy  são  fundadas  íobre  hum  tezo  ;  de  for- 
te ,  que  com  efte  modo  de  fortificação  ,  c 
impedimento  de  canal,  ficava  a  Cidade  mui- 
to pêra  fe  recear ,  e  ElRey  nella  muito  fe- 
guro.  Daqui  lançava  fuás  Armadas  fora, 
com  que  fazia  muito  grande  guerra  a  Ma- 
laca ,  defendendo  a  navegação  daquelles  ef- 
írcitos  aos  navios  que  hiam  da  Jaoa  ,  e  de  ou- 
tras partes  carregados  de  fazendas  ,  e  man- 
timentos pêra  Malaca  ,  com  o  que  poz  aquel- 
]a  Cidade  muitas  vezes  em  grandes  traba- 
lhos ;>  e  neceíudades ;  principalmente  em  tem- 
po 


Dec.  IV.  Liv.  II.  Cap.  I.  E  lí.  87 

po  do  mefmo  Pcro  Mafcarcnhas  ,  de  que 
eiie  eílava  muito  clcandalizado.  E  vendo 
agora  que  forçado  havia  de  cfperar  a  inou- 
çiio  ,  que  era  em  Dezembro  ,  e  que  tinha 
alli  a  Armada  de  Francifco  de  Sá ,  que  hia 
pêra  a  Sunda  ,  determinou  de  ver  fe  podia 
tirar  aquelle  inimigo  daqueila  Ilha  ,  e  caí^ 
tigallo  como  merecia.  Pelo  que  todo  o  tem- 
po ,  depois  que  arribou  de  Pulopuar  até  en- 
tão ,  gaílou  em  apercebimentos  pêra  a  jor- 
nada. Difto  foi  logo  ElRey  de  Bintao  avi- 
íado  5  e  mandou  pedir  foccorro  a  EiRey  de 
Páo  j  que  era  feu  genro  ,  e  elle  fe  preparou 
pêra  efperar  Pêro  Mafcarenhas  ,  que  fabia 
que  lhe  havia  de  dar  muito  trabalho  peia 
experiência  que  tinha  de  feu  faber ,  e  esforço. 

CAPITULO     II. 

De  como  Pêro  Mafcarenhas  par  tio  pêra  Bin- 
tao 5  c  de  como  desbaratou  hunia  Arma- 
da d^ ElRey  de  Pão :  e  do  grande  tra- 
balho que  os  nofjòs  tiveram  na  en- 
trada do  rio, 

EStando  Pêro  Mafcarenhas  preíles  pcra 
a  jornada  ,  mandou  fazer  alardo  da  gen- 
te Portugueza ,  e  Malaya  ,  que  havia  de  le^ 
var ,  e  achou  Portuguezes  quinhentos  e  fín- 
coenta  ,  em  que  entravam  os  quatrocentos 
da  Armada  de  Francifco  de  Sá ,  (poílo  que 

Caf- 


88  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Caílanheda  diz ,  que  não  levou  mais  de  tre- 
zentos ;  mas  no  protefto  que  Pêro  Maíca- 
renhas  mandou  á  Cidade  de  Goa  contra  Lo- 
po Vaz  de  Sampaio  ,  como  adiante  fe  ve- 
rá ,  diz  que  quando  fora  a  Bintao ,  Jevára 
quinhentos  e  lincoenta  Portuguezes  ,  e  na- 
turaes  feiscentos.  )  E  embarcando-íe ,  entre- 
gou a  fortaleza  a  Jorge  Cabral ,  e  íe  fez  á 
vela  com  dezenove  embarcações  ,  dous  ga- 
leões ,  huma  galé ,  quatro  fuftas  ,  dous  ba- 
téis grandes  com  mantas  para  baterem  a  Ci- 
dade ,  quatro  lancharas ,  íinco  calaluzes ,  e 
dous  bargantins.  O  Governador  hia  na  ga- 
lé ,  Francifco  de  Sá  em  hum  galeão  ,  Aires 
da  Cunha  em  huma  fufta  ,  Fernão  Serrão  cm 
huma  caravela ,  António  da  Cunha  ,  Duar- 
te Coelho ,  Simão  de  Sou  la  Galvão  ,  João 
Pacheco ,  e  outros  pelas  mais  embarcações. 
Dos  Malayos  hiam  por  Capitães  dous  Bandar- 
ras principaes  chamados  Sina  Raja  ,  e  Tuão 
Mafamede.  Com  cila  frota  foi  furgir  de  fron- 
te da  barra  de  Bintao ,  e  vendo  o  canal ,  e 
íís  eílacadas ,  bem  cntendeo  que  lhe  haviam 
de  dar  trabalho  ,  e  logo  mandou  fondar  o 
canal  da  bailia  por  Duarte  Coelho  ,  que 
andou  por  todo  elle  com  o  prumo  na  mão  , 
e  notando  o  modo  das  eílacadas ,  pareceo- 
lhe  difficultofo  entrar  por  alli  a  Armada  , 
no  menos  fem  fe  arrancarem  todas  as  efta- 
cadas  j  e  voltando  a  Pêro  Mafcarenhas ,  lho 

tlif-^ 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  IL  89 

dific  aíli ,  e  lhe  dco  informação  de  tudo  o 
que  vira ,  e  da  fortificação  da  Cidade ,  que 
reconbeceo  com  muito  rifco  ,  affirmando-lhe 
que  querendo  dcfcmbarcar  na  face  da  Ci- 
díide  5  (porque  nao  havia  outra  defembarca- 
çáo  ,  )  cuílaria  a  vida  á  mor  parte  de  fua  gen- 
te ,  aíli  pela  muita  artilheria  que  tinha ,  co- 
mo porcaufa  da  fortaleza  da  Cidade ,  e  da 
altura  de  íeus  muros.  O  Governador  Pêro 
Mafcarenhas  ouvio  tudo  ,  prefentes  os  Ca- 
pitães 3  com  cujo  parecer  aíTentou  que  fe 
commetteíTe  a  Ilha  pela  ponte ,  por  onde  fe 
fervia  pêra  a  terra  firme  ,  que  não  havia  de 
eílar  tão  fortalecida  ,  e  que  fe  arrancaiTe  a 
eftacada  pêra  a  Armada  poder  entrar  den- 
tro. Com  efta  refoluçao  commetteo  aquel- 
le  negocio  a  Fernão  Serrão  ,  por  fer  pêra 
todo  o  feito  arrifcado  ,  eprefez-lhe  íincoen- 
ta  homens  pêra  o  ajudarem  naquelle  traba- 
lho. Feroao  Serrão  fortalcceo  o  feu  navio 
com  grandes  ,  e  fortes  arrombadas  pêra 
defensão  da  artilheria  dos  inimigos  ;  e  ef- 
tando  preftes  ,  tomaram  alguns  navios  de  re- 
mo a  caravela  á  toa  ,  e  a  embocáram  por 
meio  do  canal  ,  e  chegando  á  eftacada  lhe 
lançaram  aos  páos  groíTos  viradores  ,  e  guar- 
necendo-os  aos  cabreftantes  ,  pondo  todos 
nelles  fuás  forças ,  foram  arrancando  huma  , 
e  huma  com  tanto  trabalho  ,  que  lhes  re- 
bentou o  fangue  pelas  bocas  das  forças  que 

nos 


(jo  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

nos  peitos  punham.  Nifto  gaílou  oito  dias 
por  ferem  as  eílacadas  muitas,  e  íe  deterem 
em  cada  huma  grande  efpaço  ,  e  chegou  a 
caravela  a  íurgir  defronte  qía  Cidade ,  don- 
de o  começaram  a  varejar  com  a  artilhcria 
foberbiífimamente  ,  e  cíle  também  lhe  deo 
fua  bateria ,  mas  fenao  foram  as  arromba- 
das ,  fempre  fora  mettido  no  fundo.  O  dia 
que  ifto  fuccedeo  chegou  á  viíta  da  Arma- 
da huma  de  trinta  e  três  lancliaras  ,  que 
era  o  foccorro  d'ElRcy  de  Pão ,  que  man- 
dava a  leu  fogro ,  em  que  hiam  embarca- 
dos perto  de  dous  mil  homens.  O  Gover- 
nador Pcro  Mafcarenhas  receando-fe  ,  que 
fe  elle  entraíTe  os  canaes ,  fahiíTe  a  Arma- 
da de  Bintao  de  dentro  ,  e  efroutra  pela  ban- 
da de  fora,  e  que  o  tomaíTem  no  meio  ,  por 
cafo  daquellas  eílreituras ,  e  que  lhe  deíTcm 
muito  trabalho  ;  pelo  que  determinou  de 
mandar  commetter  eíla  Armada  em  mar  lar- 
go ,  c  elegeo  pêra  iíTo  Duarte  Coelho  ,  a 
quem  deo  quatro  lancharas ,  e  finco  calahu- 
zes ,  e  elle  na  fua  fuíla.  Duarte  Coelho  que 
era  muito  cavalleiro  ,  tomando  o  remo  em 
punho  ,  foi  demandar  os  inimigos ,  e  chegan- 
do a  tiro  de  berço  ,  lhe  deo  fua  falva  de 
bombardadas  ,  de  que  Ihcdefapparelhou  al- 
gumas. Vendo  os  inimigos  a  determinação 
dos  noíTos ,  (  pofto  que  elles  eílavam  muito 
de  ventagem  em  número  de  embarcações, 

e  gen- 


Década  IV.  Liv.  11.  Cap.  II.  91 

e  gente ,  )  nao  oufando  a  efpcrar  ,  voltaram 
voga  arrancada.  Duarte  Coelho  vendo-os 
ir  em  disbarato  os  íbi  feguindo  ás  bombar- 
dadas  ,  de  que  lhe  matou  muita  gente  ,  e 
tanto  apertaram  com  elies ,  que  fizeram  va- 
rar vinte  e  três  das  lancharas  em  huma  da- 
quellas  Ilhas  ,  lançando-fe  logo  a  gente  a 
terra  ,  deixando  as  embarcações  anhotas  , 
que  os  nofíbs  tomaram  com  todo  o  feu  re- 
cheio 5  fem  lhe  cuftar  golpe  de  efpada  ;  as 
outras  dez  lancharas ,  por  ficarem  mais  a  bal- 
ra vento  foram  feu  caminho  ,  que  Duarte 
Coelho  foi  feguindo  com  a  fua  galeota  ,  e 
porque  era  pejada  do  remo  ,  mudou-fe  a 
hum  balanço  com  finco,  ou  féis  companhei- 
ros ,  e  apertando  o  remo  as  foi  feguindo. 
Clicgando  a  tiro  de  eípingarda  ,  vendo  os  ini- 
migos aquella  embarcação  fó ,  e  tao  alon- 
gada das  outras  ,  voltaram  a  ella.  Duarte 
Coelho  bem  entendeo  que  tinha  feito  gran- 
de erro  em  feguir  os  inimigos  fó  ,  podcn- 
do-fe  contentar  com  a  vitoria  que  tinha  ha- 
vido ,  mas  nao  deixou  de  ir  por  diante  com 
tenção  de  pelejar  com  todos ,  porque  antes 
queria  morrer  que  voltar.  Os  Mouros  ven- 
do que  todavia  aquella  embarcação  hia  por 
diante  fem  voltar ,  pararam.  Duarte  Coelho 
vendo  que  nao  remavam  ,  também  levou  o 
remo,  os  inimigos  tornaram  apertar  o  feu^ 
e  elle  fez  o  mefmo  fempre  com  a  proa  nel- 

les, 


512  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

les  5  elles  todavia  receando  tornaram  a  pa- 
rar 5  e  Duarte  Coelho  fez  o  mefiTio ,  fize- 
ram efta  qiierena  por  três  vezes  ,  e  como  if- 
to  era  já  perto  da  noite  ,  foi-fe  ella  ferran- 
do,  e  cubrindo  o  ar,  com  o  que  o^  inimi- 
gos fe  fizeram  em  outra  volta  ,  e  Duarte 
Coelho  fe  tornou  pêra  a  Armada  ,  e  ajun- 
tando as  embarcações  dos  Mouros  fe  foi 
com  eHas  por  poppa  ,  e  entrou  emBintao, 
onde  foi  muito  feftejadoPero  Mafcarenhas , 
e  houve  aquella  vitoria  por  bom  prognoíH- 
CO.  E  aíFi  difle  a  todos  ,  que  pois  liie  NolTo 
Senhor  começara  a  fazer  mercês ,  que  tivef- 
fem  confiança  ,  que  também  lhe  daria  Bin- 
tão. 

CAPITULO      III. 

De  carno  os  inimigos  commettêram  o  navio 

de  Fernão  Serrão ,  e  do  rife  o  em  que  fe, 

vio :  e  de  como  o  Governador  o  foccor- 

reo ,  e  commetteo  a  Cidade  de  Bin- 

tão  j  e  a  tomou» 

SUrto  Fernão  Serrão  no  porto  de  Bintao  , 
depois  que  (  como  dilfemos )  arrancou 
as  eílacas  com  hum  trabalho ,  que  fó  Por- 
tuguezes  puderam  aturar ,  vio-fe  em  muito 
grande  perigo ,  por  ficar  todo  defcuberto  a 
bateria  dos  inimigos  que  de  todas  as  par- 
tes  o  perfeguiam  ,  defparando  no  coitado 

do 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  lII.  93 

cio  ícu  navio  aqiiclla  infernal  multidão   cie 
pilouros  de  ferro  coado  ,  e  de  pedra  ,  com 
que  o  esburacaram  por  muitas  partes ,  co- 
meçando por  cilas  a  fazer  tanta  agua ,  que 
fe  Ília  ao  fundo ,  e  fem  dúvida  fe  perdera 
fcnao  fora  o  grande  esforço  ,  e  diligencia 
com  que  Fernão  Serrão  acudio  a  tudo,  re- 
partindo os  liomens  pelo  trabalho  ,  com  que 
venciam  todos  aquelles  rifcos.  E  como  ti- 
nha recado  de  Pêro  Mafcarenhas  que  fe  fof- 
fe  abarbar  com  a  ponte  ,    foi  paílarrdo  por 
todos  eíles  perigos ,  em  que  gailou  os  mais 
medonhos  ,  e  eípantofos  quinze  dias  que  fe 
podem  imaginar ,  porque  em  todos  elles  foi 
ás  toas  5  e  nao  andavam  em  cada  hum  mais  ,. 
que  a  compridao  de  hum  virador;  e  todo 
o  tempo  que  fe  gaitara  em  efcrever  os  mui- 
tos ,  c  grandes  trabalhos  ,  e  perigos  ,  que 
efte  Capitão  paílbu  ,  fora  miui  bem  empre- 
gado ;    mas  nao  temos  palavras  com  que  o 
encarecer  ,    baila  que  elie  fez  tudo  quanto 
hum  valerofo ,  e  esforçado  Capitão  pudera 
fazer  até  que  abarbou    a  ponte    com  huma 
grande  grita ,  e  alvoroço  dos  feus ,  dando 
no  baluarte  que  alii  eítava  huma  formofa  fal- 
va  de  bombardadas  ,  e  efpingardadas.   El- 
Rey   de  Bintao    íicou    muito    agaftado  da- 
quellc  negocio ,  affrontando  ,  e  deshonrando 
feus  Capitães ,  que  de  corridos ,  e  envergo- 
illiados  iião  oufavam  apparecer  diante  deJIe. 


94  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

E  ajuntando-fe  todos,  tiaráram  de  fazer  dar 
o  navio  á  coíla  :  e  pêra  iifo  bufcárani  mui- 
tos ardiz  até  llie  ireiíi  cortar  as  amarras  de 
noite ,  e  de  margulho  j  mas  foram  fentidos 
pela  grande  vigia  que  os  noflbs  tinham  ,  e 
logo  furgíram  com  outra  amarra ,  mandan- 
do-a  guarnecer ,  e  forrar  com  cadeias  de  fer- 
ro. Ao  outro  dia  que  ifto  paliou ,  mandou 
EIRcy  Alacximena  feu  Capitão  mór  do  mar , 
que  negociaíTe  todos  os  navios  que  pudef- 
fe 5  e foíTe  commetter  a  caravela:  o  que  el- 
le  fez  com  perto  de  vinte  lancharas ,  em  que 
levava  quinhentos  homens ,  que  elíe  pêra  if- 
fo  efcolheo;  e  remetteo  com  a  caravela  mui 
determinadamente  ,  e  a  inveítio  pela  proa , 
e  pela  poppa  ,  lançando-fe  logo  dentro  neJía 
mais  de  duzentos  Mouros.  Fernão  Serrão  , 
que  já  eftava  preparado,  os  recebeo  com  gran- 
de animo ,  travando-fe  entre  todos  huma  mui- 
to afpera  batalha  ,  e  deixando  a  proa  encom- 
mendada  a  homens  de  confiança ,  acudio  á 
poppa  por  onde  hiam  entrando  os  inimigos  , 
e  com  feu  muito  valor  os  deteve.  As  lan- 
charas de  fora  fè  puzeram  ás  bombardadas 
com  a  caravela  ,  defcarregando  fobre  ella  ef- 
peíías  nuves  de  frechas ,  de  que  o  navio  por 
todas  as  partes  ficou  empenado  ,  e  muitos 
dos  noíTos  encravados.  Os  Mouros  que  en- 
traram pela  pix)a  apertaram  tanto  com  os 
noíTos,  que  os  levaram  até  o  convés ,  onde 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  III.  95' 

fetrav^ou  liuma  muito  cruel  batalha.  Fernão 
Serrão  que  andava  de  poppa  ,  tanto  que  vio 
alii  o  negocio  tao  arrifcado ,  deixando  na- 
quelle  lugar  os  companheiros  ,  voltou  fó  pê- 
ra o  convés  5  e  como  hum  leão  bravo  fe 
metteo  entre  os  Mouros  ,  fazendo  nelles  hum 
grande  eílrago  ,  e  com  fua  chegada  íe  de- 
tiveram ,  porque  hiam  encurralando  os  noi- 
íbs.  O  Governador  Pêro  Mafcarenhas ,  que 
vio  o  trabalho  em  que  a  caravela  eftava  , 
não  querendo  arrifcar  as  embarcações  gran- 
des pela  muita  artilheria  que  da  fortaleza 
jugava  em  roda  viva  ,  pêra  defender  que  lhe 
não  foííe  íoccorro  ,  chamou  Duarte  Coelho , 
e  diíTe-lhe  que  ambos  haviam  de  ir  íoccor- 
rer  aquella  caravela  ;  e  mettendo-fe  cada  hum 
em  feu  balanço ,  com.  dez  ,  ou  doze  homens 
cada  hum  ,  tomaram  o  remo  em  punho ,  e 
foram  paliando  por  aquella  fúria  infernal 
das  bom  bardadas  até  ciiegarem  ao  navio  ; 
e  pondo  as  proas  nas  lancliaras  que  eílavam 
a  bordo  ,  as  axoráram  com  muitas  panellas  de 
pólvora,  fazendo  lançar  ao  mar  os  que  nel- 
las  eílavam  ,  e  fubindo  á  caravela  acharam 
Fernão  Serrão  cahido  daquella  hora  no  chaQ 
com  mais  de  vinte  feridas ,  e  derredor  del- 
le  hum  monte  de  mortos ,  e  os  Mouros  mui 
accezos  ,  e  determinados  ,  e  remettendo  a  el- 
les  comaquelle  Ímpeto,  e  furor  que  a  hon- 
ra, e  paixão  lhes  fazia  levar ,  mettendo-fe  no 

meio 


çó  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

n)cio  ,  fizeram  nelles  tal  eílrago  ,  que  em  pou- 
co efpaço  mettéram  a  mor  parte  dellcs  á  ef- 
pada  ,  e  os  outros  ,  cortados  também  delias  ^ 
e  do  medo ,  fc  lançaram  no  mar ;  e  o  meí- 
mo  fizeram  os  da  poppa  ,  ficando  a  carave- 
la defpejada ,  e  todos  os  nollbs  miuiro  mal 
feridos.  Pêro  Mafcarcnhas  fez  alevantar  Fer- 
não Serrão  ,  e  recolhello  pêra  a  camará ,  e 
o  mandou  curar  perante  fi,  e  o  mefmo  fez 
a  todos  os  foldados ,  e  querendo  prover  a 
caravela ,  e  deixar  nella  Duarte  Coelho ,  e 
levar  Fernão  Serrão  pêra  a  Armada ,  o  não 
confentio  elle  ,  dizendo  a  Pêro  Mafcarenhas  , 
que  em  quanto  elíe  foííe  vivo  defenderia  a 
fua  caravela  a  todo  o  poder  d'ElRey  de 
Bintão  ,  ainda  que  foíTe  aíTi  lançado  naquel- 
la  cama  ,  que  as  feridas  logo  Tarariam  ,  e 
que  fobre  ellas  eílava  muito  preítes  pêra  re- 
ceber outras  de  novo  pelo  íerviço  d'ElRey. 
O  Governador  Pêro  Mafcarenhas  lhe  agra- 
deceo  muito  aquillo  ,  mandando  embarcar 
nos  balanços  os  foldados  mais  perigofos , 
porque  os  mais  não  quizeram  largar  o  íeii 
navio ,  nem  o  feu  Capitão ;  e  deixando  na 
caravela  alguns  dos  companheiros  que  leva- 
ram ,  tornáram-fe  pêra  a  Armada.  Paííada 
efta  vitoria  ,  determinou  o  Governador  Pei*o 
Mafcarenhas  de  commetter  a  Cidade  pela 
banda  da  terra  firme ,  por  onde  eílava  affen- 
tado  em  confelho^  e  pêra  fazer  ifto  mais  a 

feu 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  IIL  ()'j 

íeu  íalvo  ,  fez  moílras  de  querer  commetter 
a  Cidade  pela  fiice  delia  ,  pêra  embaraçar 
os  inimigos ,  pêra  o  que  mandou  preparar 
alguns  ceíloes ,  e  pipas  ,  que  já  levava  fei- 
tos de  Malaca  ,  e  encommendou  a  Sina  Ra- 
ja ,  que  com  os  íeus  Malayos  ,  e  quarenta 
Portuguezes  ,  que  lhe  daria ,  defembarcaíTe  os 
ceftões  5  e  pipas  na  praia  ,  e  que  logo  as  en- 
che íTe  de  terra  ,  e  aHcntaíTem  alguns  falcões  , 
e  começa  (Te  a  bater  a  Cidade ,  porque  pe- 
ia manha  a  queria  commetter  por  alli  com 
todo  o  poder ;  deitando  eíla  fama ,  porque 
fe  pela  ventura  os  Malayos  tivellem  algu- 
mas intclligencias  com  os  de  dentro ,  e  avi- 
faílem  a  ElRèy  da  parte  por  onde  elle  de- 
terminava de  commetter ,  fe  defcuidaíTe  das 
outras.  Sina  Raja  fez  o  que  o  Governador 
jhe  mandou ,  e  pejou  em  terra  de  noite  pe- 
lo efcuro  5  e  logo  armou  as  pipas ,  e  cef- 
toes  ,  e  encheo  tudo  de  terra ,  e  aíTentou  os 
falcões  ,  tudo  com  muita  preíTa ,  e  brevida- 
de. Lac  Ximena  ,  que  eftava  por  Capitão 
naquella  tranqueira ,  fentio  a  obra  ,  e  man- 
dou avifarElRey,  e  pedir-lhe  mais  gente, 
porque  o  queriam  commetter  por  alli.  Com 
efte  recado  mandou  ElRey  tirar  todos  os 
Mouros  queeftavam  repartidos  pelas  outras 
eílancias  ,  e  os  mandou  paíTar  pcra  aquella , 
pela  confiança  que  nelles  tinha.  Foi  iia  Ci- 
dade grande  o  alvoroço  quando  lhe  diíTc- 
-  Qouta,  Tom,  L  P,  L  G  ram 


p8  ASIx\  DE  Diogo  de  Couto 

ram  que  os  Portuguezes  queriam  commet- 
ter  por  aquella  parte  ,  porque  houveram  que 
os  tinham  nas  mãos,  e  que  nenhum  lhes  ef- 
caparia.  Pêro  Mafcarenhas  deo  recado  a  Si- 
na Raja  ,  que  tanto  que  no  quarto  d'alva  viC- 
fe  fogo  em  alguma  parte ,  fizeíTe  que  com- 
mettia  a  tranqueira  com  grandes  eftrondos , 
e  alaridos  ,  e  deixando  os  navios  em  fcu  lu- 
gar (porque  os  da  Cidade  os  não  lentiíTem) 
embarcou-fe  com  toda  a  gente  em  balan- 
ços ,  e  batéis  ,  e  em  muito  liiencio  foi  deí^ 
embarcar  na  terra  firme  em  parte  que  fica- 
va Jiuma  Icgua  da  ponte ,  e  dalli  começou 
a  marchar  entrada  do  quarto  d' alva,  miCt- 
tendo-fe  por  huns  caminhos  apaulados  ,  e 
todos  de  vafa ,  em  que  os  nolTos  atolavam 
até  as  cintas ,  e  além  diílb  todos  cheios  de 
arvores  bravas  ,  em  que  hiam  marrar  por 
fer  muito  eíburo  ,  e  foi  de  feição  ,  que  efti- 
veram  perdidos,  efeDeos  os  não  favorece- 
ra ,  não  era  poilivel  corpos  humanos  pode- 
rem fofFrer  aquelles  trabalhos,  porque  hiam 
todos  taes  ,  e  tão  cnva fados ,  e  quebranta- 
dos, que  não  podiam  comfigo ,  e  paliando 
por  todos  eftes  perigos  chegaram  á  ponte 
huma  hora  ante  manha  com  tamanho  alvo- 
roço como  fe  foíTem  defcancar  ,  e  não  ti- 
veíTem  por  paílar  outros  maiores  rifcos  ,  e 
trabalhos.  E  como  a  ponte  da  banda  da  ter* 
ra  íirme  não  tinha  guarnição ,  por  fenão  te- 
me- 


Década  IV.  Liv.  IL  Cap.  III.  99 

merem  daquella  parte  ,  foram  logo  entran- 
do por  cila,  dando  o  Governador  a  diantei- 
ra a  Francifco  de  Sá ,  para  quem  íe  pafla- 
ram  alguns  Fidalgos  ,  e  Cavalleiros  defejo- 
fos  de  honra  ,  e  chegaram  aonde  cílava  Fer- 
não Serrão  ,  que  já  os  efperava  por  cílar 
avifado  do  negocio.  E  como  eílava  abar- 
bado  com  a  ponte  ,  faltou  em  terra  com  to- 
dos os  feus  foldados  ,  ainda  que  náo  sãos 
das  feridas ,  e  de  envolta  com  os  da  dian- 
teira foram  commetter  o  baluarte  da  entra- 
da da  ponte ,  que  era  de  madeira  como  dif- 
femos.  Os  que  alli  eftavam  de  guarnição , 
como  fenáo  receavam  daquella  parte  ,  dor- 
miam defcançadamente  ,  e  nunca  fentírara 
coufa  alguma.  Os  noíTos  commettêram  o 
baluarte  com  muitas  panellas  de  pólvora, 
com  que  os  inimigos  defpertáram  em  meio 
das  labaredas ,  e  ardendo  neilas  largaram  o 
baluarte ,  e  acudiram  a  baixo  ao  poftigo  por 
onde  a  ponte  fe  fervia  ,  onde  já  eftavam  Ai- 
res da  Cunha  ,  Joáo  Pacheco  ,  e  outros  ,  que 
com  fogo  ,  e  vaivéns  arrombaram  as  portas 
por  onde  entraram.  E  pofto  que  acharam 
nos  inimigos  grande  refiílencia  ,  todavia  cí^ 
candalizados  do  fogo  ,  e  do  ferro  ,  larga- 
ram tudo  ,  e  foram  fugindo  pêra  a  Cidade  , 
ficando  o  baluarte  defpejado  ,  a  que  Joga 
puzéram  fogo,  que  ardeo  com  muita  bra- 
veza;  Sina  Raja  o  noíTo  Capitão  Mfilayo  ^ 

G  ii     ^  que 


loo  ÁSIA- DE  Diogo  de  Couto 

que  eftava  na  praia ,  em  vendo  o  fogo ,  co- 
meçou a  bater  a  Cidade  ,  e  com  grandes 
gritas  5  c  eílrondos  fez  que  commcttia  a  en- 
trada. Lac  Ximena  que  eílava  fobre  avifo  , 
poz-íe  a  efperar  os  noíTos  com  grande  alvo- 
roço ,  porque  havia  que  fe  fatisfaria  nelles 
da  quebra  pníTada  ,  de  quando  commetteo 
Fernão  Serrão  ,  de  que  fahio  cfcalavrado  , 
e  corrido;  eefíando  nefte  fervor,  foram  dar 
com  elle  os  que  fogiam  da  ponte  ,  e  Jhe 
deram  novas  do  que  poria  hia ,  com  o  que 
cUe  ficou  fobrefakeado ,  e  o  mefmo  fez  El- 
Rey  tanto  que  o  foube.  Os  noíTos  foram 
entrando  a  Cidade  ,  indo-lhe  pondo  fogo 
em  todas  as  cafas  ,  que  eram  de  madeira  ^ 
de  que  fe  elle  apolTou  com  fua  braveza  acof- 
tumada.  Vendo  ElRey ,  que  cuidava  que  tu- 
do era  mentira,  fer  tamanha  verdade  o  que 
lhe  diíícram  ,  não  teve  mais  tempo  que  pê- 
ra fe  pôr  em  hum  elefante,  e  fugir,  lem  le- 
var mais  que  fua  peíToa.  Já  nefte  tempo  hia 
amanhecendo ,  e  os  noflbs  viam  tudo  muita 
bem  ,  e  hiam  mais  a  fua  vontade  fazendo 
pela  Cidade  grandes  eftragos.  Pêro  Mafca- 
renhas  que  hia  por  huma  parte  ,  encontrou-fe 
com  hum  Capitão  chamado  Laxa  Raja  ,  com 
perto  de  mil  e  quinhentos  homens,  e  pondo 
o  Governador  o  guião  de  Chrifto  no  meio , 
elle  fepoz  diante  dos  feus  com  grande  va- 
lor ,   e  esforço  pelejando ,  e  animando-os , 

e  tal 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  III.    loi 

e  tal  eílrago  fez  nos  inimigos,  que  foi  ef- 
panto.  Aqui  fe  aíTinaláram  muito  Álvaro  de 
Brico  ,  e  António  de  Brito  ,  Simão  de  Sou- 
ia  Galvão  ,  Aires  da  Cunha  ,  Francifco  de 
Mello  Pereira  ,  João  Pacheco  ,  Francifco  de 
Sá  ,  e  outros  Fidalgos ,  e  Cavalleiros  ,  que 
todos  eíle  dia  deram  grandes  provas  de  fuás 
peíToas  matando  cada  hum  delles  muitos 
Mouros.  O  Laxa  Kaja  ,  que  era  grande  Ca- 
valleiro  ,  teve  fempre  o  rofto  aos  noíTos ,  fa- 
zendo também  grandes  cavallerias  ,  e  quiz 
Deos  que  lhe  deílem  duas  cfpingardadas  com 
que  fe  foi  logo  recoiiiendo  ,  e  os  feus  fe 
puzeram  em  disbarato.  Pêro  Mafcarenhas 
lhe  foi  feguindo  o  alcance ,  em  que  os  noí- 
fos  foldados  fizeram  grandes  cruezas :  Fran- 
cifco de  Sá  ,  Fernão  Serrão  ,  Duarte  Coe- 
lho ,  e  os  mais  que  os  feguiam  ,  foram  de- 
mandando os  paítos  d^ElRej  ,  e  deram  com 
Lac  Ximena ,  que  já  fabia  da  fogida  d'El- 
Rey  5  e  também  hia  recolhendo-fe  com  hu- 
ma  grande  companhia  de  Mouros  ,  e  remet- 
tendo  os  noíTos  a  elles  ,  travaram  huma  mui- 
to cruel  batalha  ,  em  que  houve  grandes  dam- 
nos ;  mas  como  Lac  Ximena  pelejava  com 
defconfiança  ,  vendo  o  eílrago  que  os  noi- 
fos  faziam  ,  largou  tudo  ,  e  foi-fe  recolhen- 
do 5  ficando  deíla  feita  a  Cidade  em  mãos 
dos  noíTos.  Seria  ,  já  quando  fe  acabou  de 
arrematar  a  vitoria ,  meio  dia ,  e  foi  huma 

das 


102  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

das  maiores  que  na  índia  fe  alcançou  ,  por- 
que na  Cidade  havia  fete  mil  Iiomens  eíco- 
Ihidos  5  e  muitos  Mouros ,  de  que  m.orrê- 
ram  quatrocentos  a  fora  muitos  feridos  ,  e 
dos  noílbs  nao  morreram  mais  que  dous , 
ou  três  5  e  nenlium  de  nome.  Havida  a  vi- 
toria 5  mandou  o  Governador  faquear  a  Ci- 
dade ,  em  que  íe  acharam  muitos ,  e  ricos 
defpojos  ,  porque  citava  com  todo  feu  re- 
ceio. Pelo  muro,  e  bakiarte  íe  acharam  tre- 
zentas peças  de  artilheria  ,  que  o  Governa- 
dor mandou  recolher.  Eila  noite  íe  agaza- 
Ihou  o  Governador  nas  caías  d'ElRey  ,  man- 
dando pôr  Capitães  nas  portas  que  hiam  pê- 
ra o  Sertão  ,  e  ao  outro  dia  ,  e  fmco  ,  ou  íeis 
in^is  ,  que  durou  o  faço  lempre  fe  achou 
que  recolher  :  e  nelíes  chegou  ElR-cy  de  Lin- 
ga  ,  grande  amigo  dos  Portuguezes ,  que 
vinha  em  feu  foccorro  ,  com  dezoito  lan- 
charas ,  o  que  foi  recebido  muito  bem  do 
Governador,  e  mandou  que  com  toda  a  fua 
gente ,  e  alguns  Portuguezes  foíTe  correr  a 
Ilha ,  e  trabalhaílem  por  haver  aquelle  Rey 
ás  maós ,  o  que  elle  nao  aguardou  ,  porque 
já  fe  tinha  paífado  a  Viantava  ,  onde  fun- 
dou nova  Cidade,  c  em  que  viveo  pouco, 
porque  logo  faleceo  ,  e  lhe  fuccedeo  feu  fi- 
lho Alaiidim ,  que  he  o  que  Caftanheda ,  e 
Pedro  Alapheo  dizem  fer  eíle  ,  que  Pêro 
Mafcarenhas  lançou  fora  de  Bintao ,   fendo 

na 


Dec.  IV.  Liv.II.  C AP.  III.  E  IV.  103 

na  verdade  feii  pai,  como  nós  o  averiguá- 
mos com  os  Embaixadores  de  Jor  ,  que  á 
Ilidia  vieram  :  Pela  Ilha  foram  mortos  mui- 
tos Malayos  ,  e  cativas  duas  mil  almas ;  e 
não  tendo  alli  mais  que  fazer  ,  mandou  o 
Governador  pôr  fogo  a  toda  a  Cidade,  que 
ardeo  três  diíis.  Aqui  veio  ter  com  Pêro 
Mafcarenhas  o  Senhor,  que  foi  de  Bintao , 
a  quem  aquelle  Rev  tomou  aquella  Ilha,  e 
lliQ  pedio  o  reílituiíTe  nella  ,  que  clle  que- 
ria fer  vaííallo  de  Portugal:  O  Governador 
lha  concedeo  ,  e  lhe  paítou  carta  de  vaílal- 
lagem  ,  e  de  como  lhe  concedia  aquella  Ilha  , 
com  condição  ,  que  nunca  mais  elle ,  nem 
íèus  herdeiros  fízeílèm  alli  fortaleza  algum.a  , 
nem  trariam  Armadas  no  mar.  Ncftas  cou- 
fas  gaftou  o  Governador  perto  de  hum  mcz  , 
e  defpedio  dalli  Francifco  de  Sá  pêra  a  Sun- 
da ,  e  eile  fe  tornou  pêra  Malaca  a  efperar 
a  moução  pêra  fe  ir  pêra  a  índia. 

CAPITULO      IV. 

Do  ahoroço  (jue  havia   na  gente  ãa  índia 
fohre   o  governo   de  Lopo  Va^,   de  Sam- 
paio :  e  de  como  fe  elle  fez  preftes  pê- 
ra ir  hufcar  as  galés  dos  Rumes, 

T  Ornando  a  continuar  com  o  Governador 
Lopo  Vaz  de  Sampaio ,  que  deixamos 
em  Cochim ,  dando  expediente  a  muitas  cou- 

fas. 


104  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fas ,  deram-lhe  cartas  de  Goa  ,  c  de  Chaiil , 
em  que  lhe  certificavam  eíbrem  em  Cama- 
lão  as  galés  de  Rumes  com  determinação 
de  paíTarem  a  invernar  a  Dio ,  e  dalli  faze- 
rem guerra  a  toda  a  índia  ,  e  irem  lobre 
Goa ,  e  não  fe  recolherem  até  deitarem  fò- 
la  todos  os  Portuguezes.  Com  eílas  novas 
fe  malenconizou  o  Governador,  e  ajuntan- 
do os  Capitães ,  e  Fidalgos  a  confelho  ,  fo- 
ram os  mais  dellcs  de  parecer  ,  que  foíFe  ef- 
perar  as  galés  á  ponta  de  Dio  ,  e  que  alli 
pelcjaíTe  com  ellas  ,  e  que  lhe  leria  fácil  a 
vitoria  j  porque  as  tomaria  <:om  a  artilheria 
.abatida  ,  e  deííroçadas  ,  e  desbaratadas  da 
viagem  ;  e  que  fe  lhes  deííem  tempo  pêra 
fe  reformarem  ,  e  ajuntarem  com  a  Armada 
de  Cambaya  ,  fcm  dúvida  nenhuma  fe  fa- 
riam fenhores  da  índia.  Com  efta  refoluçao 
ie  começou  a  fazer  preftes  ,  c  defpedio  hum 
catiir  muito  ligeiro  a  Choromandel ,  dirigi- 
do a  Ambroíio  do  Reg^ò  ,  que  alli  eílava  por 
Feitor,,  a  quem  efcrevco  ,  e  m.andou  gran- 
des provisões ,  pêra  m^andar  pregoar  por  to- 
da aquella  coíla  ,  em  que  mandava  a  todos 
os  Portuguezes  que  por  ella  andavam  ,  que 
tanto  que  aquclla  viíTem  fe  foffem  logo  pê- 
ra Cochim  onde  os  efperava  ,  pêra  o  acom- 
panharem naqueila  jornada,  fob  pena  defe- 
rem havidos  por  traidores,  e  alevantado^ , 
e  fe  proceder  contra  elles ,  e  contra  fuás  fa- 

zen- 


Década  IV.  Liv.  IL  Cap.  IV.  105- 

zendas ,  onde  quer  que  foíTcm  achadas ,  co- 
ino  elTes  ;  e  que  a  todos  os  que  pêra  eiie 
vieíTem  perdoava  quaeíquer  culpas  que  tiveí- 
fem  ,  e  aos  fentenciados  já  ,  rodos  os  degre- 
dos ,  e  penas  crimes  ,  em  que  eílavam  con- 
demnados.  Deíla  Provisão  zombaram  todos, 
porque  por  aquella  coíla  não  eíbiva  havido 
por  verdadeiro  Governador.  Os  apparatos 
da  Armada  hiam  creícendo  a  mor  prciTa  ,  e 
o  Governador  Lopo  Vaz  andava  todos  03 
dias  na  ribeira  dando  ordem  ,  e  aviamento 
a  tudo,  e  como  nao  ceíTavam  as  murmura- 
ções de  feu  governo  ,  e  da  íiiccefsâo  que  fe 
abrio  ,  havia  muitos  que  publicamente  di^ 
ziam  ,  que  fingiam  aquellas  novas  das  galés  , 
pêra  ter  aquella  occaíiao  de  as  ir  buícar  por 
íe  aíFaítar  de  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  nao  fe 
encontrarem  ,  por  íenao  pôr  com  ellc  a  di- 
reito,  e  que  pêra  lhe  ficar  aelle  melhor  par- 
tido ,  queria  levar  toda  a  Armada  que  ha- 
via na  índia  ,  em  que  confiília  todo  o  poder 
.delia,  porque  nao  ficava  algum  outro  a  Pê- 
ro Mafcarenhas  ,  e  com  ifto  diziam  também 
publicamente  que  o  não  haviam  de  acom- 
panhar ,  porque  cada  dia  fe  efperava  por 
Pêro  Mafcarenhas.  Tudo  iílo  foi  ás  orellias 
de  Lopo  Vaz ,  do  que  ficou  muito  enfada- 
do ,  e  de  feito  nao  queria  a  mor  parte  da 
gente  receber  foldo ,  nem  embarcar-fe  ,  ef- 
tando  elle  já  de  todo  pêra  o  fazer ;  e  que- 
rei)- 


loó   ÁSIA  UE  Diogo  de  Couto 

rendo  atalhar  eítas  deíbrdens  \  eílando  hum 
Domingo  áMilTa  ,  em  fe  levantando  o  San- 
tiífimo  Sacramento  ,  diíTe  em  alia  voz  :  Juro 
naquella  Hojlia  confagraàa  ,  eyn  que  ejiã  o 
'verdadeiro  Corpo  de  nojjb  Senhor  Jefus  (^hri- 
fto  ,  que  fiejia  jornada  não  tive  ,  nem  tenho 
outra  tenção ,  fenão  de  ir  hufcar  a  Arma- 
da do  Turco  ,  e  pelejar  com  ella  ,  porque  fe 
ãjji  Q  não  fizer  ,  far-fe-hao  elles  fenhores 
de  toda  a  índia ;  e  por  ejla  fer  minha  ten- 
cão  5  mando  a  todo  o  homem  Fortuzuez  ,  ti- 
rando  os  da  obrigação  dejla  fortaleza  ,  que 
logo  fe  embarquem  comigo  ,  e  não  o  fazen- 
do ,  Jãibam  certo  todos  os  que  ficarem  que 
os  hei  de  cafiigar  gravijfimaniente.  Feita 
cfta  diligencia  ,  comecou-íc  a  embarcar  ,  e  o 
meímo  fizeram  todos  ,  por  liaverem  que  era 
verdadeira  a  ida  em  bufca  dos  Rumes  ,  com 
quem  todos  delejavam  de  íe  verem  ás  mãos. 
Podo  no  mar  deixou  por  regimento  ao  Vea- 
dor  da  fazenda  AfFonfo  Mexia  ,  que  quan- 
do Pêro  Mafcarenhas  cliegaíTe  de  Malaca 
áquelie  porto  ,  lhe  mandaíTc  notificar  fua  fuc- 
celsão  ,  pêra  que  foubeíle  a  mudança  que  El- 
Rey  tinha  feito  ,  pêra  que  nao  cuidaíTe  que 
havia  de  defembarcar  como  Governador :  e 
que  fe  o  quizeíTc  fazer  como  Fidalgo  par- 
ticular ,  o  deixafile  ,  e  quando  não ,  que  lhe 
defendeíTe  a  defembarcacão  ás  lançadas.  Com 
eíie  regimento  deixou  Imma  carta  pêra  Pêro 

Maf- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  IV.   107 

Mafcarenhas  pêra  lha  mandar  á  barra  quan- 
do alii  chegaíTe  ,  em  que  o  confolava  da  mu- 
dança que  ElRey  tinha  feito  nas  íuccefsoes 
da  governança  ,  fazendo  a  elle  fegundo  nas 
próximas ,  fendo  primeiro  nas  paíTadas ,  fa- 
zendo-lhe  comprimentos  largamente  pêra 
ver  fe  com  elles  lhe  podia  tapar  a  boca.  E 
dada  á  vela  antes  que  Janeiro  fe  acabaíTe , 
chegou  a  Cananor ,  aonde  fe  vio  com  Dom 
Simão  de  Menezes  5  que  alli  eftava  por  Ca- 
pitão 5  e  lhe  deo  o  mefmo  regimento  fobre 
as  coufis  de  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  deixou 
naquella  coita  por  Capitão  mor  Jorge  de- 
Soufa  com  dez  ,  ou  doze  navios  de  remo , 
dalli  fe  fez  á  vela  pêra  Goa ,  e  em  Batica- 
lá  achou  Eitor  da  Silveira  ,  que  (como  atrás 
diífemos )  deixara  de  paliar  o  eftreiro  por 
confelho  de  Chriílovao  de  Soufa ,  pela  cer- 
teza que  havia  das  galés ,  e  delíe  foube  to- 
das as  novas  ,  com  que  defpedio  hum  catdr 
ligeiro  a  Chaul  com  cartas  a  Chriílovão 
de  Soufa  ,  em  que  o  avifava  de  como  hia 
efperar  os  Rumes ,  e  lhe  pedia ,  que  Ih^  ti- 
velTe  preíles  todos  os  navios,  e  gente,  que 
pudeífe  pêra  o  acompanhar  ,  porque  fenlo 
detiveíTe  alli.  E  indo  na  derrota  de  Goa  , 
achou  no  caminho  Fernão  de  Moraes  em 
hum  navio  que  vinha  de  Ormuz  com  car- 
tas de  Diogo  de  Mello  ,  e  d'ElRe7  ,  em  que 
lhe  faziam  queixas  muito  grandes    de  Rax 

Xar- 


loS  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Xarrafo  ,  e  lhe  requeriam  que  o  manJaíTe 
levar  daquella  fortaleza ,  porque  em  quanto 
nella  eftiveíTe ,  não  deixaria  de  tentar  aígj- 
ma  novidade ,  como  já  fizera  em  tempo  do 
Governador  Diogo  Lopes  de  Sequeira.  Com 
iílo  ficou  o  Governador  muito  enfadado , 
porque  eram  couías  ,  que  podiam  dar  muito 
trabalho  ao  Eílado.  Chegando  a  Goa  apofcn- 
tou-fe  em  S.  Francifco ,  onde  chamou  a  con- 
fclho  todos  os  Capitães  ,  Cidadóes ,  Mef- 
tres  ,  e  Pilotos  ,  e  lhes  propoz  como  os 
Rumes  eftavam  na  Ilha  de  Camarão  ,  e  que 
por  alguns  avifos  que  tivera  iabia  de  certe- 
za que  haviam  de  invernar  nella  pêra  em 
Agollo  paíTarem  á  índia :  e  que  fem  embar- 
go deeílar  aííèntado  que  os  foíTe  eíperar  na 
ponta  de  Dio ,  a  elle  llie  parecia  melhor  il- 
los  bufcar  a  Camarão  ,  porque  os  tomaria 
em  terra  ,  e  com  as  galés  defemaíleadas  ,  e 
defguarnecidas  ,  eque  por  nenhum  caio  lhes 
poderiam  eícapar :  que  viílbm  todos  o  que 
lhes  parecia  daquelle  negocio.  Debatido  en- 
tre todos  5  tornaram  a  concordar  em  os  ir  eC- 
perar  á  ponta  de  Dio  ,  aonde  forçado  ha- 
viam de  ir  demandar  ,  c  que  inda  pêra  o 
fazer ,  era  necelfario  efperar  pelas  náos  do 
Reyno  ,  que  haviam  de  vir  na  entrada  de 
Setembro,  porque  não  havia  na  índia  Ar- 
mada ,  nem  gente  baítantc  pêra  os  ir  alli  ef- 
perar ^  quanto  mais  illos.  bufcar  a  Camarão  ^- 

aon- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  IV.  109 

aonde  forçado  havia   de  chegar  com  a  Ar- 
mada dividida ,  e  deílroçada  ,  e  mais  rendo 
exemplos  de  caía  ,    dos  defaftres ,    e  perdi- 
ções que  paíTáram  AfFonfo  d'Alboquerque, 
e  Diogo  Lopes   de  Sequeira  quando  entra- 
ram aqueile  eílreito  ,  que  quando  elles  efta- 
vam  tão  certos  na  paragem  de  Dio  ,   pêra 
que  era  canfar  cm    os  ir  bufcar  tão  longe  ? 
De  tudo   iílo  mandou  o  Governador  fazer 
hum  auto  aílinado  por  todos ,  e  defiílio  da 
ida  ,  mandando  recolher  a  Armada  pêra  den- 
tro. Tanto  que  fe  iílo  vio  ,  começaram  a  re- 
fufcitar  as  murmurações  paíTadas  ,   afirman- 
do que  fempre  fora  entendido  ferem  aquei- 
las  coufas  do  Ggvernador  cumprim.entos ,  e 
ficções  pêra    fe  fahir  de  Cochim  ,    por  fe- 
não  encontrar  alli   com  Pêro  Mafcarenhas , 
e  tornaram  a  haver  novos  bandos,   e  ajun- 
tamentos. O  Governador  defpedio  Manoel 
de  Macedo    em    huma   caravela   pêra  ir    a 
Ormuz  com  Provisões  ,  e  papeis  pêra  pren- 
der Rax  Xarrafo  ,  e  levallo  pêra  Goa ,  dan- 
do-lhe   por  regimento  que  tornaíTe  a  inver- 
nar.   E  defpedio  António   de  Miranda   de 
Azevedo  Capitão  mor  do  mar  com  fua  Ar- 
mada   pcra  Cochim  ,    dando-lhe  por  regi- 
mento  que  leva  fie  grandes  vigias   em  Pêro 
Mafcarenhas  ,   e  que  encontrando-o  lhe  re- 
querefTe  da  parte  d'EiRey  ,   e  da  fua,  que 
fe  fo  fie  invernar  a  Cananor,  ou  em  Cochim, 

e  que 


lio  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

e  que  quando  nao  quizeíTe  fenao  paílar  a 
Goa  ,  voItaíTe  com  elle  até  a  barra ,  donde 
o  não  deixaria  paíTar  até  lho  fazer  a  faber, 
e  deo-lhe  huroa  carta  pêra  lha  dar ,  em  que 
o  confolava ,  e  Uie  dizia  ,  que  quizeíTe  tor- 
nar por  Capitão  de  Malaca  ,  que  lhe  accrel- 
centaria  os  ordenados ,  e  faria  muitas  mer- 
cês, lílo  tratava  o  Governador ,  porque  lhe 
não  vinha  bem  entrar  Pêro  Mafcarenhas  em 
Goa  ,  porque  fabia  mui  bem  a  juíliça  que 
contra  elle  tinha  ,  e  como  toda  a  gente  era 
amiga  de  novidades  ,  caufaria  hum  grande 
alvoroço  ,  e  o  fariam  pôr  com  elle  a  direi- 
to ,  CO  ufa  que  IhQ  nao  vinha  bem. 

CAPITULO     V. 

Do  qiie  aconteceo  a  Vero  Mafcarenhas 
até  chegar  a  Cochhn  :  e  de  como  Ajfonfo 
Mexia  lhe  defendeo  a  defembar cação  :  e  do 
que  paj]bu  em  Cananor  ,  e  de  como  fe  par- 
tia em  hum  catúr  fera  Goa, 

CHegado  Pêro  Mafcarenhas  a  Malaca , 
proveo  em  muitas  coufas  daquella  for- 
taleza ,  e  como  entrou  o  mez  de  Dezembro  , 
negociou  os  navios  que  havia  de  levar  pêra 
Goa  ,  e  mandou  embarcar  a  fazenda  que  ha- 
via d'ElRey  ,  e  de  vinte  do  mez  por  dian- 
te fe  fez  á  vela  pêra  Goa  com  três  galeões 
carregados  de  drogas  j  e  fazendo  fua  via- 

ííem , 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  V.  iii 

gcm  ,  profpcramente  chegou  a  (.'oulâo  ,  onde 
foi  recebido  do  Feitor ,  e  Alcaide  inór  co- 
mo feu  Governador :  poílo  que  tinha  regi- 
mento de  Lopo  Vaz  de  Sampaio  em  con- 
trario ,  e  delle  foube  todas  as  coiifas  que  eram 
paíTadas  fobre  as  íuccefsóes  ,  do  que  ficou 
aíTás  apaixonado  ;  e  tomando  alli  confelho 
fobre  o  que  faria  ,  lhe  diíTc  hum  Simão  Caei- 
ro ,  que  elle  fizera  Ouvidor  geral ,  que  fe 
foíTe  logo  a  Cochim  ,  c  caftigaííe  rijamente 
o  Veador  da  fazenda ,  porque  abrio  a  fuc- 
cefsão  ;  e  que  pofto  que  já  eílava  aberta, 
lhe  não  prejudicava  a  feu  direito  ,  porque 
elle  pela  primeira  era  o  verdadeiro  Gover- 
nador da  índia.  Com  iíto  partio  Fero  Maf- 
carenhas  ,  e  furgio  na  barra  de  Cochim  o 
derradeiro  de  Fevereiro  ,  hum  fabbado  á 
tarde.  O  Veador  da  fazenda,  que  trazia  funs 
vigias  5  fabendo  de  fua  chegada  ,  mandou 
logo  dous  Juizes  ,  e  èm  fua  companhia  Duar- 
te Teixeira  Theíoureiro  das  mercadorias  d* 
ElRey  ,  e  Manoel  Lobato  feu  Efcrivão , 
pêra  que  foíTem  á  náo  de  Pêro  Mafcarenhas 
a  lhe  notificar  a  nova  fuccefsão  de  Lopo 
Vaz  de  Sampaio ,  e  o  traslado  do  regimen- 
to que  lhe  cleixára  ,  e  que  lhe  requereíTem 
da  parte  d'ElRey ,  que  obedeceííe  ao  dito 
Lopo  Vaz  de  Sampaio ,  pois  era  Governa- 
dor da  índia.  Entrados  eílcís  homens  no  ga- 
leão ,  fizeram  fuás  notificações  a  Pêro  Mafca-* 


II2ASIA  DE  Diogo  de  Couto 

rcnhas  ,  do  que  fe  clle  apaixonou,  e  diíTe^ 
que  a  fiiccefsao  que  le  abrira  era  falfa  ,  e 
que  não  eílava  aílinada  por  ElRey  D,  João  , 
e  que  elle  eílava  de  poíTe  da  governança , 
como  ie  via  por  hum  auto  que  elle  mefmo 
Affonfo  Mexia  lhe  mandara  a  Malaca  j  e 
porque  o  íeu  Ouvidor  geral  lhe  diíTe  .que 
í]ão  diíIimulaíTe  com  aqucllas  couías  ,  que 
eram  calo  de  traição  ,  mandou  logo  Pêro 
Mafca rcnhas  fazer  hum  auto  ,  em  que  ou- 
ve os  Juizes  por  fufpenfos ,  e  prezos  os  man- 
dou pêra  luas  caías  ,  e  a  Duarte  Teixeira  , 
e  Maneei  Lobato  mandou  logo  lançar  gri- 
lhões 5  e  os  deixou  ficar  prezos  no  galeão. 
Sabido  Jílo  pelo  Veador  da  fazenda,  man- 
dou-lhe  requerer ,  que  lhe  foltafie  o  Thefou- 
reiro  ,  e  Elcrivao  das  mercadorias ,  porque 
fe  poderia  perder  a  fazenda  d'ElRey  ,  que 
eílava  em  feu  poder;  mandando-lhe  requerer 
de  novo  5  que  obedeceíle  a  Lopo  Vaz  de 
Sampaio  como  a  Governador ,  e  que  fe  fof- 
fe  pêra  Goa  onde  o  acharia  ,  e  requereria 
fua  juíliça.  A  iflo  refpondeo  Pêro  Mafcare- 
iihcis  5  que  ao  outro  dia  lhe  daria  a  refpoíla 
cm  terra.  O  Veador  da  fazenda  temendo-fe 
que  elle  defembarcaíTe  de  noite  ,  e  que  fe 
metteíTe  na  Cidade,  lepicando  o  íino  ajun- 
tou todos  os  cafados  ,  e  armando-fe  foram 
vigiar  a  praia,  como  fe  nella  houvelíem  de 
defembarcar  os  Rumes,  que  citavam  em  Ca- 
ma- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  V.  113 

míirão,  mandando  o  Vcador  da  fazenda  por 
vezes  requci  imentos  a  Pêro  Mafcarenhas  y 
que  íiao  deíembarcaíTe  ,  affirmando-Ihe  no 
derradeiro,  que  lhe  havia  de  defender  por 
armas  a  defcm.barcaçâo  ,  porque  aífi  llio  man- 
dava o  Governador  da  índia.  Q  Governa- 
dor Pêro  Mafcarenhas  eíleve  pêra  paííar  a 
Goa  5  mas  os  feus  lhe  aconfelháram  que  em 
nenhum  modo  deixaííe  de  defembarcar,  com.' 
cor  de  dizer  que  hia  ouvir  Mi0a  aterra  por 
ler  Domingo  ;  porque  tanto  que  puzeíTe  os;" 
pés  em  terra  .  como  era  legitimo  Governa- 
dor ,  forçado  lhe  haviam  de  acudir  todos 
os  do  povo  ,  e  que  então  poderia  prender 
AíFonfo  Mexia  ,  e  caftigallo  conforme  a  fuasí 
culpas.  Com  ifto  defembarcou  ao  outro  dia 
pela  m.anhã  nos  batéis  das  fuás  náos  ,  não 
confentindo  que  algum  dos  feus  levaíTe  ar- 
mas ,  leva. ido  Ouvidor  geral ,  e  Meirinho 
com  fuás  varas.  Chegando  á  praia,  onde  o 
Veador  da  fazenda  andava  em  hum  formofo 
cavai  lo  acubertado  ,  armado  em  coura  de  la- 
minas ,  de  lança ,  e  adarga ,  e  acompanha- 
do de  todos  os  cafados  ,  e  vendo  chegar  os^ 
batéis  ,  mandou  que  feriííem  a  todos  os  que- 
nelles  vinham  ,  e  que  os  maíaíTem ,  fe  qui- 
zeíTem  defem^barcar ,  e  aí!i  arremetiêram  to- 
dos as  embarcações,  íèm  darem  pelos  bra- 
dos que  lhes  Pêro  Mafcarenhas  dava  ,  re- 
querendo-lhes  da  parte  de  Deos  ,  e  d'ElRey 
'Couto.  Tom.  L  P.  L  H  que 


114  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

que  eftiveflem  quedos ,  porque  elJes  vinham 
pacificamente  como  Chriílaos  a  ouvir  MiíTa. 
Affonfo  Mexia  dando-lhe  pouco   de  tudo , 
mandava  que  os  lanceaíTem  ,  como  começa- 
ram a  fazer ,  fem  os  da  parte  de  Pêro  Maf- 
carenhas  terem    com  que  fe  defender.    To- 
dos os  naturaes  da  terra  acudiram  á  praia , 
e  vendo  fazer  aquillo  a  hum  homem ,   que 
hia  com  nome  de  Governador,  eftavam  paf- 
mados  de  coufa  tão  feia.  Pêro  Mafcarenhas 
primeiro  que  fe  pudeíTe  recolher  foi  mui  bem 
efpancado  ,  e  ferido  em  hum  braço ,,  aquel- 
le  a  que  tanto  núm.ero  de  inimigos  emBin^ 
tão  não  pudera  fazer  nojo ,   virem  os  ami- 
gos  em  fua  própria  Cidade  defembarcando 
pacificamente  ao  aíFrontarem  ,  e  makratarem  , 
coufa  foi  nunca  imaginada  de  Portuguezes , 
e  menos  caíligada   de  todas    as  que  vimos , 
fendo   cila  dina  de  hum  exemplar  caíligo  ; 
porque    quando  nefta   noíTa  hiftoria    fe  lelTe 
hum  cafo  tão  abominável  ,  fe  achaíTe  logo 
junto  delle  a  juíliça  ,  pêra  que  viíTe  o  Mun- 
do quão  inteiramente   os  Reys  de  Portugal 
a  guardam  com  todos ,  e  que  a/Ii  como  fa- 
bem  remunerar  ferviços  ,   aífi  tem  por  obri- 
gação caíligar  culpas  ,  e  deliílos.  Em  fim  os 
da  companhia   de  Pêro  Mafcarenhas   fe  af- 
faftáram  pêra  fora  ,   e   fe  tornaram  pêra   as 
nãos  bem  moidos  ,  e  efcalavrados  ,  fahindo 
ferido   de  huma  chuffada  roim  Jorge  Maf- 

ca- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  V.  115' 

carenhas  fobrinho  de  Pêro  Mafcarenhas.  E 
fendo  nas  náos ,  mandou  o  Governador  Pê- 
ro Mafcarenhas  fazer  hum  auto  pelo  Ouvi- 
dor geral  daquella  reliftencia  ,  mandando 
apregoar  pela  Armada  ao  Veador  da  fazen- 
da ,  e  moradores  de  Cochim  por  traidores , 
e  alevantados  contra  a  Coroa  Real.  AfFonfo 
Alexia  defpedio  logo  hum  catiir  ligeiro  pê- 
ra Goa  com  cartas  pêra  o  Governador  Lo- 
po Vaz  de  tudo  o  iuccedido  ,  em  que  foi 
Aires  da  Cunha,  que  também  levou  cartas 
de  Pêro  Mafcarenhas  pêra  elle  y  e  pêra  to- 
dos os  Fidalgos  ,  em  que  lhes  dava  conta 
do  que  lhe  Affonfo  Mexia  fizera  ,  pedindo 
aos  Fidalgos  todos  ,  que  determinaíTem  qual 
era  o  verdadeiro  Governador  ,  porque  elle 
não  queria  fenao  juftiça.  Affonfo  Mexia  man- 
dou requerer  ao  Governador  Pêro  Mafcare- 
nhas ,  que  IhQ  mandaífe  entregar  os  galeões 
d'ElRey  com  toda  lua  fazenda  pêra  fe  ven- 
der 5  e  fe  quizeífe  ir  pêra  Goa  ,  lhe  daria 
huma  caravela  :  difto  foi  contente  Pêro  Maf- 
carenhas ,  porque  depois  que  fe  lhe  paífou 
aquelle  grande  accidente  de  paixão  ,  deter- 
minou de  levar  o  negocio  per  termos  de 
paciência  ,  por  imitar  Aífonfo  d'Alboquer- 
que  nas  coufas  que  lhe  fuccedêram  com  o 
Vifo-Rey  D.  Francifco  de  Almeida.  O  Vea- 
t3or  da  fazenda  mandou  a  caravela  a  Pêro 
Mafcarenhas  ,   á  que  fe  paífou,  e  recolheo 

H  ii  com- 


ii6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

comfígo  os  que  quizeram  ,  os  mais  fe  foram 
pêra  terra  ,  e  entre  elles  foi  Jorge  Mafcarc- 
nhãs  ,  porque  eílava  mal ,  a  quem  o  Veado r 
da  fazenda  mandou  Jogo  levar  prezo  a  Cou- 
láo  5  e  aíTi  prendeo  em  ferros  todos  os  mais 
que  fc  defembarcáram.  Pêro  Mafcarenhas  fe 
fez  á  véla  ,  com  determinação  de  ir  a  Ca- 
nanor  efperar  refpoíla  de  fuás  cartas;  e por- 
que D.  Simão  de  Menezes  era  feu  amigo , 
onde  podia  fcr  achaíTe  melhor  gazalhado 
que  em  Cochim  ,  e  furgindo  naquella  bar- 
ra ,  mandou  recado  a  D.  Simão  de  fua  che- 
gada,  que  Jhe  mandou  dizer,  que  lhe  pe- 
zava  muito  de  fua  vinda  fer  em  tempo ,  em 
que  lhe  não  podia  fazer  ferviço  algum  ,  co- 
mo feu  fervidor  que  era  ,  porque  tinha  or- 
dem do  Governador  Lopo  Vaz  de  Sampaio  , 
em  que  lhe  mandava  ,  que  fe  foíTe  ter  áquel- 
la  fortaleza  ,  e  nella  quizeíTe  defembarcar 
como  Fidalgo  particular  ,  tão  honrado ,  e 
de  tanto  merecimento,  que  o  recebeíTe  con- 
forme a  fua  peíToa  ;  mas  que  fe  o  quizeíTe 
fazer  com  nome  de  Governador  ,  que  IJio 
não  confentiíTe ,  e  elle  pela  que  devia  a  fua 
lealdade  ,  não  podia  fazer  outra  coufa  ,  por- 
que Lopo  Vaz  eftava  havido  por  Governa- 
dor da  índia  ,  e  eftava  em  lugar  d-ElRey. 
Pêro  Mafcarenhas  lhe  miandou  dizer  que  fa- 
zia naquiilo  muito  bem  ,  que  não  queria  del- 
le  mais    que  hum  catúr  pêra  ir  nelle  para 

Goa, 


Dec.  IV.  Liv.  II.  Cap.  V.  E  VI.  117 

Goa  ,  por  ir  ainda  mais  razo  ,  c  com  menos 
fiifpeitas  de  querer  alguma  coufa  por  força , 
fenão  por  juíliça  ,  o  que  lhe  D.  Simão  lou- 
vou muito  ,  e  lhe  mandou  hum  catiir  mui- 
to bem  negociado  ,  em  que  não  levou  mais 
que  Simão  Caeiro  ,  e  Lançarote  de  Seixas  , 
e  dous  pagens  que  o  ferviflem  ,  e  aíli  fe  par- 
tio  pêra  Goa  ,  parecendo-lhe ,  que  os  Fidal- 
gos 5  e  Capitães  da  índia  ,  quando  Lopo 
Vaz  fe  não  quizelTe  pôr  em  juíliça  com  el- 
Ic  5  lho  fariam  fazer  ,  porque  havia  que  tan-^ 
to  que  Lopo  Vaz  fe  puzeíTe  com  elle  a  di- 
reito ,  pelo  muito  que  tinha  ,  não  podia  dei- 
xar de  haver  fentença  contra  elle. 

CAPITULO     VI. 

Do  que  fez  Lopo  Vaz   de  Sampaio  tanto 

que  teve  novas  de  Fero  Mafcarenhas :  e 

de  como  o  mandou  efperar  na  barra , 

£  o  prenderam  em  ferros  ^  e  o  le^ 

varam  a  Cananor. 

Aires  da  Cunha  ,  que  atrás  diflemos , 
que  partio  de  Cochim  com  as  cartas 
pêra  Lopo  Vaz  de  Sampaio  ,  deo-fe  tanta 
preíla ,  que  chegou  a  Goa  a  quatro  dias  de 
Março  5  e  defembarcando ,  deo  ao  Gover- 
nador as  cartas ,  e  papeis  que  Affonfo  Me- 
xia lhe  mandava  ,  em  que  lhe  dava  conta 
de  tudo  o  que  era  paífado  com  Pêro  Maf- 

ca- 


ii8  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

carenhas ,  com  o  que  fe  houve  por  feguro 
na  governança.  E  dando  conta  do  cafo  a 
Eitor  da  Silveira,  a  Pêro  de  Faria,  e  a  ou- 
tros Fidalgos  feus  amigos  ,  lhe  aconfelhá- 
ram  que  em  nenhum  caio  confentifTe  vir  Pê- 
ro Mafcarenhas  a  Goa  ;  porque  fegundo  a 
gente  andava  alterada  das  coufas  paíTadas , 
e  haviam  que  Pêro  Mafcarenhas  era  o  ver- 
dadeiro Governador ,  lhe  acudiriam  todos , 
e  fe  levantariam  contra  elle.  Pareceo-Ihe  ao 
Governador  Lopo  Vaz  de  Sampaio  muito 
bem  iílo  ,  e  logo  efcreveo  a  António  de 
Miranda ,  Capitão  mor  do  mar ,  que  pelos 
grandes  inconvenientes  que  havia  ao  íervi- 
ço  d'ElRey  vir  Pêro  Maicarenhas  a  Goa  , 
que  o  efperaíTe  no  caminho ,  e  o  fizeíTe  tor- 
nar pêra  Cananor  ,  donde  não  fahiria  fem 
feu  mandado  ;  e  não  Jhe  querendo  obede- 
cer ,  o  prenderia ,  e  levaria  em  ferros  ,  e  o 
entregaria  a  D.  Simão  ,  de  quem  cobraria 
conhecimento  de  fua  entrega ;  e  que  fe  elle 
fe  quizeiTe  defender,  o  metteíTe  no  fundo, 
fazendo-lhe  primeiro  todos  os  proteftos  ,  e 
requerimentos  neceíFarios  ,  com  o  que  tor- 
nou a  mandar  o  mefmo  Aires  da  Cunha  , 
por  quem  refpondeo  a  Pêro  Mafcarenh?.s  por 
íiuma  carta ,  cujo  theor  hc  o  feguinte  :  JV- 
KÒor  ,  pe/a  carta  do  Veador  da  fazenda , 
€  pela  vojpi  foube  o  que  vos  aconteceo  em 
Cochinij   de  que  vós  ^  Senhor  ^  tendes  toda 

a  cuh 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  VI.  119 

a  culpa  y  pois  não  quí:^eftes  obedecer  aoí 
yneus  regimentos  ,  que  vos  Ajf07ífo  Mexia 
mandou  notificar  ,  pelo  que  nao  tenho  ra^ 
zão  de  o  caftigar ,  do  que  me  muito  peza  ; 
e  quanto ,  Senhor ,  a  vos  virdes  ver  comi* 
go  5  todos  os  Fidalgos  que  ejlao  nefla  Cida- 
de são  de  parecer  o  não  confinta  ,  por  me 
haverem  por  verdadeiro  Governador  ,  e  7tão 
terdes  jujliça  pêra  fohre  ejia  matéria  Jer- 
des  ouvido  ^  pelo  que  nao  fervia  voj]a  vinda 
de  mais ,  que  de  dar  torvação  a  fe  fazer  o 
que  he  necejfario  pêra  o  recebimento  dos  Ru- 
mes que  efperamos ,  de  que  ha  novas  muito 
certas',  pelo  que  vos  requeiro  da  parte  d''El- 
Rey  Nojfo  Senhor  ,  e  da  minha  vos  peço 
muito  vos  queirais  quietar ,  e  recolher  pê- 
ra a  fortaleza  de  Cananor  ,  como  o  Capi- 
tão mor  do  mar  vos  dird  ,  e  dahi  podeis 
mandar  requerer  o  que  quizerdes.  De  Goa 
hoje  vinte  e  fete.  E  a  Aires  da  Cunha  ,  que 
levou  eíbs  cartas ,  deo  a  Feitoria ,  e  Alcai- 
deria  mor  de  Coulao  ,  mandando  prender 
Henrique  Figueira  ,  que  nclla  eftava  por  El- 
Rey  5  porque  contra  fórma  de  feu  regimento 
agazalhou  Pêro  Mafcarenhas.  Aires  da  Cu- 
nha deo  eftas  cartas  ao  Capitão  mòr ,  que  fe 
defencontrou  com  Pêro  Mafcarenhas.  Tan- 
to que  em  Goa  foou  a  fua  vinda ,  começou- 
fe  a  alvoroçar  toda  a  Cidade ,  e  diziam  que 
elle  era  o  verdadeiro  Governador  ^  e  que  co- 
mo 


izo  ASIiV  DE  Diogo  de  Couto 

mo  a  eflc  lhe  haviam  todos  de  obedecer, 
íbbre  o  que  houve  uniões,  e  deíconcerros ; 
,e  por  fe  recear  Lopo  Vaz  que  com  lua  che- 
gada a  Goa  houvefie  grandes  deíaventuras , 
e  que  foíTe  elle  depoíío  da  governança  ,  o 
que  quiz  atalhar  com  mandar  Simão  de  Mel- 
lo feu  fobrinho  ,  e  António  da  Silveira  ,  que 
havia  de  fer  feu  genro  ,  com  grande  Arma- 
da de  fuílas  pêra  tomarem  ambas  as  barras 
de  Goa  ,  e  chegando  Pêro  Mafcarenhas ,  o 
prendefiem  ,  e  o  levaíTe  Simão  de  Mello  ix 
Cananor  ,  e  ido  fez  por  lho  aconfelharem 
os  Fidalgos  de  fua  parcialidade ,  de  que  o 
principal  era  Eitor  da  Silveira ,  a  quem  el- 
le quiz  encommendar  eíla  execução  ,  de  que 
fe  dlc  efcufou  ,  porque  lhe  feria  mui  tacha- 
do. Eíla  diligencia  efcandalizou  mais  a  to- 
dos ,  que  tudo  o  paíTado  ,  e  diziam  publi^ 
camente  ,  que  Lopo  Vaz  trabalhava  por  Per 
ro  ?vlafcarcnhas  nao  vir  a  Goa  pela  muita 
jiiíliça  que  tinha  ,  e  que  o  mandava  efperar 
com  tamanha  Armada  ,  como  fe  foram  buí- 
car  os  Rumes.  Ifto  ,  e  outras  coufas  Ihehiam 
de  noite  em.  magotes  dizer  de  baixo  da  fua 
janella  ,  onde  o  elle  ouviíTe.  Hum  Domin- 
go eílando  o  Governador  em  S.  Francifco 
é  Miífa  com  os  mais  dos  Capitães ,  Fidal- 
gos ,  Cavalleiros  ,  e  Povo ,  pregou  o  Guar- 
dião 5  que  era  homem  letrado  ,  e  Jio  cabo  da 
pregação  leo  cm  alta  voz  a  fuccefsâo,  por 

on-r 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  VI.  121 

onde  Lopo  Vaz  de  Sampaio  era  Governa- 
dor ,  e  logo  provou  com  muitas  razoes ,  que 
eftava  legitimamente  no  cargo ,  e  que  toda 
a  pcffoa  que  dizia  que  elle  tomava  por  for- 
ça a  governança  a  Pcro  Maicarenhas  ,  nao 
iò  lhe  alevantava  falfo  teftemunho  ,  mas  cora- 
mettia  traição  contra  ElRcy  ,  coufa  m.uito 
eílranhada  entre  os  Portuguezes  ,  que  na  fi- 
delidade eram  eílrcmados  íobre  todas  as  ou- 
íras  nações  do  Mundo  :  o  que  elle  fe  náo 
envergonhava  de  dizer,  fendo  Caílelhano , 
porque  era  fallar  verdade  ;  e  que  haviam 
de  cuidar  os  que  duvidavam  da  juftiça  de 
Lopo  Vaz  de  Sampaio  ,  que  havia  elle  de 
fallar  naquella  matéria  defmtereíTado  ,  pois 
nem  com  hum  ,  nem  com  outro  tinha  ra- 
zão alguma.  E  que  fe  naquelle  negocio  nao 
fallava  toda  a  verdade  que  entendia  ,  que 
nlli  aonde  cllc  eílava  o  confundiííe  NolTo 
Senhor.  Que  requeria  da  parte  do  Santo  Pa- 
dre ao  Vigairo  Geral  ,  que  alli  eftava.pre- 
fente ,  que  logo  paílaííe  carta  de  excommu- 
nhão  contra  todos  os  que  diíTeílem  que  o 
Governador  Lopo  Vaz  de  Sampaio  não  era 
legitimamente  Governador ;  e  que  cada  pef- 
foa  que  foíTe  comprendida ,  pagaíTe  dez  mar- 
cos de  prata  pêra  a  Sé  ,  e  que  nao  pudef- 
fem  fer  abfolutos  fenao  peloBifpo  do  Fun- 
chal ,  de  baixo  de  cuja  jurdiçao  eílava  toda 
â  índia.  E  que  também  requeria  ao  Ouvi, 

dor 


122  ÁSIA  DE  Diogo  de  CouTa 

dor  geral ,  e  a  todos  os  Fidalgos ,  que  o- 
IhaíTem  por  huma  couía  tão  importante  ao 
ferviço  de  Deos  ,  e  d'ElRey  ,  c  que  fou- 
beíTem  todos  ,  que  as  guardas  que  eftavam 
nas  barras  não  era  por  fe  o  Governador  te- 
mer de  Pêro  Mafcarenhas  ,  fenão  por  evi- 
tar alvoroços  ,  e  com  iílo  acabou  lua  aren- 
ga. Logo  Pêro  de  Faria  Capitão  da  Ci- 
dade ,  pedio  a  fuccefsão  ao  Padre  Prega- 
dor 5  e  a  beijou ,  e  poz  na  cabeça ,  dizen- 
do que  elle  a  obedecia  ;  e  perguntando  a  to- 
dos os  Fidalgos  que  prefentcs  eílavam,  fc 
faziam  outro  tanto  ,  diíTeram  que  fim ,  do 
que  logo  mandou  o  Governador  fazer  hum 
auto  ,  em  que  fe  todos  aíTináram  pêra  fe 
aproveitar  delle  quando  fofle  neceíTario.  Só 
D.  Vafco  de  Lima  ,  e  Jorge  de  Lima  não 
quizeram  aílinar  nelle  ,  pelo  que  os  mandou 
o  Governador  prender  cm  fuás  cafas.  E  ef- 
te  auto  mandou  o  Governador  aíIinar  pelos 
Capitães  que  eftavam  nas  barras ,  que  eram 
António  da  Silveira  ,  Simão  de  Mello  ,  Dom 
Jorge  de  Noronha ,  Jorge  de  Mello ,  Dom 
João  Lobo  ,  D.  Henrique  Deça  ,  João  Perei- 
ra ,Franciíbo  Corrêa .  António  Caldeira  ,  Go- 
mes do  Souto-maior ,  Lopo  Corrêa  ,  Fran- 
cifco  de  Brito,  Paio  Rodrigues  de  Araújo, 
Garcia  de  Mello  ,  António  Mendes  de  Vaf- 
concellos ,  Nuno  Pereira  ,  Francilco  Ferrei- 
ra ,   Gafpar  da  Silva ,  Fernão  de  Moraes , 

Fer- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  VI.  123 

Fernão  Rodrigues  Barbas ,  e  o  mcfmo  aíli- 
rou  António  de  Miranda  Capitão  mor  do 
mar,  que  aeíle  tempo  chegou  á  barra.  Pê- 
ro Mafcarenhas  vindo  feu  caminho  topou 
com  Gonçalo  Gomes  de  Azevedo  ,  homem 
Fidalgo  ,  de  que  foube  a  Armada  que  o  cf- 
perava  pêra  o  prenderem  ;  e  como  clle  hia 
poílo  a  foíFrer  tudo  o  que  lhe  fizeíTem  ,  e 
náo  tratar  mais  que  de  requerer  fua  juíliça , 
náo  lhe  deo  coufa  alguma  ,  antes  paíTou 
adiante  feu  caminho.  Chegando  á  barra  de 
Goa  aos  dezefeis  de  Março  ,  lhe  fahíram 
os  navios  poftos  em  armas  ,  como  íe  foram 
cfperar  Rax  Soleimao  Capitão  mor  das  ga- 
lés dos  Turcos ,  e  chegado  António  da  Sil- 
veira a  clle ,  o  fez  amAainar,  e  lh(^  notificou 
o  mandado  do  Governador ,  pedindo-lhelhe 
déííe  a  menagem  ,  e  que  de  baixo  delia  fe 
folTc  metter  prezo  em  Cananor ,  donde  não 
fahiria  fem  mandado  do  Governador  Lopo 
Vaz  de  Sampaio  ;  ao  que  elle  refpondeo  , 
que  elle  era  Governador  por  Provisão  d'El- 
Rey  ,  c  que  Lopo  Vaz  lhe  fazia  força  ,  e 
eftava  alevantado  com  o  eílado  da  índia  , 
que  elle  vinha  pacificamente  naquelle  catiír 
com  fós  dous  pagens  a  requerer  fua  juftiça  , 
fe  ativeíTe  ,  e  quando  não ,  que  não  rinha 
que  fallar  ;  e  que  vir  pedir  juíliça  iiao  era 
culpa  pêra  prizao ,  nem  fe  podia  recear  de 
hum  homem  que  tão  fóhia.  António  da  Sil- 
vei- 


124  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

veira  vendo  que  não  queria  dar  a  inenagjem  , 
o  prendeo ,  c  lhe  mandou  logo  lançar  huns 
grilhões  como  malfeitor.  (Coufa  vergonho- 
ia  cerro  tratarem  tão  mal  hum  tão  bem  vaf- 
fallo  d'ElRey  de  Portugal ,  e  de  tantos  íer- 
viços  5  e  merecimentos ,  vindo  a  pedir  jufti- 
ça  em  couía  que  tão  claramente  a  tinha ;  e 
íe  Lopo  Vaz  de  Sampaio  logo  fe  puzera  a 
direito  com  elle  ,  como  depois  fez  ,  não  che- 
gariam as  coufas  a  tantas  aírrontas ,  nem  a 
tantos  rifcos  ,  como  adiante  fe  verão  ;  por- 
que Pcro  Mafcarenhas  não  queria  mais  fe- 
•jião  que  fe  julgaíle  feu  cafo  ,  e  não  tendo 
juftiça  ir-fe  pêra  Portugal  a  pedir  fatisfaçao 
de  feus  ferviços ;  mas  não  o  queriam  ouvir 
nefla  matéria  ,  porque  não  quiz  Lopo  Vaz 
de  Sampaio  fazer  duvidofo  o  que  tinha  nas 
mãos.)  Prezo  Pêro  Mafcarenhas  ,  foi  logo 
entregue  a  Simão  de  Mello  pêra  o  levar  a 
Cananor.  Simão  Caeiro  ,  e  Lançarote  de 
Seixas  5  que  com  elle  vinham  ,  foram  le- 
vados ao  tronco  de  Goa  ,  e  carregados  de 
•ferros.  Simão  de  Mello  chegou  a  Cananor, 
e  entregou  Pêro  Mafcarenhas  a  D.  Simão 
de  Menezes  ,  de  cuja  entrega  fe  fez  hum 
auto  5  em  que  fe  aííináram  todos,  e  tornou 
a  voltar  pêra  Goa  ,  onde  deo  conta  ao  Go- 
vernador do  que  paííava.  Com  ifto  fe  hou- 
ve por  quieto,  e  por  feguro ,  e  os  homens 
fe  aíTocegáram  com  o  medo  do  caftigo. 

CA- 


Dedada  IV.  Liv.  II.         iij* 

CAPITULO     VII. 

Do  que  Chriflovão  de  Sonfa  Capitão  de  Chaul 
efcreveo  a  Lopo  Vaz  de  Sampaio  fobre 
as  coufas  de  Fero  Mafcarenhas  :  e  de  co- 
mo chegou  a  Goa  prezo  Rax  Xarrafo  Gua- 
zil  de  Ormuz  :  e  dos  requerimentos  que 
Fero  Mafcarenhas  mandou  fazer  a  Lo- 
po Vaz  de  Sampaio» 

CHriílovao  de  Soufa  Capitão  de  Chaul 
foiíbe  o  modo  de  como  Lopo  Vaz  de 
Sampaio  queria  proceder  com  Pêro  Mafca- 
renhas ,  e  de  como  o  mandava  efperar  na 
barra  pêra  o  prenderem ,  e  das  uniões  que 
cm  Goa  havia  entre  os  Fidalgos  fobre  eíla 
matéria ,  o  que  tudo  eílranhou  muiro ,  e  o 
praticou  com  os  Vereadores  de  Chaul ,  que 
ihediíferam,  queelJe,  como  era  peíToa  tão 
principal  na  índia  ,  eílava  obrigado  acudir 
áquellas  coufas  pelo  perigo  que  corriam  era* 
tempo  que  havia  novas  de  Rumes  ,  pelo  que 
efcreveo  logo  huma  carta  ao  Governador 
Lopo  Vaz  de  Sampaio  ,  e  a  mandou  a  Fran- 
cifco  de  Soufa  Tavares  feu  fobrinho  pêra 
que  lha  déííe ,  que  chegou  poucos  dias  de- 
pois da  prizão  de  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  Fran- 
ciíco  de  Soufa  Tavares  a  deo  ao  Governa- 
dor, que  aabrio,  e  vio  que  dizia  afU  :  tSV- 
nhgr»  Muito  efpantado  çftou  efperandofe  ca^ 

da. 


120  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

da  dia  por  'Rumes ,  que  ficam  em  Camarão 
cem  hmna  grqffa  Armada  ,  e  tamanho  po^ 
der  5  e  o  nojjò  tão  pouco  ,  querello  V*  S,  ain- 
da diminuir  com  o  dividir  cm  duas  partes , 
e  dar  occafião  a  bandos  ^  que  em  todas  as 
partes  do  Mundo  he  a  mais  abominável  cou- 
Ja  que  pôde  fer ,  quanto  mais  na  índia ,  e 
nefte  tempo,  _E  fe  lhe  parece  que  a  gover- 
nança  he  fua  ,  porque  fe  Jtão  porá  emjufti- 
^a  com  ler  o  Mafcarenhas  ,  e  não  tratar 
de  por  armas  fe  fuftentar  no  lugar  ,  e  pof- 
fe  em  que  eftd :  pelo  que  deve  V,  S,  de  que- 
rer que  fe  dê  ofeu  a  Jeu  dono ,  e  que  quem 
tiver  direito  fique  por  Governador,  De  mim 
lhe  affirmo  ,  que  tanto  me  dá  que  ofeja  hum  , 
como  outro  ,  fó  pretendo  ver  na  Índia  quic^ 
tacão  5  e  paz  entre  os  Fidalgos  :  pelo  que 
lhe  requeiro  da  parte  d^ElRey  que  fe  ponha 
em  direito  com  Pêro  Mafcarenhas ,  porque 
lhe  certifico  que  não  hei  de  obedecer  fen ao 
a  quem  fe  puzer  em  direito.  De  Chaul  a 
■dez  de  Março  de  mil  quinhentos  e  vinte 
fete,  O  Governador  com  eíla  carta  achou- 
le  muito  falteado  pela  qualidade ,  e  partes  de 
Chriftovâo  de  Soufa  ,  por  ícr  a  principal  pef- 
iba  da  índia ,  a  quem  haviam  de  acudir  os 
mais  dos  Fidalgos ,  e  gente  delia  ,  fe  felan- 
çaíFe  á  parte  de  Pêro  Mafcarenhas ,  o  que 
eftavacerto  fazer,  como  fe  declarava  na  car- 
ta ,   quando  vifle  que  ellc  ufava   de  forca  ^ 

e  nãO' 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  VII.  127 

e  não  de  juftiça.  Efta  carta  cncubrio  ,  e  não 
moílrou  íenão  a  alguns  Fidalgos  muiro  ami- 
gos 5  que  ficaram  com  ella  abalados  ;  e  ha- 
vendo íbbre  illo  confelho  ,  affentou-fe ,  que 
efcrevefle  o  Governador  a  Chriílovão  de  Sou- 
la  3  e  lhe  notificaíTe  a  prizao  de  Pêro  Maf. 

I  carenhas  ,  e  como  fe  fizera  por  confentimen- 
to  de  todos  os  Fidalgos  ,  fem  eftrondo  ,  nem 
divisão  alguma.  E  aíli  lho  efcreveo  por  hu- 

I  ma  carta  ,  dando-lhe  conta  do  que  pafiTava  , 
pedindo,  que  pois  o  negocio  eftava  quieto, 
e  elle  de  todos  era  havido  por  Governador , 
que  o  quizeíTe  elle  conhecer  porefle,  e  que 
efcreveíle  huma  carta  a  Pêro  Mafcarenhas  , 
em  que  lhe  fizelTe  a  faber  como  havia  fua 
prizao  por  boa  ,  e  lhe  aconfelhaíTe  ,  que  de- 
liílille  de  pretender  a  governança  ,  pois  nel- 
la  não  tinha  juftiça.  Efta  carta  fedeo  a  Chri- 
ftovão  de  Soufa  ,  que  como  não  pretendia 
nefte  cafo  mais  que  a  quietação  ,  e  focego 
entre  os  Fidalgos ,  folgou  da  coufa  fe  fazer 
tão  pacificamente ,  não  deixando  de  lhe  pa- 
recer em  fi  mal  a  prizao  de  Pêro  Mafcare- 
nhas ;  mas  callou-fe  pelo  que  convinha  ao 
eftado  da  índia  :  que  pofto  que  a  Pêro  Maf- 
carenhas lhe  tomafiem  o  que  era  feu ,  con- 
vinha fazerem-lhe  entender  outra  coufa  ,  pê- 
ra que  fe  quietaíFe  ,  e  ElRey  lhe  fatisfaria 
depois  fua  honra.  E  logo  defpedio  o  mef- 
mo  melTa^eiro  ao  Governador ,  que  era  hum 

Par- 


128  ÁSIA  DS  Diogo  de  Couto 

Pnrfeo ,  com  hiima  carta  pêra  ellc ,  e  outrx 
pêra  Pêro  Mafcarenhas  aberta.  O  Parfeo  to- 
mou o  caminho  apreíTada,  e  em  poucos  dias* 
cliegou  a  Goa ,  e  deo  as  cartas  ao  Gover- 
nador ,  que  abrindo  a  fua  vio  que  dizia  r 
Sejihor,  Por  efte  Parfeo  tive  huma  cartd 
de  V,  S,  em  que  largamente  me  dà  co7tta 
do  negocio  dantre  elle  ,  e  Vero  Mafcarenhas  : 
muito  folgara  de  o  faher  primeiro  ,  forque 
dera  antes  meu  parecer  feni  ajfeiçao  ,  como 
V,  S.  deve  crer  ,  e  cfperar.  E  quanto  aõ 
que  diz  ,  que  todos  obedeciam  d  fua  Provi-^ 
são ,  eu  também  lhe  obedeço  •  efei  certo  que 
he  Governador  da  índia  por  Provisão  d'^El-^ 
Rey  Noffo  Senhor  por  morte  do  Governa- 
dor D.  Plenrique  de  Menezes  ,  que  Deos 
perdoe,  E  quanto  ao  que  he  pajjado  fobre 
efte  cafo  ,  we  pareceo  ef cu  fado  meu  parecer , 
for  ter  efe  negocio  já  fim  ( feja  Deos  lou^ 
vado !  )  tanto  feni  alvoroço  ,  e  divisão ,  o 
que  fempre  pedi  a  Nofo  Senhor  ,  e  eflava 
affds  confiado  fe  faria  bem  pelo  V.  S.  ter 
entre  mãos  \  epois  eftd  feito  tanto  em  con^ 
cor  dia  ,  e  paz  ^  não  fallo  nijfo,  A  carta  pe- 
va Pêro  Mafcarenhas  vai  aberta  pêra  ^  fe 
lhe  parecer  bem  ,  mandar-lha  ,  e  fenão  fa-^ 
ca  o  que  quizer.  Beijo  as  mãos  de  V.  S, 
De  Chaul  hoje  vinte  e  finco  de  Março,  Li- 
da a  carta  ,  o  fez  também  á  de  Pcro  MaP 
çarenhas,  cujo  tlieor  he  ofeguinte;  Senhor^ 

Fui 


Década  IV.  Liy.  II.  Cap.  VIL  129 

Fui  informado  do  fenhor  Lopo  Vaz  de  Sam-- 
-paio  de  todo  o  cafo  dantre  vós  ,  e  elle  ,  e 
ãjji  vi  fuás  Provisões ,  e  os  pareceres  def 
Jès  fenhor  es  ,  qtie  fe  acharam  em  Cochim  ^ 
e  certo  que  tudo  foi  feito  por  feu  eflilo  :  e 
como  eftas  coufas  efteyn  em  pontos  de  Di^ 
rei  to  5  que  muito  hemfahem  alguns  dos  que. 
eftavam-  prefentes  ,  não  vos  deve  de  pare^ 
cer  ,  fenão  que  fefez  juftiça  ,  e  que  os  Fr  a* 
des  ,  nem  efjes  fenhor  es  vo-la  haviam  de 
querer  tomar ,  por  quanto  huns  por  feu  ha^ 
bit  o  ,  e  outros  por  fu  a  fidalguia  tinham  obri- 
gação haver  tudo  femfufpeita  como  viram, 
E  certo  a  meu  ver ,  a  vontade  de  S.  A,  era 
fello  elle  por  falecimento  de  D,  Henrique, 
Eu  não  fui  informado  fenão  a  tempo  que 
tudo  eftava  feito  ,  por  iffo  foi  c feu  fado  meu 
parecer  :  e  pois  tudo  efid  pacífico  ,  havei 
voffa  prizão  em  paciência  ,  porque  foi  ne- 
cejfaria  :  afflpelo  que  vos  cumpre  ,  como  por 
evitar  algumas  ftifpeitas  de  homens  que  de- 
fejam  divisões  ,  o  que  pêra  o  tempo  em  que 
ejiamos  fora  damnofo  ,  que  muito  melhor 
fora  fer des  awJoos  mortos.  Quiz-vos  ^  Se- 
nhor ,  efcrever  efla ,  pofio  que  de  vós  não 
tenha  recebido  nenhuma  depois  de  voffa  vin- 
da ,  pêra  nella  vos  pedir  por  mercê ,  ( co- 
mo acima  digo  , )  hajais  paciência  com  vof- 
fas  coufas  ,  e  queirais  fazer  efie  fervi ço 
a  ò\  A,  de  vos  não  lembrardes  agora  de 
Couto.  Tom.  I.  P.  I,  I  vof- 


130  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

z'offa  honra  por  nao  'vingardes  ToJJa  prizao  y 
coufa  tão  contraria  a  feu  feriei ç o  ,  e  certo 
que  recebais  delle  por  ijjò  aJJJnalada  mer- 
cê :   e  não  demovam  loflò  confelho  algumas 
cartas  de  Fidalgos  da  Índia  ,  porque  quem 
o  contrario  aconfelhar  ,  não  he  lojjò  amigo  , 
€  não  defeja   de  voJJIjs  couías  ferem  feitas 
conforme  a  "vojfa  honra  como  eu.  Veja ,  Se- 
fihor  ,  o  que  de  mim  ynanda  nefta  terra  ,  faU 
lo-hci  j  7íão  tocando  neftes  negócios  ,  {por  jd 
terevã  fim  )  como  feu  fervi  dor  ,  e  amigo  que 
fou  de  muitos  dias.    Beijo ,   Senhor ,  vojjas 
mãos,    2)e  (haul  ,   ^c,    E  aííi  efcreveo   a 
D.  Simão  de  Menezes ,  e  a  outros  Fidalgos  y 
coufa  que  o  Governador  eftimou  muito  ,  e 
íicou  defaliviado  ,   pareccndo-Ihe  que  tinha 
Chriftovao  de  Soufa  da  iua  parte.  Eíla  car- 
ta defpedio  logo  o  Governador  a  Pêro  Mal- 
carenhas ,  que  tanto  que  a  vio  ficou  faiisfei- 
to  ,    porque  entendeo  delia,  que  nao  havia 
Chriíiovão    de  Soufa    íua  prizao   por  boa, 
fenão  por  pacificação  da  índia  ^  e  nao  por- 
que n?ío  tiveíTe  juíliça ,   e  fícáram-lhe  gran- 
des efperanças  de  elle  ainda  obrigar   a  Lc- 
po  Vaz  "a  fe  pôr  com  eJle  a  .direito  ,    e  de 
D.  Simão  que  o  foltaria ,    porque  tinha  en- 
tendido delle,  que  como  entraíTe  o  inverno 
lhe  tiraria  os  ferros.  Tudo  iílo  YhQ  deo  ou- 
fadia    pcra  m.andar   a  Goa  hum  Diniz  Ca- 
melo Tabellião  público  de  Cananor  com  hum 

re- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  VIL  131 

requerimento  a  Lopo  Vaz ,  que  fe  embar- 
cou no  mefmo  navio  que  levou  a  carta.  E 
chegando  a  Goa  ,  eilando  o  Governador  ou- 
vindo partes  ,  lhe  deo  o  Diniz  Camelo  o 
proteíto ,  e  abrindo-o  ,  o  foi  lendo  ,  e  via 
que  dizia  aíTi :  Protejlo  ,  que  vos  Diniz  Ca- 
melo  haveis  de  fazer  ao  fenhor  Lopo  Vaz 
de  Sampaio^  em  que  lhe  requerereis  da  par-- 
te  d^ElKey  NoJJò  Senhor  ,  que  nefte  negocia 
fe  ponha  comigo  em  juftiça  ,  e  não  queira 
levar  ao  cabo  a  força  que  faz  em  me  to-- 
mar  a  governança  da  índia  ,  que  me  El- 
Rey  deo  por  meus  merecimentos  \  e  não  o 
querendo  fazer  ,  protefto  por  todas  as  per- 
das ,  e  damnos ,  que  dijfo  receber,  E  lhe 
requerereis  que  folte  Simão  Caeiro  ,  e  Lan- 
çarote de  Seixas  pêra  requererem  minha 
juftiça  ,  porque  eftam  prezos  fem  culpa  ,  e 
fue  pajfareis  defte  protefto  huma  certidão 
com  fua  refpofta  ,  ou  fem  ella  ,  pêra  poder 
requerer  por  ella  minha  juftiça  no  Keiíw. 
O  Governador  em  lendo  o  proteílo  ,  o  rom- 
peo  logo  5  e  Diniz  Camelo  ou  por  palavras 
que  lhe  alli  diíTe  o  Governador ,  ou  porque 
o  aviláram  ,  defappareceo  de  Goa  ,  e  fe  tor- 
nou pêra  Cananor ,  fem  efperar  refpofta.  O 
que  íabido  por  Simão  Caeiro ,  e  Lançarote 
de  Seixas  ,  paflando  poucos  dias  logo  o  Go- 
vernador por  defronte  da  porta  do  tronco  , 
de  cima   a  grandes    brados   lhe  requereram 

I  ii  da 


ijz  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

da  parte  d'ElRey  que  fizeíTe  juftiça  a  Pêro 
Maicarenhas  ,  e  que  os  mandsíTe  íoltar  pê- 
ra a  requererem  por  elle.  Diílo  ficou  o  Go- 
vernador táo  agaílado ,  que  os  mandou  de 
noA^o  carregar  de  ferros  ,  e  defendco  com 
graves  penas  ,  que  nenhuma  peíToa  mais  fo- 
brc  eíle  cafo  de  Pêro  Mafcarenhas  lhe  fizef- 
fe  nenhum  requerimento  ,  fenao  o  Secreta- 
rio ,  porque  elle  lhe  refponderia.  E  mandou 
lançar  pregão  ,  que  fob  pena  de  morte  ne- 
nhuma peiToa  nomeaíTe  Pêro  Mafcarenhas 
por  Governador.  O  Dmiz  Camelo  foi  ter 
a  Cananor  mui  amedrontado  ,  e  delle  fou- 
be  Pêro  Mafcarenhas  o  que  paíTára ,  e  co- 
mo o  Governador  rompeo  o  feu  protefto , 
e  que  lhe  nâo  dera  refpoíla  ,  do  que  lhe  Pê- 
ro Mafcarenhas  pedio  hum  inftrumento  em 
pública  fórraa.  D.  Simão  de  Menezes  foou- 
Ihe  aquelle  negocio  mal  ,  e  bem  entendco 
que  Lopo  Vaz  de  Sampaio  queria  nelle  ufar 
de  força ,  e  não  de  juftiça ,  coufa  que  mui- 
to o  abalou  ,  e  determinou  ,  fe  quizeífe  le- 
var fua  teima  adiante  ,  de  lhe  não  obede- 
cer ,  m.as  diílimulou  por  então  com  iílo.  Nef- 
te  tempo  chegou  Manoel  de  Macedo  ,  que 
o  Governador  mandou  a  Ormuz  prender 
Rax  Xarrafo  ,  como  atrás  contámos  ,  que 
chegando  áquella  fortaleza,  por  evitar  alte- 
rações ,  diíFimulando  com  o  negocio ,  eíian- 
do  hum  dia  com  o  Capitão ,  mandaram  cha- 
mar 


DecIV.  Liv.II.Cap.VII.eVIIL  133 

mar  o  Guazil  pêra  certas  coufas  ,  e  como 
o  tiveram  na  fortaleza  ,  o  recolheram  na 
torre  da  menagem  ,  e  o  guazilado  mandou 
o  Governador  dar  a  Rax  Hamed  ,  hum  Mou- 
ro muito  principal.  Rax  Xarrafo  fe  fez  preC- 
tes  de  tudo  ,  e  o  embarcaram  na  náo  de 
Manoel  de  Macedo  .  que  voltou  logo  pêra 
Goa  ,  onde  chegou  nefie  próprio  tempo  em 
que  andamos.  O  Governador  o  mandou 
prender  na  torre  da  menagem  ,  e  depois  lhe 
deo  a  Cidade  por  prizao  ,  e  mandou  que 
fe  livraíTe. 

CAPITULO     VIII. 

Das  revoltas ,  qus  em  Goa  houve  Johre  as 
coufas  dos  dous  Governadores :  e  de  co- 
mo Eitor  da  Silveira ,   e  Diogo  da 
Silveira  fe  lançaram  da  parte  de 
Pêro  Mafcarenhas. 

EStando  as  coufas  nefte  eílado  ,  fendo  en- 
trada de  Abril ,  pedio  Eitor  da  Silvei- 
ra ao  Governador  que  mandaíle  Pêro  de  Fa- 
ria 3  (  que  era  Capitão  de  Goa , )  a  fervir 
a  capitania  de  Malaca  ,  de  que  eflava  pro- 
vido por  EIRey  ,  e  que  lhe  dcíTe  a  elle  a 
de  Goa,  do  que  o  Governador  fe  eícufou, 
porque  Pêro  de  Faria  tinha  também  aqucl- 
la  capitania  de  Goa  por  ElRey  ,  e  eílava 
em  fua  efcolha  fervilla,  ou  Jargalla ,  e  que 

fo- 


134   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fobre  tudo  elle  íaberia  delle  íe  havia  de  ir 
a  Malaca ,  e  que  querendo-o  cile  fazer,  en- 
tão lhe  daria  o  que  lhe  pedia,  e  dizem  que 
fallára  a  Pêro  de  Faria ,  e  que  cUq  Jhe  diC- 
fera  ,  que  nao  havia  de  ir  a  Malaca.  E  afU 
o  diííe  o  Governador  a  Eitor  da  Silveira  , 
o  que  elle  não  creo  ,  porque  lhe  pareceo 
que  aquillo  do  Governador  eram  cunipri- 
iriCntos ,  c  que  queria  ter  comíigo  Pêro  de 
Faria ,  porque  era  do  feu  bando  ,  e  fora  de 
parecer  que  cUq  era  o  Governador  ,  fobre 
elle  ter  corn  elle  muitos  cumprimentos ,  fo- 
bre os  quaes  lhe  refpondeo  Eitor  da  Sil- 
veira ,  que  bem  fabia  delle  a  verdade ,  mas 
que  não  lhe  pediria  mais  coufa  alguma  ,  nem 
lhe  entraria  em  cafa  ,  e  fe  foi:  o  que  tudo 
o  Governador  foíFreo  pelo  tempo  em  que 
eftava.  Eitor  da  Silveira  deo  conta  daqucl- 
le  negocio  a  alguns  muito  amigos  ,  princi- 
palmente a  Diogo  da  Silveira  ,  como  muito 
feu  parente  ,  a  quem  aconfelhou  pediffe  ao 
Governador  a  capitania  de  Malaca  ,  pois 
Fero  de  Faria  não  queria  ir  entrar  nella.  Dicv- 
go  da  Silveira  o  fez  aíli  ,  e  o  Governador 
Jhe  refpondeo  ,  que  muito  folgara  de  lha  dar  , 
mas  que  era  coufa  que  nao  podia  fer  por 
eílar  nella  Jorge  Cabral  da  mão  de  Pêro 
Mafcarenhas ,  a  quem  jurou  por  Governa- 
dor ',  que  não  a  havia  de  entregar  a  pelToa  al- 
guma ^    fenão  por  Provisão  do  meiino  Pêro 

MaP 


Década  IV.  Liv.  11.  Cap.  VÍII.  135- 

Maícarenhas  ,  como  tinha  por  obrigação  , 
conforme  a  menngeni  que  delia  lhe  dera. 
Diílo  ficou  também  Diogo  da  Silveira  to- 
mado ,  e  não  querendo  acceitar  neiílmns  cum- 
primentos do  Governador ,  ia  foi  efcanda- 
Jizado.  E  como  todos  Iiaviam  que  elJe  Lo- 
po Vaz  não  era  o  legitimo  Governador ,  e 
que  os  havia  miíier  a  todos  ,  todos  fe  lhe 
queriam  vender  bem  caros.  E  logo  eftes 
dous  Silveiras  começaram  a  publicar  Pêro 
Mafcarenhas  por  verdadeiro  Governador , 
e  que  Lopo  Vaz  pelo  faber  mui  bem  ,  fe^ 
não  queria  pôr  com  elíe  em  julliça  ,  indu- 
zindo muitos  Fidalgos  a  ferem  de  fua  opi- 
nião ,  e  a  tom.arem  a  voz  de  Pêro  Mafca- 
renhas ,  de  que  os  principacs  foram  D.  An- 
tónio da  Silveira ,  D.  Triílão  de  Noronha  , 
^^'  Joí^g^  «Je  CaPcro ,  Vafco  da  Cunha  ,  Dom 
Henrique  Deça  ,  D.  Francifco  de  Caílro  , 
João  Fernandes  Freire,  Jorge  da  Silveira, 
Francifco  de  Taíde  ,  Jorge  de  Mello  ,  Dio- 
go de  Miranda  ,  Aires  Cabral ,  Simão  So- 
dré ,  Marti m  Vaz  Pacheco ,  e  Simão  Del- 
gado Qi.iadriIheiro  mor ,  e  defpedíram  por 
terra  cartas  a  Pêro  Mafcarenhas  ,  em  que 
o  certificavam  de  fuás  tenções  ,  por  ifib  que 
trabalhaíTe  por  acabar  com  D.  Simão  que 
o  foltaíTe  ,  e  que  na  entrada  do  verão  fe  foí^ 
fe  pêra  Goa,  porque  elles  fariam  com  Lo- 
po Vaz  que  fe  puzeíTc   com  elle  a  direito. 

Foi 


136   ASíA  DE  Diogo  de  Couto 

Foi  dada  eíla  carta,  em  que  rodos  eftes  aí^ 
íinárain  ,  a  Pêro  Maícarenhas ,  que  a  amof- 
trou  a  D.  Simão  ,  pedindo-lhc  que  pois  aquel- 
les  Fidalgos  eílavam  de  fua  parre  ,  •  e  apof- 
tados  a  lhe  fazerem  fazer  juftiçn  ,  que  tam- 
bém o  devia  de  favorecer  ,  e  folrallo  pêra 
a  requerer;  e  que  julgando-fc-lhe  a  gover- 
nança da  índia  ,  elle  lhe  daria  a  capitania 
mor  do  mar  ,  porque  então  o  não  poderia 
fer  António  de  Mininda  ;  porque  a  fuccef- 
são  que  fe  a  brio  ,  em  que  Lopo  Vaz  fe  achou  , 
eque  elle  eílava  declarado  por  Capitão  mor, 
não  podia  haver  eíFeito.  D.  Simão  lhe  pro- 
metteo  de  o  foltar  ,  fe  aquelles  Fidalgos  fe 
não  mudaííem  de  fiias  tenções  ;  e  que  efcre- 
veíTe  elle  aos  amigos  que  tinha  cm  Cochim 
pêra  faber  fe  tinham  ainda  fua  voz ;  e  que 
requereíTe  a  x\ntonio  de  Miranda  ,  eaoVea- 
dor  da  fíizenda  ,  que  pois  eram  na  índia 
pcíToas  tão  principaes  ,  fízefTem  com  Lopo 
Vaz ,  que  fe  puzeíTe  com  elle  em  juíliça  :  e 
elle  ofezaili,  e  lhes  mandou  fobre  iíTo  gran- 
des requerimentos  com  cartas  a  feus  amigos 
que  lhos  aprefentaíTem.  E  como  o  Veador 
da  fcízenda  era  muito  recatado  ,  temia  de 
Pcro  Mafcarenhas  ter  algumas  intellÍ2:encias 
em  Cochim  ,  e  por  iíío  tinha  fuás  efpias  pê- 
ra lhe  tomarem  todas  as  cartas ,  e  papeis , 
que  lá  mandaíTe.  E  acertaram  de  tomar  hu- 
ma  carta ,  que  tinha  o  fobrefcrito  tão  rifca- 

do, 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  VIII.  137 

do  ,    que  fe  nao  podia  ler ,   e  por  iíTo  não 
fe  foube  pêra  quem  era  ,  que  dizia  :  Senhor  , 
agora  7iovamente  torno   a  fazer  certos  re- 
querimentos fobre  a  governança    da  índia, 
por    7ne  fer  requerido  que  os  faça  ,    e  la  ^ 
Senhor ,  vos  ha  de  fer  mojirado  hum  delles  : 
fei  de  certo  que  vos  ha  de  parecer  hem  fa^ 
%ellos  ,  pois  a  todos  efies  fenhores  {digo  pe- 
los ynais  delles^  parece  mal  o  que  fe  comi- 
go ufa ,  e  defejam  todos  vir-lhe  d  mão ,  po- 
derem alevantar   o  fervi ço  d^ElRey  Noffò 
Senhor  ,   e  nao  confentirem  em  coufas  cjue 
pajfam  contra  feu  Real  eftado ,  de  que  tem, 
que  fe  lhes  pôde  dar  muita  culpa  po las  con- 
fentirem paffar.  E  porém  como  em  Goa  nao 
fui  até  qui  viflo  ,  nem  ouvido  ,  e  nao  paffotf> 
o  tempo  de  fazer  o  que  agora  faço ,  heijar- 
vos-hei  as  mãos  ,  porque  todos  vejais  ,   e 
ponhais  ante  vós  ,    que  António  de  Miran- 
da ,   nem  Ajfonfo  Mexia  lhes  ha  nunca  de 
parecer  bem  governar  eu  a  índia  ,  porque 
governando-a ,  nao  pertence  a  hum  a  capi- 
tania mór  do  mar  ,    nem  ao  outro  a  capi- 
tania  de  Cochim  ,    o  que  lhes  pertence  go- 
vernando Lopo  Vaz  ,   e  por  iffo    o  querem 
Jujientar  :    e  cora  tudo  vejo  que  quer  Deos 
tornar  fobre  ijio  como  cumpre  a  feu  fervi- 
ço  5  e  ao  eflado  Real  d'^ElR.ey  Noffa  Senhor, 
De   Cananor  a  vinte   e  três  de  Abril  de 
mil  quinhentos  e  vinte  e  fete.    A  efta  carta 

lhe 


138  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

]he  refpondeo  AíFonfo  Mexia  ,  que  aquelle 
requerimento  fízeíTb  ao  Governador ,  e  não 
a  elle ,  porque  nao  lhe  podia  requerer  que 
fe  puzeíTe  em  juíliça  fobre  a  governança  da 
índia  5  que  era  fua  por  Provisão  d'£lRey  \ 
€  o  meímo  refpondeo  António  de  Miran- 
da. Efta  carta  de  Pêro  Malcarenhas  man- 
daram logo  ao  Governador ,  pêra  que  fou- 
beíTe  que  Pêro  Mafcarenhas  nao  eílava  ain- 
da fora  de  fua  opinião ,  porque  cuidava  que 
o  tinha  feguro  na  prizao  ,  e  que  com  ella 
não  oufaria  mais  a  fallar  naquelías  coufas. 
Pêro  Mafcarenhas  como  tinha  cobrado  mais 
nlgum  alento  com  as  efperanças  que  aquelles 
Fidalgos  lhe  deram  ,  começou  a  miudar  os 
requerimentos  com  o  Governador  fobre  fe 
pôr  com  elle  em  juíliça ,  c  algumas  peíToas 
que  lhos  deram  mandou  prender.  Eitor  da 
Silveira  ,  e  mais  FidaIp:os  eftavam  tão  de- 
terminados  de  obrigarem  ao  Governador  a 
fe  pôr  em  direito  com  Pêro  Mafcarenhas , 
que  deixaram  de  o  acompanhar,  e  favore- 
ciam as  coufas  ,  e  requerimentos  de  Pêro 
Mafcarenhas ,  a  quem  o  Governador  defen- 
ganou  por  huma  carta  que  lhos  nao  fizeífe 
mais ,  porque  era  cançar-fe  ,  porque  elle  nao 
havia  de  fazer  duvidofo  o  que  tinha  por 
certo  por  Provisão  d^ElRey ,  do  que  Pêro 
Mafcarenhas  avifou  a  Eitor  da  Silveira  ,  e 
aos  da  fua  parcialidade  ,  efcrevendo-lhes , 

que 


Dec.IV.  Liv.  II.  Cap.VIII.  e  IX.  139 

cjuc  o  obrigaíTem  a  lhe  fazer  juíliça  ,  fcino 
que  lhe  deíbbedcceíTem  ,  como  a  homem  que 
citava  alevantado  com  a  índia  ;  porque  íe 
fíntes  de  entrar  o  verão  não  concíuiani  aquel- 
Je  negocio  ,  eftava  ceiro  mandallo  Lopo  V^iz 
embarcar  pêra  o  Reyno  aííi  prezo.  Sobrcí 
illo  coníultáram  rodos,  e  aíTeniáram  que  íe 
não  fizelTe  mais  coufa  alguma  lenao  depois 
de  Pêro  Maícarenhas  eílar  preíènre  ,  porque 
então  com  eIJe  o  obrigariam  a  tudo  ,  e  aíIi 
lhe  efcrevêram  que  como  entraíTe  o  verão 
fe  foíTe  pêra  Goa. 

CAPITULO     IX. 

Do  protejlo  ,    que  Fero  Mafc  are  nhãs  man- 
dou aos  Vereadores ,  e  Fidalgos  de 
Goa  :  e  de  como  os  aprefeíttdram 
a  Lopo  Vaz  de  Sampaio. 

VEndo  Pêro  Maícarenhas  ,  que  o  Gover- 
nador lhe  rompera  os  íeus  requerimen- 
tos 5  fez  outros  de  novo ,  com  que  defpedio 
logo  por  terra  hum  ?vlem  Vaz  por  quem 
mandou  dous  proteílos  ,  e  requerimentos : 
hum  dclles  pêra  a  Cidade  ,  e  Cam»era  de 
Goa  ,  e  outro  pêra  todos  os  Fidalgos  ,  e 
Capitães  ,  com  os  traslados  das  fucceísoes 
que  fe  abriram  ;  aíIi  a  em  que  elle  fuccedeo  , 
como  a  de  Lopo  Vaz  de  Sampaio ,  com  os 
autos  que  AíFonfo  Mexia  fez  ao  tempo  que 

íe 


140  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fe  abriram ,  em  que  todos ,  ou  os  mais  dos 
Capitães  (a  que  mandava  o  tal  proteíto)  ti- 
nham feito  juramento  de  fazer  com  Lopo 
Vaz  que  lhe  entregaíle  a  índia  ,  tanto  que 
chegalíc  de  Malaca  ,  e  que  não  confentiriani 
mais  a  Lopo  Vaz  de  Sampaio  que  foííe  Go- 
vernador. Efte  Mem  Vaz  deo-fe  tanta  pref- 
fa  5  que  chegou  a  Goa  aos  fete  dias  do  mez 
de  Agoílo ;  e  eftando  os  Vereadores ,  e  Of- 
íiciaes  em  Camará  ,  lhes  aprefentou  os  pa- 
peis que  trazia  pêra  elles ,  e  o  requerimen- 
to que  vinha  dirigido  ao  Efcrivao  da  Ca- 
mará 3  pêra  que  lho  notifícaíTe ,  como  logo 
o  fez  5  e  dalli  fe  foi  correr  as  cafas  dos  Fi- 
dalgos 5  e  Capitães  com  hum  Tabelliao , 
que  pêra  iíTo  tomou ,  e  lhes  notificou  a  to- 
dos os  requerimentos  ,  e  proteílos  de  Pêro 
Mafcarenhas ,  e  lhes  dco  cópia  ,  e  vifla  de 
todos  os  papeis ,  e  apontamentos  que  leva- 
va pêra  fe  moftrarem  a  Lopo  Vaz  de  Sam- 
paio. Nos  proteílos ,  e  requerimentos ,  que 
a  huns ,  e  a  outros  mandava  fazer  ,  dizia : 
>>  Como  por  morte  do  Governíidor  D.  Hen- 
»  rique  de  Menezes  ,  que  em  Cananor  fale- 
»  cera,  fe  abrira  a  fegunda  fuccefsão  ,  e  que 
))  elle  Pêro  Mafcarenhas  fuccedêra  :  e  que 
»  por  eftar  em  Malaca ,  o  Veador  da  fazen- 
))  da  com  parecer  de  muitos  abrira  a  tercei- 
))  ra  fuccefsão ,  em  que  fe  achou  Lopo  Vaz 
))  de  Sampaio  ,   a  quem   o  mefmo  Veador 

»  da 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  IX.  141 

»  da  fazenda  não  quizera  entregar  a  índia 
»  até  não  jurar  ,  que  a  governaria  em  quan- 
»  to  elle  dito  Pêro  Malcarenhas  não  vieíTe 
))  de  Malaca  ,  o  que  Lopo  Vaz  jurou  ,  com 
)>  o  que  ficara  governando  em  íua  aufencia , 
))  como  já  duas  vezes  o  fizera  D.  Aleixo  de 
))  Menezes ,  em  quanto  os  Governadores 
»  Lopo  Soares  ,  e  Diogo  Lopes  de  Siquei- 
))  ra  foram  ao  eftreito  :  que  agora  o  dito 
»  Lopo  Vaz  de  Sampaio  eílava  alevantado 
»  com  a  dita  governança ,  e  Jha  não  queria 
»  entregar  ,  como  tinha  jurado ,  mas  antes 
))  mandara  que  o  não  coníentilTem  entrar  em 
))  Cochim  5  onde  o  Veador  da  fazenda  lhe 
»  defendera  a  defembarcaçao ,  efpancando-o 
))  a  eJle  ,  e  a  feus  parentes ,  e  criados.  E 
»  querendo-fe  elle  dito  Pêro  Mafcarenhas 
))  vir  a  eíla  Cidade  de  Goa  requerer  fua  juf- 
»  tiça  ,  o  mandara  Lopo  Vaz  efperar  com 
»  huma  Armada  grofla  ,  como  amigo  ,  e  An- 
)>  tonio  da  Silveira  o  prendera  ,  e  lhe  lan- 
))  çára  ferros  nos  pés  ,  como  a  malfeitor , 
»  e  o  mandara  pêra  Cananor  onde  eílava : 
»  e  que  mandando  requerer  Lopo  Vaz  que 
»  o  ouviíle ,  e  fe  puzeíTe  com  elle  em  direi- 
»  to  ,  nunca  o  quizera  fazer ,  antes  lhe  pren- 
»  dera  Lançarote  de  Seixas  ,  e  Simão  Caei- 
»  ro  por  requererem  fua  jníliça.  Pelo  que 
»  requeria  a  todos  da  parte  d'ElRey  NoíTo 
»  Senhor  requereíTem  ao  dito  Lopo  Vaz  áp 

»  Sam- 


142  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

»  Sampaio  5  que  fe  puzeíTe  com  clle  em  juf- 
))  tiça  ;  enfio  o  querendo  fazer  ,  que  lhe  deí^ 
D  obedeceíTem  ,  e  o  conheceíTem  a  elle  Pe- 
))  ro  Malcarenhas  por  Governador,  fegun- 
»  do  a  forma  de  fua  fuccefsao  ;  e  nao  o  fa- 
))  zendo  ,  que  elle  proteílava  contra  elles  10- 
»  dos ,  por  todas  as  perdas  ,  e  damnos  que 
))  niílo  recebeíle  ,  e  de  darem  conta  a  El- 
»  Rey  daquelle  negocio  ,  e  elle  os  caíligar 
))  como  folTe  feu  ferviço :  e  porque  em  ne- 
))  nhum  tempo  allegaílem  ignorância  ,  e  que 
»  lhe  nao  obedeciam  por  nunca  lho  reque- 
))  rer ,  lho  fazia  agora ,  e  lhes  pedia  notai- 
))  fem  bem  as  razoes  que  alli  lhes  manda- 
))  va  ,  que  eram  as  feguintes.  Por  eíle  auto , 
»  que  vos  mando  da  fuccefsao  que  fe  abrio 
))  em  Cananor  ,  vereis  como  fou  legitimo  Go- 
^)  vernador  da  índia  ,  o  que  me  querem  ufur- 
»  par  por  cartas  miílivas ,  que  nao  tem  for- 
»  ca  contra  o  meu  Alvará  :  quanto  mais  que 
:»  ainda  eífas  cartas  sao  em  meu  favor ,  por- 
))  que  em  huma  delias  (que  he  feita  a  trin- 
»  ta  de  Março)  diz  EUley  a  Affonfo  ?vle- 
»  xia  5  que  lhe  mandava  aquellas  fuccefsoes , 
-))  que  fe  abririam  falecendo  D.  Henrique,  e 
»  que  das  outras  fe  nao  ufaria  ,  e  as  guar- 
»  daria:  do  que  fevia  muito  claro  que  pois 
»  já  eram  abertas  ,  que  fe  nao  podiam  guar- 
»  dar,  nem  abrir  as  outras  ,  queElReyman- 
»  dava.  E  ainda  mais  claramente  fe  via  fer 

j>  ef- 


Década  IV.  Liv.  11.  Ca?.  IX.  143 

)>  eíla  a  vontnded'ElRe7  na  outra  carta  mif- 
»  fiva  de  quatro  de  Abril  ,  finco  dias  de- 
»  pois  da  primeira  ,  cm  que  não  diz  mais 
))  fe  não  ,  que  Jhe  mandava  duas  fucceísoes  , 
))  e  que  fiiiccendo  D.  Henrique  fe  abriííe, 
))  e  quando  não,  que  a  tivcíTe  cm  fegredo : 
))  e  não  tornou  a  dizer  que  fe  ufaíTe  deitas , 
))  e  das  outras  não  :  no  que  fe  via  bem  ,  que 
))  lembrando-fe  EiRey  nefta  carta  derradei- 
))  ra  ,  que  as  fuccefsôes  que  cá  eílavam  po- 
))  deriam  fer  abertas  ,  não  diíTe  mais  que 
yi  aquillo  que  com  juítiça  podia  dizer.  O 
))  que  cntendeo  muito  mal  AíFonfo  Mexia , 
»  porque  das  cartas  miífivas  fe  cumprem  as 
))  derradeiras  palavras  ,  e  das  fuccefsôes  as 
»  primeiras:  que  pois  havia  quafi  hum  anno 
))  que  clle  tinha  fucccdido  na  governança  , 
»  já  fe  não  podia  abrir  fuccefsão  que  dif- 
))  [e(í'e  ,  por  morte  de  D.  Henrique ,  fenao 
»  de  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  que  tudo  fizera 
))  AfFonfo  Mexia  por  Jhe  querer  mal ,  o  que 
))  eílava  bem  provado  ,  porque  o  auto  que 
))  fez  ao  pé  das  cartas  d'ElRey  diz  ,  viílo 
))  como  he  fua  vontade  que  fe  uíe  deftas  ,  e 
))  das  outras  não  ,  ElRey  tal  não  diíTe ,  prin- 
))  cipalmenre  na  de  Abril ,  que  he  a  derra- 
»  deira ,  por  onde  eílá  cJaro  ter-me  EiRey 
»  feito  Governador  da  índia  por  morte  de 
))  D,  Henrique ,  c  tomei  poífe  da  governan- 
))  ca  5  e  fui  jurado  por  Governador ,  afii  del- 

^  le 


144  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

5)  le  Lopo  Vaz  ,  como  de  todos  os  Fiial- 
5)  gos  ,  e  Capitães  ,  e  não  vejo  coufa  por 
),  onde  haja  de  entregar  a  índia  a  Lopo  Vaz. 
5)  Porque  fe  ElRey  foubera  que  eu  eíiava 
))  de  poíTe  da  governança  ,  nao  mandara  tal ; 
))  e  ainda  no  mefmo  Alvará  de  Lopo  Vaz 
))  me  nomea  ElRey  por  Governador  da  In- 
))  dia  ,  por  me  haver  por  peíToa  pêra  iflb  : 
^)  e  o  que  alguns  dizem  ,  por  fe  quererejn 
y,  efcufar ,  quepoítoque  metiveííe  nomeado 
))  primeiro  ElRey ,  me  tornava  agora  a  re- 
5j  vogar,  tal  não  foi,  porque  ElRey  ainda 
))  que  tudo  pofla  ,  e  he  feu  ,  nunca  faz  fe- 
»  não  o  que  he  juftiça  ,  como  fe  vê  de  hu- 
5)  ma  Ordenação  do  primeiro  livro ,  capitu- 
5)  lo  fetenta  efeis,  onde  diz ,  que  fendo  ca- 
),  fo  ,  que  faça  mercê  de  qualquer  cargo  da 
»  adminiílração  da  juíliça ,  fazenda  ,  ou  go- 
))  vernança  de  feus  Reynos  ,  e  Senhorios , 
•))  que  os  poíTa  tirar  fem  nenhuma  fatisfação  , 
))  fazendo  nelles  o  que  não  devem  a  feu  fer- 
))  viço.  Do  que  fe  vê  claro  não  m.e  poder 
))  ElRey  tirar  o  que  me  tinha  dado  ,  pois 
»  tem  de  mim  tão  boa  informação ,  que  ain- 
»  da  neílas  fuccefsoes  de  Lopo  Vaz  me  no- 
))  mea  por  Governador,  o  que  não  houve- 
))  ra  de  fazer  fe  fe  houvera  por  defervido 
»  de  mim.  E  no  fegundo  livro  aos  quarcn- 
))  ta. e nove  capítulos  eftá  outra  Ordenação, 
»  porque  xnanda,  que  nenhum  Alvará ,  nenj 

»  Car- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap,  IX.  145- 

)  Cartas  ,  e  patentes  fe  guarde  huma  em 
>  contrario  da  outra  ,  fendo  da  mefina  lub- 
ílancia  ,  poílo  que  diga  íem  embargo  da 
outra  5  íalvo  fe  cila  declaradatr.cnte  diOer, 
que  fem  embargo  de  ter  paliado  outro  a 
foão  de  tal  theor.  Pelo  que  vos  requeiro 
da  parte  d'EIRey  NoíTo  Senhor ,  que  pois 
cile  me  tem  feito  feu  Governador ,  e  cílou 
jurado  por  eíTe ,  por  hum  teimo  feito  em 
Cochim  5  em  que  todos  cílais  aíUnados , 
me  queirais  obedecer,  e  defobedecer  a  el- 
le.  E  pêra  que  vejais  quanto  ferviço  d'EI.- 
Rey  ,  e  quietação  deíle  eílado  pretendo , 
eu  me  quero  pôr  em  juíliça  ,  e  cm  direi- 
to com  Lopo  Vaz  ,  e  derermine-fe  por 
vós  m.efmos  qual  de  nós  he  o  verdadei- 
ro Governador.  Mas  também  vos  lem- 
bro y  que  quando  fe  abrio  a  terceira  fuc- 
cefsáo  em  minha  aufencia  ,  (  em  que  fahio 
Lopo  Vaz  ,  que  jurou  de  me  entregar  a 
índia  como  eu  vieiTe  ;  )  logo  elle  ,  e 
AÍTonfo  Mexia  determinaram  óq  me  não 
obedecerem  ,  e  de  fe  alevantarcm  com  a 
governança  ;  e  alli  logo  fez  mercê  da  ca- 
pitania de  Cochim  a  D.  Vafco  Deça  feu 
cunhado ,  com.  eílar  homiziado  por  mor« 
te  de  hum  homem  ,  tendo-a  promettido 
a  Diogo  Pereira  ,  hum  Fidalgo  de  muitos 
ferviços ,  e  negando-a  a  António  de  Mi- 
randa de  Azevedo  ,  e  a  Filippe  de  Craíto  , 
Couto.Tom.LF.L  K  n  e 


146    ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

»  e  a  Jeronymo  de  Soulh.  E  leni  temor  d'El- 
»  Rey  fe  foi  a  Ormuz  ,  deixando  a  índia 
»  toda  de  gaerra  ,  e  lá  fez  muitos  defervi- 
»  ços  a  ElRey  ,  e  multas  mercês  a  muitos 
»  homens  pêra  os  ter  de  feu  bando  ,  o  que 
))  não  podia  fazer  por  governar  em  meu  lu- 
))  gar  ;  e  merccs  nao  as  pode  fazer  fcnao 
»  hum  lo  Governador ,  efpccialmente  de  di- 
»  nheiro.  Por  tanto  protefto  de  nada  ler  fei- 
»  to  fenão  aquillo  que  for  com  juftiça  ;  e 
>>  fobre  tudo  iílo  me  m.andou  fazer  as  af- 
))  frontas  que  viíles  ,  e  me  tem  neíla  prizao 
))  em  que  ellou.  Peio  que  vos  torno  de  no- 
)>  vo  a  requerer ,  que  façais  com.  Lopo  Vaz 
»  que  fe  ponha  comigo  em  direito;  e  quan- 
))  do  o  nao  quizer  fazer ,  o  hajais  por  ale- 
))  vantado  ,  e  me  conheçais  por  Governa- 
))  dor  da  índia.  »  Vifto  eííe  protefto  ,  e  re- 
querimento pelos  Fidalgos  todos  ,  o  man- 
daram também  notificar  á  Gamara  de  Goa  , 
e  viíio  pelos  Vereadores  ,  mandaram  reca- 
do a  Lopo  Vaz  ,  que  elles  tinliam  hum  pro- 
tefto pêra  lhe  notificar,  porfer  coufa  do  fer- 
viço  d'ElRey  ,  que  houveíTc  por  bem  que 
lho  levaíTem ;  ao  que  Lopo  Vaz  diíTe  ,  que 
lho  fizcíTem^  que  eile  lhes  refponderia. 


CA- 


Década  IV.  Liv.  lí.         147 

CAPITULO     X. 

Do  que  Lopo  Vaz   refpondeo  aos  protejlos 
de  Fero  Mafcarenhas, 

COm  a  rcfpoíia  de  Lopo  Vaz  lhe  man- 
daram os  Vereadores  notificar  pelo  Eí^ 
crivão  da  Camará  o  proteílo  de  Pêro  Maí^ 
carenhas ,  e  os  apontamentos  que  aíTima  dif* 
femos  ,  mandando-Ihe  requerer  da  parte  d'El- 
Rey  ,  que  pois  Pêro  Mafcarenhas  le  com- 
punha tanto ,  que  queria  pôr  fuás  ccufas  em 
juilica  ,  o  qiiizeíTe  elle  também  confentir ,  e 
não  délTe  matéria  a  fe  dizer,  que  uUiva  de 
força ,  e  poder ,  o  que  ElRey  ihe  havia  de 
eílranhar  muito  ,  porque  até  contra  íi  pró- 
prio havia  por  bem  requererem  íeus  vaíTal- 
íos  fua  juíliça.  Lopo  Vaz  tom.ou  os  apon- 
tamentos de  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  os  foi 
lendo  todos  \  e  porque  da  refpofta  de  Lo- 
po Vaz  fe  entenderá  a  fubílancia  delles  ,  os 
deixaremos  por  abbreviar.  E  vidos  por  Lo- 
po Vaz  ,  foi  refpondendo  a  todos  por  fua 
ordem  na  maneira  feguinte. 

))  Quanto  ao  que  diz  Pêro  Mafcarenhas  , 
»  que  quando  os  Governadores  paíTados  hiam 
))  fora  da  índia  ,  deixavam  em  feu  lugar 
»  quem  a  regeíTe ,  he  verdade ;  mas  não  ti- 
»  nham  nome  de  Governadores ,  e  o  meu  ca- 
))  fo  he  bem  defviado  :    porque  depois   de 

K  li  .  abçr- 


148   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

))  aberta  a  íuccefsao  cm  que  ellc  fe  achou, 
))  parccco  ao  Veaclor  da  fazenda ,  e  ao  Ca- 
»  pitão  de  Cananor  com  todos  os  Officiaes 
»  que  prefentes  eftavam  ,  que  pois  cllc  eíla- 
))  va  em  Malaca ,  donde  não  podia  vir  tão 
»  cedo  ,  que  fe  elcgeíTe  Governador  pêra  as 
?)  necellidadcs  da  guerra  ,  e  da  Índia  :  e  pe- 
»  ra  ifto  fer  mais  á  vontade  d'EIRey ,  acor- 
»  dáram  de  abrir  a  derradeira  fuccefsao  ,  o 
5)  que  logo  fe  fez  ,  em  que  eu  fuccedi  ,  e 
))  me  entregaram  a  govci^-nança  com  tal  cn- 
»  tendimenío ,  que  vindo  Pêro  Mafcarenhas 
»  lhe  entregaria  a  índia  ,  como  Governador 
»  por  fucceísão  ,  e  não  como  commiíTario 
»  de  outro  ,  como  fe  verá  pelos  autos. 

»  E  quanto  a  dizer  ,  que  achou  cm  Cc- 
»  chim  o  Veador  da  fazenda  alevantado  con- 
»  tra  elle ,  digo  que  o  fez  porque  elle  que- 
3)  ria  que  lhe  obedeccíTe  como  a  Governa- 
»  dor  5  não  o  querendo  elle  fazer  ás  mi- 
»  nhãs  novas  Provisões  d'ElRey ,  mandan- 
»  do  prender  os  Oííiciaes  que  lhas  foram 
))  notificar. 

))  E  quanto  ao  que  diz  ,  que  vinha  a  cf- 
»  ta  Cidade  requerer  fua  juíliça  ,  a  ilTo  di- 
))  go  ,  que  vinha  mais  pêra  fazer  uniões, 
»  que  pêra  iflb  ,  fegundo  conílou  por  car- 
»  tas  que  efcrcveo  a  alguns  Fidalgos ,  e  por 
»  refpollas  fuás  que  eu  tenho  ,  que  moftra- 
»  rei  quando  for  tempo  ,    c  fobre  fua  vin- 

))  da , 


Década  IV.  Liv.  IL  Cap.  X.  149 

»  da ,  e  prizão  fe  fizeram  autos ,  porque  fe 
))  mollra  claramente  lei  íerviço  d'ElRey  mo 
»  entrar  em  Goa, 

))  E  quanto  á  prizao  de  Lançarote  de  Sei- 
))  xas  ,  e  Simão  Caeiro  ,  foi  por  culpas  que 
»  me  delles  mandaram  de  Cochim  ,  e  nao 
»  por  requererem  fua  juíliça,  mas  antes  lhe 
»  mandei  requerer  por  Fernão  de  Aguiar  ,  e 
»  Diniz  Camelo  Tabelliáes  ,  que  requereíTem 
))  tudo  o  que  cumprilTe  a  elle  Pêro  Mafca- 
))  renhas  :  e  lhes  mandei  deíTem  todos  os 
)A  iftromentos  que  pediíTcm  com  minhas  re- 
»  fpoftas ,  como  fe  verá  pelos  autos  que  dif- 
»  to  fe  fizeram, 

»  E  quanto  a  dizer  Pêro  Mafcarenhas , 
))  que  as  cartas  d^ElRey  eram  miílivas  ,  di- 
»  go  ,  que  eu  não  governo  fenão  por  verda- 
»  deira  fuccefsão ,  que  aqui  dou  também  em 
»  reipofta  ;  e  as  fuccefsóes  não  são  outra 
»  coufa  ,  que  cartas  miílivas  3  pois  todas  fal- 
»  Iara  por  nós  EiRe)'-  ,  e  são  aílinadas  por 
»  final  rafo  ;  pois  logo  as  declarações  del- 
»  las  como  hão  de  fer  fenão  afiinadas  pelo 
»  mefmo  final  rafo  ?  Eílas  cartas  vieram  a 
))  Afronfo  Mexia  com  declaração  ,  que  fe 
^  abriífem  as  fuccefsóes  que  com  cilas  vi- 
»  nham  ,  e  que  fe  não  ufafiTe  mais  das  que 
>»  elWam  ,  e  iíto  por  quanto  no  regimento 
»  do  Veador  da  fazenda  eílá  declarada  eíla 
))  derradeira  vontade  d'ElRey ,  em  que  hou- 

»  ve 


i5'o  AS  IA  DE  Diogo  de  Couto 

»  ve  por  bem  governar  eu  a  índia  ,  c  que 
))  precedeíTe  a  Pêro  Mafcarenhas ,  e  que  por 
))  meu  falecimento  luccedeíTe  çUq  Pêro  Mal- 
»  carenhas ,  e  as  melmas  cartas  dou  por  re- 
»  fpofta. 

»  E  quanto  ao  que  diz,  que  porferaber- 
»  ta  a  lua  fucceísao  fe  náo  iiavia  de  abrir 
))  a  minha  ,  nem  ufar  delia,  e  que  ElRey 
))  diz  que  fe  guarda ílem  ,  e  levaflem,  o  que 
»  fe  nfio  podia  fazer  fendo  já  abertas  ;  re- 
»  fpondo  ,  que  queria  ElRcy  que  fe  não  abrif- 
»  fem  aqueílas  fuccefsoes  por  evitar  efcan- 
))  dalos  ,  e  efcufar  alterações.  E  fe  ElRey 
»  houvera  por  bem  ,  que  fendo  abertas  as 
»  fuccefsocs  de  Pêro  Mafcarenhas ,  que  das 
»  minhas  fe  não  ufaíTe  ,  forçado  o  havia  de 
))  declarar  nas  mefmas  cartas  ,  por  onde  fe 
»  moílra  claro  querer  ElRey  que  fe  abrif- 
))  fem  as  minhas  fuccefsoes  ,  poíto  que  as 
»  de  Pêro  Mafcarenhas  foíTem  já  abertas.  E 
))  quanto  o  que  diz  na  carta  derradeira  não 
))  dizer  ElRey  que  fe  abriíTe  a  minlia  fuc- 
»  cefsão  ,  baila  dizello  na  prinieira  ,  pois 
))  todas  vieram  cm  hum  anno ,  e  cm  huma 
»  Ariuada. 

))  E  quanto  ao  que  diz ,  que  ElRey  ha- 
»  via  de  declarar  que  elle  Pêro  Mafcarenhas 
y>  lhe  entregaíle  a  índia  ,  a  iífo  digo ,  que 
»  como  ma  havia  de  entregar  ,  fe  eu  era 
30  Governador  por  fucceísao  ,   e  citava  em 

}i  pof- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  X.    i5'i 

»  poíTe  ,  e  as  Provisões  d'EIRe7  vieram  a 
))  mim ,  a  quem  liavia  eu  de  entregar  a  In- 
»  dia  fenão  a  mim  ,  pois  delia  eílava  de  pof- 
))  fe  ,  e  deíla  maneira  cumpri  o  juramento 
))  que  fiz  ,  quando  me  entregou  o  Veador 
))  da  fiizenda  a  índia  ,  em  que  me  obriguei 
))  a  entregai  la  a  Fero  Mafcarenhas  ,  ou  a 
»  qualquer  outro  Governador  ^que  ElRey 
»  mandaíTe.  E  quanto  a  dizer  ,  que  eílá  de 
)>  poiTe  ,  a  fua  foi  mental ,  e  civil ,  e  a  mi- 
»  nha  real ,  adlual ,  peíToal ,  e  corporal ;  e 
)>  em  quanto  de  mim  a  nao  teve  ,  a  fua  pof- 
»  fe  era  nenhum.a ,  porque  de  mim  a  hou-^ 
»  vera  de  haver. 

»  E  quanto  a  dizer,  que  fe  ElRey  fou- 
)>  bera  a  fua  Provisão  era  aberta  ,  mandara 
))  que  a  mjnha  fenáo  abriíTe  ,  a  iílb  digo  que- 
))  he  entendimento  de  adivinhar  tão  repro^ 
))  vado  em  Direito ,  efpecialmente  nos  man- 
))  dados  d'ElRey  ,  cuja  vontade  he  leij  fe 
))  clle  quer  adivinhar  iíTo ,  também  eu  adi- 
»  vinho,  que  ainda  que  ElRey  foubera  que 
»  fuás  Provisões  eram  abertas ,  me  mandá- 
»  ra  as  m.inhas  dobradas  ,  pelo  que  fallou 
))  por  palavra  nova  ,  dizendo  que  das  ou- 
))  trás  fe  nao  ufaííe ;  moftrando  claramente, 
»  que  ainda  que  delias  fe  tiveííe  uíado  ,  def- 
»  tas  minhas  queria  que  fe  ufaíFe ,  ainda  que 
))  elle  governaíTe  a  índia,  que  eíla  he  amor 
))  dcrogatoria  ,    que  dizer  ,   fem  embargo  > 

»  por- 


i5'2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

»  porque  he  de  fua  certa  vontade.  E  quan- 
»  to  á  Ordena^^ão  que  allega  tenho-Iho  em 
»  mercê,  porque  faz  porElRey,  por  qunn- 
»  to  pôde  tomar  os  cargos  ,  e  officios  a 
)>  quem  os  tiver  ,  lem  íatisfacao  ,  nem.  en- 
))  cargo  de  confciencia  ,  e  aíli  o  tirou  a  Pc- 
»  ro  Mafcarenhas  por  fer  aíli  fua  vontade. 
))  E  quanto  á  outra  Ordenação  do  fegundo 
»  Jivro  ,  digo  5  que  por  iíío  fallou  ElRey 
))  por  palavra  nova  ,  dizendo ,  que  das  de 
»  Pêro  Mafcarenhas  fe  i^ao  ufa  ria  ,  fenáo 
>>  das  minhas ;  e  rtiais  nas  fuccefsoes  nao  ha 
»  tempo  atempado  ,  e  tudo  he  d'ElRey  ,  e 
))  pode-o  dar ,  e  tirar  a  quem  quizer ,  por- 
»  que  todas  as  íuccefsoes  vem  até  fua  mercê. 
))  E  quanto  a  dizer  que  eílou  alevantado 
»  com  a  índia  ,  a  iífo  refpondo  que  lho  ne- 
»  go  ,  e  que  falia  muito  defcortezmente  ,  que 
7í  eu  tenho  a  índia  de  bom  titulo  por  Pro- 
»  visões  d'ElPvey  mui  choras  ,  e  mui  boas , 
))  e  approvadas  por  todas  as  peHbas  de  que 
»  EIRey  conna  fua  fazenda ,  juílica  ,  e  for- 
))  talezas ,  e  por  todos  cílou  obedecido  por 
))  Governador  natural ,  e  verdadeiro.  E  en- 
»  tao  o  era  também  ,  e  por  EIRey  gover- 
)í  nava  em  fua  aufencia  ,  (até  elle  vir  ,  ou 
))  outro  de  Portugal. )  E  nao  era  muito  pa- 
»  recer  a  AfFonfo  Mexia  ,  que  nao  vielfe 
))  Pcro  Mafcarenhas  de  Malaca  ,  porque  fa- 
)»  bia   as  nccellldades  que  de  fua  peíToa  ha- 

»  via 


Década  IV.  Liv.  IT.  Cap.  X.  i^^ 

))  via  neífas  partes  de  Malaca  ,  Sunda  ,  Ma- 
»  Jiico  ,  pêra  prover  áquellas  fortalezas  ,  cii- 
»  de  elle  melhor  parecera  ,  e  mais  tendo  no- 
»  vas  certas  dos  Caftelhanos  que  na  fua  com- 
))  panhia  vieram  ,  e  não  vir-íc  á  índia  com 
)í  muitos  navios  ,  e  gente  (que  lá  era  ne- 
))  cciTiiria)  a  fazer  uniões,  e  dcfobedecer  ás 
))  Provisões  d'EIRey  ,  e  inquietar  aterra  que 
))  eílava  muito  quieta  ,  e  m.uito  em  juíliça  , 
))  e  preíles  pêra  o  ferviço  d'£lPvcy  ;  efe  lio- 
))  je  ha  alguns  defaíTocegos  ,  ou  eícandalos , 
))  elle  os  caufou  com  feus  requerimentos. 
))  Pelo  que  bem  fe  vé ,  que  o  faz  mais  por 
»  teima  ,  que  por  cuidar  que  tem  juíliça , 
»  pois  eílamos  em  dez  de  Agoílo  ,  e  cada 
'B  dia  efperamos  por  Governador  doReyno. 
»  E  quanto  a  taixar  minha  ida  a  Ormuz, 
»  eu  o  fiz  por  cartas  que  tive  daquella  for- 
»  taleza  ,  em  que  me  requereram  que  foíTe 
»  lá  em  pefiba  ,  por  quanto  o  Giiazil  eíla- 
))  va  alevantado  contra  EIRey,  e  com  tudo 
)>  náo  quiz  ir  lá ,  fem  defpachar  prim^eiro  a 
))  Armada  do  eílreito  ,  e  da  Sunda  ,  de  Fran- 
»  cifco  de  Sá ,  que  ElRey  mandava  fazer ; 
»  e  depois  com  parecer  dos  Fidalgos  ,  e  Ca- 
»  piíáes  me  embarquei ,  por  haverem  que  era 
y)  necclTario  pêra  íegurança  daquella  forta- 
»  leza  ,  fazendo  naquella  jornada  muito  fer- 
»  viço  a  ElRey  ,  deixando  a  terra  mui  fe- 
)í  giira  .   e  quieta ,   nao  fazendo  minha  au- 

»  fen- 


i5'4   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

»  fencia  falta  na  índia  ,  porque  fui  por  fim 
)>  de  Março ,  e  tornei  em  fun  de  Setembro  , 
))  deixando  António  de  Miranda  Capitão 
))  mor  do  mar  com  muito  boa  Armada ,  e 
»  gente  ,  e  as  fortalezas  mui  bem  providas  , 
»  em  Goa  mil  e  duzentos  homens,  emChaul 
))  trezentos  e  íincoenta ,  em  Cananor  paíTan- 
))  te  de  duzentos ,  em  Cochim  mais  de  feis- 
»  centos  5  e  não  levei  comigo  algum  navio  , 
))  fenão  03  que  por  forca  haviam  de  ir  in- 
»  vernar  fora.  Os  ferviços  que  tenho  na  In- 
»  dia  feito  ,  depois  que  fou  Governador  ,  to- 
))  dos  os  fabem.  Eíle  inverno  concertei  to- 
))  da  a  Armada  que  tenho  preftes ,  e  muito 
))  bem  provida  pêra  ir  bufcar  os  Rumes , 
»  que  tenho  por  novas  eílarem  cm  Cama- 
))  râo  ,  c  tenho  pêra  iíTo  muicas  munições , 
5)  porque  fó  nefta  Cidade  eíláo  cento  e  tan- 
5)  tas  pipas  de  pólvora  ,  e  cada  mez  fe  fa- 
»  zem  dez,  doze  mil  pelouros  de  falcão,  e 
))  quatro  m.il  defperas  de  ferro  coado  ,  com 
»  muitos  outros  artifícios  :  e  tenho  toda  a 
)>  gente  que  ganha  foldo  na  índia  ,  fem  ne- 
»  nhuma  ir  a  chatinar  ,  e  tenho  pagos  du- 
))  zentos  mil  pardáos  de  foldos  ,  fem  coufa 
))  alguma  fahir  do  cofre  ,  nem  do  dinheiro 
^  da  carga.  Pelo  que  vos  mando ,  e  requci- 
))  ro  da  parte  d'ElRey ,  que  mais  nao  fldlcis 
»  nas  couías  de  Pêro  Mafcarenhas  ,  nem.  con- 
))  fintais  fallar  ,   nem  recebais  mais  requeri- 

li  men- 


Dec.  IV.  Liv.  II.  Cap.  X.  eXI.  15-5' 

»  mentos ,  nem  me  façais  mais  alguns  ,  por- 
»  que  náo  ferve  iífo  de  mais  que  de  fazer 
»  uniáo  no  povo ,  perturbar  o  ferviço  d'El- 
)>  Rey  ,  e  dar  caufa  aos  vizinhos  tentarem 
»  contra  nós  alguma  maldade  ;  e  deíla  mi- 
»  nha  refpoíla  mandareis  o  traslado  a  Fero 
))  Alafcarenhas  ,  e  me  dareis  a  mim  outro 
»  pêra  o  ter  pêra  minha  guarda.  »  E  os 
mandou  á  Cidade  ,  onde  ainda  hoje  cílani 
os  próprios  aílinados  por  elle ,  e  Pêro  Maí^ 
carenhas,  que  nós  vimos,  e  donde  tirámos 
as  forças  fubílanciaes ,  por  eílarem  em  eínlo 
judicial  3   que  he  mui  prolixo ,  e  comprido. 

CAPITULO     XI. 

De  como  os  do  hando  de  Fero  Mafcareiíhas 

trataram  de  prender  Lopo  Va% :  e  das 

uniões  que  fohre  ijjò  hotíve  :  e  de  como 

Lopo  Vaz  os  foi  prender  a  todos» 

ESta  refpoíla  de  Lopo  Vaz  foi  dada  á 
Cidade  ,  que  a  amoftrou  aos  Fidalgos 
da  índia  5  por  lho  aíli  requererem,  que  lida 
por  todos  ,  vendo  que  Lopo  Vaz  de  Sampaio 
em  nenhuma  maneira  queria  confentir  faze- 
rem-lhe  nenhum,  requerimento  por  parte  de 
Pêro  Mafcarenhas  ,  (no  que  claramente  mof- 
trava  que  ufava  de  força ,  e  que  elle  era  o 
que  nao  tinha  juftiça  ,)  ajuntando-íè  todos  os 
da  conjuração  fobre  efte  negocio  em  cafa  dé 

Ei- 


I5'6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Eitor  da  Silveira ,  aflentaram  que  era  caio 
pêra  lhes  ElRey  pedir  conta  diíTo  ,  e  que 
lho  eílranharia  muito  ,  porque  pêra  não  con- 
íèntirem  tamanhas  fem-razòes  tinha  elle  na 
índia  tantos ,  e  tao  honrados  Fidalgos.  Pe- 
lo que  lhes  pareceo  que  deviam  de  prender 
Lopo  Vaz  como  alevantado.  AíTentado  em 
fer  aííi  neceíTario  ,  o  confultáram  com  os  Ve- 
readores ,  que  lho  louvaram  ,  e  ordenaram 
o  dia  pêra  iíTo  ,  em  que  todos  haviam  de 
acudir  com  fuás  armas  pêra  ePie  negocio  , 
e  começou-fe  logo  hum  grande  rumor  ,  e 
união  por  toda  a  Cidade.  De  todas  eftas 
coufas  não  faltou  quem  avifaíTe  ao  Gover- 
nador ,  pelo  que  determinou  de  prender  Ei- 
tor da  Silveira  ,  e  os  mais ,  e  o  communi- 
cou  com  Pêro  de  Faria ,  aíTentando  o  mo- 
do como  havia  de  fer ,  c  deite  negocio  deo 
conta  a  António  da  Silveira ,  que  tinha  ca- 
iado de  futuro  com  huma  filha  fua  ,  e  a  Si- 
mão de  Mello ,  e  a  outros  de  fua  valia  ,  a 
que  avifou  ,  que  ao  outro  dia  fe  achaíTem 
armados  na  rua  direita  em  favor  de  Pêro 
de  Faria  ,  que  havia  de  fazer  a  prizão.  E 
aíiim  ajuntando  cíles  Fidalgos  muita  gente 
de  fua  valia  mui  bem  armada  ,  tomaram  as 
ruas  direita  ,  e  a  de  S.  Jorge ,  onde  poufa- 
va  Eitor  da  Silveira  :  era  iílo  aos  nove  de 
Agofto.  O  Governador  cavalgou ,  e  fe  foi 
pôr  na  rua  direita,  eílando  todos  preíles ,  e 

ar- 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  XI.  i5'7 

armados  ,  e  dalli  foi  o  Capitão  da  Cidade 
com  o  Ouvidor  geral  ,  e  Meirinho  a  caía 
de  Eiror  da  Silveira  ,  que  poufava  na  rua 
de  S.  Jorge  ,  que  he  nas  coftas  da  rua  di- 
reita ;  c  entrando  pela  rua  achou  muita  gen- 
te que  acudio  a  Eitor  da  Silveira  ,  porque 
lufpeitavam  que  o  Governador  o  mandava 
prender  :  e  por  a  coufa  fer  tão  lupita,  fo- 
ram fós  com  as  efpadas  que  traziam  nas  cin- 
tas. Sabendo  Eitor  da  Silveira  que  Pêro  de 
Faria  eílava  a  fua  porta  ,  aíTomou-íe  a  hum 
balcão  que  fazia  a  efcada  pêra  a  banda  de 
fora ,  e  perguntou-lhe  que  queria  :  elle  lhe 
diíTc  ,  o  Governador  o  mandava  prender,  e 
que  lhe  requeria  da  parte  d'ElRey  que  lhe 
défle  a  menagem  :  ao  que  lhe  elle  refpon- 
deo  ,  que  íubifTe  aííima  a  lha  tomar  ,  que 
elle  lhe  faria  o  que  elle  merecia  ,  pois  era 
tão  roim  Fidalgo  que  acccitava  illo  prender. 
Pêro  de  Faria  mandou  logo  chamar  o  Go- 
vernador ,  que  acudio  mui  apreflado  com 
muitos  que  o  feguiam  ;  e  chegando  á  rua 
de  S.  Jorge  ,  vio  mui  grande  revolta  de  gen- 
te ,  que  acudia  a  Eitor  da  Silveira  com  mui- 
tas lanças  ,  e  alabardas ,  e  já  com  Eitor  da 
Silveira  eftavam  todos  os  Fidalgos  da  liga. 
Vendo  o  Governador  o  rifco  em  que  aquel- 
le  negocio  eílava  ,  como  era  homem,  de  gran- 
de animo  ,  foi  rompendo  por  toda  a  gente 
até  chegar  defronte  das  caías.  Diogo  da  Sil- 
vei- 


1^2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

vcira  chegou  ao  balcão ,  e  diíTe  aos  da  fua 
parcialidade  que  eftavam  na  rua  :  Não  ve- 
des  ,  Senhores  ,  ifto  ,  que  quer  Lopo  Vaz  que 
ãhi  ejhi ,  tomar  por  for  ^  a  a  governança  da 
índia  a  cuja  he  ,  nao  he  bem  que  lho  con- 
fintara  ,  ( iílo  difle  pcra  que  os  da  rua  co- 
jTicçaíTcm  a  travar  a  briga  ,  por  nao  ferem  el- 
les  os  primeiros ,  pêra  Jhes  não  ficar  em  cul- 
pa o  mal  que  diíTo  íe  íeguiíTe.  )  Lopo  Vaz 
ouvindo  dizer  a  Diogo  da  Silveira  ,  que  elle 
governava  a  índia  por  força,  diíTe  alto  com 
ira  :  Por  força  a  governo  ,  e  por  força  a 
hei  de  governar.  E  defcendo-fe  do  cavallo  , 
cmbraçou  huma  adarga  ,  e  tomando  huma 
lança  nas  mãos,  foi  commettendo  a  efcada  , 
bradando-lhes  que  fe  deíTem  á  priísao  ,  fem 
os  da  rua  oufarem  abolir  comíigo.  (O  que 
parece  que  permittio  Deos  ,  porque  huma  fó 
•cfpada  que  fe  arrancara  ,  tudo  fe  acabava  , 
•porque  os  mais  dos  que  eftavam  na  rua  hou- 
veram de  morrer  na  briga  ,  de  que  Lopo 
Vaz  não  podia  efcapar  ,  porque  da  outra 
parte  eram  todos  os  Fidalgos  principaes  que 
havia  na  índia. )  Lopo  Vaz  foi  commetten- 
do a  efcada  ,  onde  fe  lhe  atraveíTou  Antó- 
nio Rico  Secretario  do  Eílado  ,  como  ho- 
'inem  mui  acordado ,  e  mui  cavalleiro ,  e  li- 
ando-fe  com  o  Governador  ,  IhediíTe:  Ten- 
de-vos  5  Senhor ,  e  nao  fubais ,  que  nao  he 
■Jerviço  d^E/Rej  ^  de  cuja  parte  vos  requei- 


ro^ 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  XI.   15-9 

ro  ,  que  não  queirais  pôr  hoje  a  Índia  ci 
rifco  de  fe  perder  ,  porque  ejjes  Fidalgos 
que  emfima  ejiam  são  muitos  ,  e  muito  apa- 
rentados ,  e  muito  hojírados ,  e  eu  por  taes 
os  tenho  ,  que  fá  pelo  que  cumpre  ao  fervi- 
co  d^ElRey  cortarão  por  Ji  ^  c  fe  darão 
por  prezos.  Bradando  alto  aos  de  íima  :  Se- 
nhores  ,  %'ede  o  que  fazeis ,  não  queirais  de- 
fervir  a  ElRey  ,  de  ctija  parte  vos  requei- 
ro vos  deis  d  prizão  ,  porque  fe  não  perca 
hoje  a  Índia,  Eitor  da  Silveira  ouvindo  aquil- 
lo  ,  cahindo  na  razão  ,  pelo  Deos  mover  ,  che- 
gando ao  peitoril  da  efcada ,  diííe  ao  Go- 
vernador que  fe  quieraíTe,  e  fe  rccolheíTe  , 
que  elle  ,  e  es  outros  Fidalgos  fe  davam  por 
'prezos  5  por  cumprir  aííi  ao  ferviço  d'Ei- 
■Rey  ,  que  clíe  lhe  daria  conta  da  força  que 
fazia.  O  Capitão  Pêro  de  Faria  ,  que  eílava 
pegado  com  o  Governador ,  ouvindo  aquil- 
lo  5  lhe  pedio  que  fe  recolheíTe ,  que  elíe  le- 
varia a  rodos  prezos  á  fortaleza  :  fello  o 
Governador  afíi ,  e  Pêro  de  Faria  fubio  aííi- 
rna  ,  e  diííe  áquelles  Fidalgos  o  muito  gran- 
de ferviço  que  naquelie  negocio  tinham  fei- 
to a  ElRey  ,  que  lhe  fizeíTcm  mercê  de  fe 
irem  com  elle  pêra  a  fortaleza  ,  onde  elle 
poufava  ,  até  fe  quietarem  aquellas  coufas  : 
o  que  elles  fizeram  ,  e  fe  foram  com  elle 
todos  os  que  na  caía  eílavam  ,  que  eram  os 
ieguintes :  Eitor  da  Silveira .  D.  António  da 

Sii- 


i6o  ASTA  DE  Diogo  de  Couto» 

Silveira,  Diogo  da  Silveira,  D.  Triílao  de 
Noronha  ,  D.  Jorge  de  Caftro  ,  Vaíco  da 
Cunha  ,  Alaríini  Vaz  Pacheco  ,  Jorge  da  Sil- 
veira ,  D.  Henrique  Deça  ,  Diogo  de  Mi- 
rantla  ,  Franciico  de  Ta  ide ,  Siniao  Delga- 
do Qi-iadrilJiciro  niór ,  Nuno  Fernandes  Frei- 
re ,  D.  Franciico  de  Caílro ,  Simão  Sodré , 
Jorge  de  Mello  ,  Aires  Cabral.  E  mettidos 
na  fortaleza  ,  lhes  tomou  o  Capitão  as  me- 
nagens ,  de  que  fe  fizeram  autos  aílinados 
por  elles ,  com  o  que  Lopo  Vaz  lhe  pare- 
ceo  ficava  feguro  ,  indo-le  reconciliar  com 
elle  os  Officiacs  da  Camará  ,  a  quem  man- 
dou que  refpondeíTem  ao  protefio  de  Pêro 
Mafcarenhas  ,  e  lhe  nrandaficm  a  refpoíla 
iua  ,  e  delles  ,  e  que  deípediíTcm  Mem  Vaz  , 
o  que  logo  fizeram  ,  refpondendo  a  Pêro  Aíaf- 
carcnhas  por  boca  do  Goveiniador,  que  el- 
ies  o  nao  podiam  obrigar  ,  nem  requerer 
que  fe  puzcíTe  em  direito  com  elle  fobre  a 
governança,  poríaberem  que  eftava  de  pof- 
iè  ,  e  obedecido  por  Governador  por  Pro- 
visão d^ElRey  ,  e  que  requercndo-lhe  o  que 
elle  queria  ,  parecia  pôr  em  dúvida  a  Pro- 
visão d'EÍRey  ,  que  qUc  fó  era  o  que  podia 
julgar  eílas  coufas  ,  e  que  lhe  pediam  nao 
quizeíTe  vir  a  Goa  ,  porque  não  ferviria  de 
mais,  que  de  flizer  alvoroço  na  gente  que 
era  ncceííario  cíliveííe  quieta  ,  e  conforme 
pêra  pelcijarcm  com  os  Rumes  que  efperar 

vam^ 


Década  IV.  Liv.  II.  Cap.  XI.  i6i 

vam.  Com  eíla  refpoíla  ,  e  com  a  de  Lopo 
Vaz  ,  que  lhe  deram  autentica  ,  fe  partio  Mem 
Vaz  outra  vez  por  terra  ,  levando  também 
cartas  dos  Fidalgos  prezos  pêra  Pêro  Maf- 
carenhas ,  em  que  íe  remetriam  a  Mera  Vaz 
nas  couías  paíTadas ,  pedindo-lhe  de  novo , 
que  em  todo  calo  vieíTe  a  Goa ,  porque  tu- 
do fe  fliria  bem.  Lopo  Vaz  por  nao  querer 
ter  todos  os  Fidalgos  contra  ií ,  mandou  íol- 
tar  dos  que  eílavam  prezos  os  que  tinham 
menos  culpa  ,  que  eram  -  Vaíco  da  Cunha  , 
D.  Triílao  de  Noronha  ,  Martim  Vaz  Pa- 
checo ,  Jorge  da  Silveira,  D.  Henrique  De- 
ça ,  Diogo  de  Miranda,  Francifco  de  Taí- 
de  5  Simão  Delgado  ,  Nuno  Fernandes  Frei- 
re ,  D.  Francilco  de  Caílro ,  Simão  Sodré ; 
deixando  ficar  prezos  ,  Eitor  da  Silveira  , 
Diogo  Silveira  ,  D.  António  da  Silveira  ,  e 
D.  Jorge  de  Caílro  ,  por  ferem  cabeças  da 
conjuração  ;  e  a  Aires  Cabral ,  e  Jorge  de 
Mello  mandou  lev^ar  prezos  pêra  a  forta- 
leza de  Baneílarim  ,  por  alvoroçadcres  do 
povo  ,  mandando-lhes  lançar  ferros.  E  no 
fim  do  mez  de  Agoílo ,  por  fe  recear  ainda 
dos  Silveiras  ,  tratou  de  os  mandar  prezos 
a  Cochim  em  hum  catur  muito  pequeno  , 
de  que  elles  foram  avifados  ,  entendendo  mui 
bem  que  aquillo  tratava  o  Governador  mais 
pêra  ver  fe  fe  podiam  perder  no  m.ar ,  por- 
que o  tempo  era  m.uito  verde,  que  por  lhes 
Couto.  Tom,  L  P,  L  L  ef- 


i6z  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

eftreitar  a  prizao ,  e  lhe  mandaram  febre  if- 
fo  fazer  proteílos  ,  e  requerimentos ,  dizen- 
do ncllcs ,  une  eram  os  principaes  Fidalgos  , 
que  EIRcy  tinha  na  índia  ,  e  que  não  era 
razão  que  os  arrifcaíle  em  tempo  tão  perigo- 
fo  :  e  que  acontccendo-lJies  algum  defaftre , 
daria  conta  a  ElRey  de  fuás  vidas :  com  o 
que  Lopo  Vaz  deíiííio  de  os  mandar  ,  ten- 
do fobre  elles  grandes  vigias  :  e  ellcs  mui 
grande  refguardo  em  fi ,  porque  fe  temiam 
de  peçonha  ,  e  fegundo  a  coufi  eftava  da- 
mnada  de  parte  a  parte  3  tudo  fc  podia  rc* 
cear. 


DE- 


l"-  


■^  f 


DÉCADA  (QUARTA. 
L  I  V  P.  O    III. 

Da  Hiftoria  da  índia. 

CAPITULO      I. 

Do  que  aconteceo   na  jornada  de  Francifco 
de  Sd  5  e  da  defcripçao  da  Ilha  de  Jaoa  , 
e  de  qual  he  a  maior  ,  e  menor  de  Mar- 
co Polo :  e  de  como  Francifco  de  Mel- 
lo rendeo  hiima  não  de  Turcos  na 
barra  de  Achem, 

ErxAREMos  porhiim  pouco  as  coiifas 
d^antre  Lopo  Vaz  ,  e  Pêro  Mafcare- 
nhas  ,  por  darmos  conta  das  que  nef- 
re  tempo  atrás  todo  do  veráo  aconteceram 
em  Maluco :  e  primeiro  trataremos  da  jor- 
nada de  Francifco  de  Sá  de  Menezes ,  que 
como  diflemos  partio  de  Bintao  a  fazer  hu- 
ma  fortaleza  na  Sunda ,  de  que  temos  dado 
conta.  ,E  fazendo  fua  jornada,  deo-lhe  hum 
tamanho  temporal  ,  que  foi  correndo  com 
hum  bolfo  de  vela  a  vontade  dos  ventos  ^ 
c  foi  de  forte  ,   que  fe  apartou  a  Armada  ^ 

L  ii  que 


164  ASIA  DE  Diogo  de  Couto 

que  eíleve  perdido  correndo  cada  hum  por 
onde  pode  ,  porque  o  tempo  foi  rijo  ,  e  lhe 
durou  itíUÍlos  dias,  em  que  Duarte  Coelho  , 
que  hia  em  hunia  náo  grande,  e  huma  ga- 
lé, de  cujo  Capitão  não  achámos  o  nome, 
e  huma  fulca  ,  foram  depois  de  muito  tra- 
balho tomar  o  porto  da  Sunda  ,  e  com  tal 
temporal  que  a  fufta  deo  á  coíia  ,  e  trinta 
Portuguezes ,  que  nella  hiam  ,  faiaram  a  ter- 
ra a  nado  ,  onde  logo  forarn  mortos  pelos 
Mouros  da  terra ,  que  eram  inimigos  ,  por- 
que o  Pvey  que  queria  dar  fortaleza  era  mor- 
to ,  e  o  inimigo  com  quem  tivera  a  guerra 
lhe  tinha  tomado  o  Reyno,  e  eíbva  a  eílc 
tempo  na  Cidade  de  Banta  ,  principal  do 
Reyno ,  com  muita  gente  pêra  acabar  de  o 
fujeitar.  O  que  tanto  que  vio  a  noíTa  Ar- 
mada ,  com.o  fibia  que  o  Rey  paliado  man- 
dara oíFerecer  aos  Portuguezes  fortaleza  na- 
quclle  porto ,  quiz-fe  vingar  nos  noíTos.  A 
náo  ,  e  a  galé  eíliveram  tam.bem  dadas  á 
coíla  ,  fe  Decs  milagrola mente  os  nao  fal va- 
ra. Duarte  Coelho  foube  logo  o  que  fizera 
á  gente  da  fuPta  ,  e  como  a  terra  eílava  em 
divisões  ,  e  Iiouve  que  era  tempo  perdido 
efperar  alli  mais  ,  porque  nao  fabia  que  fe- 
ria feito  do  Capitão  mòr :  c  aífi  abonançan- 
do o  tempo  fe  fez  á  vela  pêra  Malaca.  Fran- 
çifco  de  Sá  foi  correndo  o  temporal  com 
que  ferrou    a  coíla  da  Jaoa  ,   por  onde  foi 

en- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  I.   i6^ 

encontrando  os  feus  navios  ,  que  todos  ajun- 
tou no  porro  de  Faneruca.  E  porque  lerá 
razão  darmos  a  conhecer  cila  terra  ,  faremos 
delia  huma  breve  defcripção  ,  e  m^oílraremos 
quaes  são  asjaoas  maior,  e  m.enor  de  Mar- 
co Polo  5  por  tirarmos  a  confusão  que  diíTo 
houve  antre  os  Geógrafos  modernos.  Pelo 
que  fe  ha  de  faber  ,  que  eíla  Ilha  da  Jaoa 
quaíi  que  quer  imitar  a  figura  de  hum  por- 
co deitado  fobre  as  mãos  ,  por  cujo  focinlio 
paíTa  aqueile  canal  que  chamam  de  Balabuão  , 
e  por  de  baixo  dos  pés  o  outro  a  que  cha- 
mam o  boqueirão  da  Sunda  ,  que  he  mui 
continuado  das  noíTas  náos.  Efta  Ilha  ellá 
lanhada  direitamente  ao  Rumo  ,  a  que  os 
mareantes  chamao  Leíle  Oeíle  :  terá  de  com»- 
prido  cento  e  íeíTenta  léguas ,  e  de  largura 
no  mais  largo  fetenta.  Aquella  parte  das 
codas,  que  lhe  fcam  da  banda  do  Sul,  não 
he  tratada  de  nós  ,  nemt  fe  lhe  fabcm  portos  , 
nem  bahias;  m^as  da  outra  parte  da  barriga  , 
que  he  a  da  banda  do  Norte  ,  he  mui  tra- 
tada 5  e  communicada  de  noíTos  navios  ,  e 
tem  muitos  ,  e  bons  portes  j  e  ainda  que  ro- 
da a  coíla  he  mui  fuja ,  e  cheia  de  baixias , 
todavia,  pela  continuação  são  feus  canaes , 
e  forgidouros  mui  fabidos  ,  e  raramente  acon- 
tece defaftre  a  navio  algum.  Tem  muitos 
Pvcynos  por  efla  banda  do  marítimo  ,  huns 
íujeitos  aos  outros ;    e  começando  da  cabe- 


ça 


i66  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ça  ,  ou  da  banda  do  Levante ,  iremos  no- 
meando os  de  que  temos  conhecimento.  O 
Valle  5  Paneruça  5  Agafai,  Sodayo  ,  Paniâo  , 
(  cujo  Rcy  refide  peio  fertao  trinta  léguas , 
e  he  como  Emperador  dcíles  ,  e  de  outros 
adiante  ,  )  Tubao  ,  Berodao  ,  Cajoao  ,  Japa- 
rá  5  (  cuja  Cidade  principal  íe  chama  Ccri- 
nhamá  ,  três  léguas  pela  terra  dentro  ,  e  a 
Cidade  de  Japará  eílá  á  borda  eia  agua  , ) 
Damo  ,  Margao  ,  Banta  ,  Sunda  ,  Andrcguir  , 
onde  ha  muita  pimenta.  Efte  Reyno  tem 
hum  rio  por  onde  ella  fa.be  chamado  Jan- 
de  5  pelo  ferrão  tem  muitos  Reys  que  fe 
chamam  Gunos ,  que  vivem  em  ferras  afpe- 
riílimas  ,  sao  brutos ,  e  falvagens  ,  e  muitos 
deíles  comem  carne  humana.  Elbs  ferras  co- 
mo diíTemos  são  altiílimas  ,  e  algumas  delias 
lançam  fogo  pelos  cumes  ,  como  a  Ilha  de 
Ternate  :  cada  Rey  deíles  que  nomeamos 
tem  lingua  fobre  li,  mas  quaíi  todos  fe  en- 
tendem por  ellas  .  como  nós  com  os  Galle- 
gos  ,  e  Caílelhanos.  Efte  Reyno  da  Sunda  , 
de  que  falíamos  ,  he  muito  profpero  ,  e  abaf- 
tado  ,  e  fica  lançado  entre  as  terras  de  Jaoa  , 
e  Çamatra  ,  porque  por  antre  ambas  fe  faz 
aquelle  boqueirão  que  chamam,  da  Sunda. 
Tem  efte  Reyno  muitas  Ilhas  adjacentes ,  que 
correm  do  longo  delle  para  dentro  do  bo- 
queirão ,  mui  perto  de  quarenta  léguas,  e 
fíca  a  Cidade  de:  Banta  no  meio  defte  cftrei- 

to. 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  I.  167 

to  ,  que  no  mais  largo  terá  vinte  e  cinco 
léguas  ,  e  em  partes  doze ,  e  no  mais  cílrei- 
to  íeis :  todas  as  fuás  Ilhas  tem  muito  pou- 
ca agua  ,  mas  muita ,  e  boa  madeira  ,  algu- 
mas sáo  povoadas  ;  e  huma  pequena  ,  que  Cx* 
tá  na  entrada  do  boqueirão  da  banda  do 
Levante  ,  que  fe  cjiama  Maçar,  affirmam 
que  tem  muito  ouro.  Os  portos  principaes 
do  Reyno  da  Sunda  são  Banta  ,  Ache ,  Xa- 
catara,  por  outro  nome  Caravao  ,  aos  quaes 
vam  todos  os  annos  mui  perto  de  vinte  lom- 
mas  5  que  são  embarcações  do  Chincheo , 
huma  das  Províncias  marítimas  da  China , 
a  carregar  de  pimenta  ,  porque  dá  eíle  Rey- 
no todos  os  annos  oito  mil  bares  delia  ,  que 
são  trinta  mil  quintaes.  A  Cidade  de  Ban- 
ta eílá  em  altura  de  íeis  gráos  do  Sul  ,  íi- 
tuada  em  hum.a  enceada  tão  larga ,  c  formc- 
ía  ,  que  de  ponta  a  ponta  terá  três  Icguas , 
fica  a  Cidade  em  meio  ,  que  feria  de  com- 
prido oitocentas  e  íir.coenta  braças  ,  e  de 
longo  por  huma  das  bandas ,  que  he  a  do 
mar,  quatrocentas,  mss  pelo  ferrão  hemais 
com^prida.  Paíía  por  meio  da  Cidade  hura 
formofo  rio  ,  porque  podem  entrar  juncos  , 
e  galés ,  que  deita  hum  braço  por  huma  ilhar- 
ga da  Cidade  menos  capaz,  porque  não  en- 
tram por  elle  fcnao  embarcações  pequenas 
até  catures.  Tem  a  Cidade  a  huma  parte 
huma  fortaleza ,  cujo  muro  (aue  he  de  ado* 

bes) 


i68    ASIxV  DE  Diogo  de  Couto 

bes  )  fera  de  largura  de  íetc  palmos ,  e  os 
baluartes  de  madeira  de  dous  íbbrados  , 
com  boa  artilheria  :  eíla  enceada  he  limpa , 
em  partes  tem  lama,  e  em  outras  arêa  :  ha- 
verá por  toda  ella  de  fcis  até  duas  braças 
de  fundo.  E  por  eiKender  ElPvey  D. João, 
que  tendo  alli  huma  fortaleza  íèria  íènhor 
de  todo  aquelle  boqueirão ,  e  de  toda  a  pi- 
menta daquelles  Reynos,  encommendou  mui- 
to ao  Conde  Almirante  a  mandaíTe  alli  ta- 
zer  por  Francifco  de  Sá  ,  e  ainda  hoje  fe 
entende  que  lerá  mais  importante  ,  aíli  pê- 
ra defender  a  entrada  aos  Inglezes  ,  e  Tur- 
cos,  como  pêra  fegurança  do  trato,  e  com- 
mercio  daquellas  partes  ,  que  he  o  fubílan- 
cial  da  índia.  E  affi  fe  pratica  antre  os  ho- 
mens velhos,  e  antigos,  que  tendo  ElRey 
de  Portugal  três  fortalezas  ,  huma  neíla  par- 
te ,  outra  na  ponta  do  Achem  ,  e  outra  na 
corta  de  Pegú  ,  íicariami  fechadas  com  três 
chaves  as  partes  do  Levante  ,  e  feria  fenhor 
de  todas  fuás  riquezas :  e  pêra  iíío  dam  mui- 
tas razoes  ,  que  nós  deixamos  por  não  fer 
cumprido.  Tornando  á  Ilha  da  Jaoa  ,  he 
toda  ella  m.uito  abadada  de  todas  as  coufas 
iieceffaria?  á  vida  humana  ,  e  tanto  ,  que  del- 
ta fe  prove  Malaca  ,  Achem  ,  e  todos  os  mais 
vizinhos.  São  os  naturaes  daqui,  a  que  cha- 
mam Jaós ,  homens  tão  foberbos  ,  que  cui- 
dam que  nenhuns  outros  lhes  precedem  ,  an- 
tes 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.    I.  169 

tcs  que  clles  o  fazem  a  todos  ;  em  tanto , 
que  paíTando  hum  Jao  por  huma  rua  ,  fc 
acertar  alguma  peíToa  de  outra  nação  eílar 
íobre  algum  poial,  ou  algum  lugar  mais  al- 
to ,  que  aquclle  por  onde  elle  paíTar ,  fe  fe 
logo  não  defcer  abaixo ,  até  que  elle  paíTe , 
o  matará  ,  porque  não  coníente  cuidar  al- 
guém que  pode  ficar  mais  alto  que  elle :  e 
aíFinão  porá  hum  Jao  fobre  fua  cabeça  hum 
pezo  j  ou  carga ,  ainda  que  por  iíTo  o  ma- 
tem. São  homens  cavalleiros ,  e  tão  deter- 
minados 5  que  por  qualquer  offenfa  que  fe 
lhes  faz  ,  fe  fazem  amoucos  ,  pêra  fe  fatif- 
fazerem,  delia  ;  e  poílo  que  lhe  ponhao  hu- 
ma lança  nas  barrigas ,  vam-fe  mettendo  por 
ella  fem  receio  algum  até  chegarem  ao  con- 
trario. E  porque  deftes  amoucos  em  outra 
parte  damos  melhor  razão,  o  deixamos  ago- 
ra. São  todos  hom.ens  mui  exercitados  na 
arte  da  navegação  ,  em  tanto ,  que  fe  tem 
por  mais  antigos  nella  que  rodos  ,  ainda  que 
muitos  dam  eíla  honra  aos  Chins  ,  e  affir- 
mami  procederem  dellcs  os  Jaós;  mas  he  cer- 
to navegarem  eíles  já  até  o  Cabo  de  Boa 
Efperança ,  e  terem  comm/unicação  na  Ilha 
de  S.  Lourenço  da  banda  de  fora  ,  aonde 
ha  muitos  naturaes  BaíTos ,  e  Ajavados ,  qus 
dizem  procederem  delles.  E  querendo  nós 
inquirir  de  alguns  Jacs  práticos  daquella  ar- 
vore de  que  falia  Nicoláo   de  Conti  Vcne- 

zea- 


170   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

2cano  achar-fe  na  Ilha  da  Jaca  ,  cm  cujo 
âmago  diz  nafcer  huma  verga  de  ferro  mui 
ilibtil  ,  e  de  tanta  virtude  ,  que  quem  a 
trazia  apar  da  carne  nao  podia  fer  ferido 
com  alguma  arma  ,  e  que  muitos  Jaós  fa- 
ziam feridas  em  partes  de  feus  corpos  ,  e 
que  mettiam  pedacinhos  deíle  ferro  ,  e  tor- 
iiando-as  a  cozer ,  ficando  dentro  perpetua- 
rnente ,  nunca  já  eram  feridos ,  do  que  eíles 
Jr.os  a  quem  o  perguntámos  zombaram  bem. 
E  confiderando  em  Marco  Polo ,  o.  que  fal- 
ia dejaoa  maior ,  e  menor ,  nos  parece  que 
efla  de  que  tratamos  lie  a  menor ,  e  que  a 
Ilha  de  Çamatra  he  a  que  elle  tem  pela 
Jaoa  maior  ;  porque  diz  que  a  maior  tem 
duas  mil  milhas  cm  roda  ,  e  que  náo  fe  vê 
nella  a  eftrella  do  Norte  ,  e  que  tem  oito 
Reynos  5  Faleh  ,  Ba  fina  ,  Gamara,  Drago- 
jão,  Lambri ,  Faofur ,  do  que  fe  vê  muito 
claro  fallar  da  Ilha  de  Çamatra  ,  porque 
quafi  tem  a  mefma  grandeza  ,  que  lhe  elle 
dá ,  e  nella  fenao  vê  o  Polo  Ardico ,  por 
ficar  debaixo  da  Equinocial ,  o  que  nao  tem 
cm  nenhuma  outra  Ilha  daqucllas  da  banda 
do  Norte ,  porque  de  todas  ellas  fe  vê  aquel- 
ia  eftrella.  E  amda  iílo  fe  vê  mais  claro  nos 
Reynos  que  nomea ,  porque  o  de  Gamara  , 
não  ha  dúvida  fenao  que  quiz  dizer  Çama- 
tra ,  Dragojáo  ,  que  he  Andreguir ,  Lambri  y 
ainda  hoje  conferva  o  nome  naqiiella  Ilha , 

e  to- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  I.  171 

e  todos  os  mais  que  nomea  ,  que  a  corrup- 
ção ,  que  nelles  fez  o  tempo  ,  os  faz  já  def- 
conheccr.  E  deixando  ifto  pêra  outro  lugar  , 
(  fe  nos  cahir  mais  a  propoíito  ,  )  tornando 
a  continuar  com  Fra.nçifco  de  Sá  ,  depois 
de  ajuntar  os  feus  navios ,  foi  feguindo  fua 
derrota  até  tomar  o  porto  de  Bata  ,  onde 
furgio  5  mandando  á  terra  recado  de  amiza- 
des ,  e  oíFerccimenros  áquelle  Rey ,  pedin- 
do-lhe  houveííe  por  bem  deixar-ihe  fazer 
huma  fortaleza  naquelle  feu  porto  ,  como 
ElRey  feu  anteceílbr  o  mandara  pedir,  pê- 
ra ficar  o  commercio  entre  elle ,  e  os  Por- 
tuguezcs  miais  feguro  ,  com  o  que  feus  Rey- 
nos  enriqueceriam  ,  como  fizeram  todos  os 
do  Oriente  ,  que  acceitáram  a  amizade  d'EI- 
Rey  de  Portugal.  O  Rey  ,  que  era  máo  ho- 
mem ,  parecendo-Ihç  que  antes  fe  o  confen- 
tifle  perderia  o  Reyno  ,  (que  iíTo  tem  os 
tyrannos ,  andarem  femprc  timidos  ,  e  receo- 
fos  de  lhes  tom.arem  o  que  elles  ufurpáram  ,  ) 
mandou-fe  efcufar  ,  com  o  que  Francifco 
de  Sá  fe  refum.io  em  defembarcar  em  terra , 
e  fazer  por  força ,  o  que  não  queria  confen- 
tir  por  vontade.  E  cqmmettendo  a  defem- 
barcaçao  acJaou  tal  rtíiílencia  ,  que  com  mor- 
te de  quatro  homens  ,  e  outros  bem  efca la- 
vrados,  fe  toruQu  arecolh-er,  e  não  queren- 
do-a  guardar  allimais.,  deo  á  véla  pêra  Ma- 
laca ,   Qi>de  eliegou  pouco  depois  d«  Pêro 

Maf- 


172  i\SIA  DE  Diogo  de  Couto 

Malcarenhas  embarcado  ,  e  deixando-fe  ficar 
alli ,  dcípedio  logo  Francifco  de  Mello  por 
Capitão  de  hiima  caravela  chamada  a  Perei- 
rinha 5  pêra  levar  cartas  ao  Governador ,  a 
quem  mandava  pedir  mais  gente ,  e  Arma- 
da pêra  tornar  a  commetter  aquelie  negocio. 
Francifco  de  Mello  foi  íeguindo  fua  jorna- 
da 5  correndo  a  cofia  do  Achem  ,  e  fobre 
fua  barra  viò  eftar  furta  huma  náo  á  carga 
pêra  Meca  ,  e  tomando  confelho  com  os 
companheiros  fobre  o  que  faria ,  aíTentáram 
que  fe  commetteíTe  ,  porque  não  fícaíTe  aquel- 
la  jornada  fem  haver  hum  papo  quente.  E 
pofios  em  armas  foram  commetter  a  náo  af- 
íi  á  vela  ,  que  eftava  já  preparada  pêra  fe 
defender,  porque  logo  conheceram  a  noíTa 
caravela :  Eílavam  os  de  dentro  tão  fober- 
bos  3  que  em  nada  eílimáram  es  noílos ,  por- 
que eram  trezentos  homens  d'arm.as  Achcns  , 
e  quarenta  Rumes ,  e  Turcos.  Francifco  de 
Mello  chegando  perto  delia  a  começou  a 
csbombardear  ,  matando-lhe  daquella  primei- 
ra falva  muita  gente ;  e  porque  a  viram  lao 
crefpa  ,  e  cheia  de  gente ,  determinaram  de 
a  baterem  até  a  render ,  porque  fenaò  atre- 
veram a  abordalla  ,  e  aíli  fe  puzeram  á  trin- 
ca batendo-a  rijamente  -,  e  quiz  a  fortuna  ,  que 
lhe  acertaram  com  hum  camelo  ao  lume 
d'agua  que  a  varou  dentro  ,  por  onde  fe 
encheo  delia,  e  os  Mouros  fe  lançaram  ao 

mar 


Dec.  IV.  Liv.  III.  Cap.  I.  E  II.  173 

mar  pcra  fe  fal varem  :  os  noííos  fizeram  nel- 
ies  tal  m.atança  que  eíc  a  param  bem  poucos, 
ficando  todos  defconfolados  de  fe  uao  ce- 
varem naquellanáo,  que  eílava  cheia  de  fa- 
zendas ,  e  feguindo  feu  caminho  foram  to- 
mar Cochim  táo  tarde  que  náo  puderam 
paíTar  a  Goa.   . 

CAPITULO    II. 

De  como  D.  Garcia  Henriques  fez  pazes 
com  ElRey  de  Ti  dor  e  ,  e  a  razão  porque  lo- 

fo   as  quebrou  ,    e   de  como  faleceo  aquelle 
\ey  :  e  das  fufpeitas  que  houve  fer  ajuda-- 
do  a  ijjò  com  peçonha  que  fe  lhe  deo, 

ENrregue  D.  Garcia  Henriques  da  capitar 
nía  de  Maluco  ,  na  vagante  de  Antó- 
nio de  Brito ,  (que  logo  fe  partio  pêra  Ban^ 
da  efperar  a  monção  da  índia  , )  achando  a 
fortaleza  falta  de  todas  as  couíàs ,  defpedio 
logo  Martim  Corrêa  em  hum  junco  pêra 
Banda  ,  pêra  ver  fe  achava  naquelías  Ilhas 
algumas  embarcações  de  Portuguezes  ,.  em 
que  fe  proveíTe  do  neceíTario  ,  e  fazendo  fua 
jornada  ,  teve  hum  tao  grande  temporal  que 
cíleve  perdido ,  e  chegou  a  Banda  derroca- 
do de  todo  5  onde  ainda  achou  António  de 
Brito  5  que  o  ajudou  a  reformar  ,  e  concertar. 
Poucos  dias  depois  delle  furgíram  naquelle 
porto   huma  foma    de  juncos  que  hiam    de 

Ma- 


174  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Malaca  ,  de  que  era  Capitão  mor  hum  Fi- 
dalgo chamado  Manoel  Falcão  ,  que  Pêro 
Maícarenhas  depois  do  negocio  de  Bintão 
deípedio  pêra  Maluco  com  provimentos  que 
levava  Fernão  Baidaia  ,  que  hia  por  Elcri- 
vão  da  feitoria  deTernate.  Eíles  provimen- 
tos rccolheo  Martim  Corrêa  no  fcu  navio 
com  o  Baidaia  pêra  íe  logo  ir  pêra  Ter- 
natc  5  pela  neceíTidade  em  que  ficava.  E  an- 
tes que  partifie  foi  aviíado  da  gente  da  ter- 
ra de  verem  andar  per  nntre  aquellas  Ilhas 
duas  náos  grandes  da  feição  das  noflas  ,  e 
não  cuidando  quaes  podiam  fer ,  porque  Ma- 
noel Falcão  vinha  de  Malaca  ,  (onde  não  ha- 
via coufa  alguma  pêra  poder  partir  pêra 
aquellas  Ilhas ,  )  aíTentáram  fer  de  Caflelha- 
310S  ,  e  que  não  deviam  de  fer  fós ,  antes  po- 
dia fer  da  companhia  de  alguma  grande  Ar- 
mada ,  o  que  os  fobrefaltou  muito  ,  porque 
fe  tal  era ,  não  hiam  pêra  outra  parte  le- 
ilão pêra  Tcrnate  ^  com  o  que  correria  rif- 
co  aquella  fortaleza  pela  pouca  gente  que 
tinha.  Pelo  que  Martim  Corrêa  requereo  ú. 
António  de  Brito  ,  e  a  ?vIanoel  Falcão  da 
parte  d^ElRey  foíFem  foccorrer  aquella  for- 
taleza ,  que  eftava  arrifcada  ,  fe  aquellas  náos 
foifem  de  Caftelhanos ,  mandando  fazer  Jium 
ííuto  do  tal  requerimento.  António  de  Bri- 
to não  quiz  tornar-fe  ,  mas  deó  da  gente , 
e  munições j  que  levava  a  Martim  Corrêa, 

que 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  II.  175* 

que  íe  fez  á  véla  com  Manoel  Falcão  ,  e 
ambos  íiirgíram  em  l'alangame  ,  e  vendo- Ib 
com  D.  (jarcia  Jhe  deram  conta  do  que 
paílava  ,  que  com  o  provimento ,  e  gente 
que  lhe  veio  ,  diiTe  ,  que  lhe  dava  muito  pou- 
co que  vieíTcm  dez  náos  de  Caílelhanos.  An- 
dava D.  Garcia  neíle  tempo  em  contrato  de 
pazes  com  EiRey  Almanfor  de  Tidore  , 
o  que  encontrava  muito  Cachil  Daroez  tu- 
tor ,  e  tio  de  Bohat  filho  mais  velho  do  Bo- 
lei^c  5  que  havia  de  herdar  o  Reyno  como 
tiveíle  idade  ,  porque  depois  da  morte  do 
Pai  ficou  governando  o  Daroez ,  que  defe- 
java  de  eílorvar  as  pazes  com  Tidore  ,  por- 
que receava  paííar-íe  lá  ocommercio  do  cra- 
vo ,  e  ficar  Tcrnate  comiíTo  muito  abatido, 
e  elle  homiziado  com  aquelle  Rey  pelo  fa- 
vor que  fempre  deo  aos  Fortuguezes  contra 
elle.  E  por  muito  que  niíTo  trabalhou  ,  as 
pazes  fe  aíTentáram  com  condição  ,  que  tor- 
naria o  Rey  de  Tidore  a  fuíla  que  nas  guer- 
ras paíílidas  tinha  tomada  com  fua  artilhe^ 
ria ,  e  que  entregaria  todos  os  Portuguezes' 
que  lá  andavam  fogidos  ,  e  com  outros  pon- 
ros  que  não  são  fubítanciaes.  E  porque  o  Rey 
de  Tidore  foube  o  defgoílo  que  tivera  dei- 
tas pazes  Cachil  Daroez  ,  defejando  de  o 
confervar  em  amizade ,  (pêra  ficar  mais  fe- 
guro  com  a  dos  Portuguezes ,  pelo  provei- 
to que  diíTo  tiijha  , )  tratou  de  o  cafar  com 

liu- 


176   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

huma  filha  fua ,  por  fe  liar  com  elle ,  por- 
que também  como  eíliveílem  liados ,  e  con- 
formes 5  teriam  os  noííos  enfreados  ,  e  nao 
receberiam  dos  Capitães  tantas  offenías.  Dom 
Garcia  foi  logo  aviíado  deíles  tratos  ,  de  que 
jhe  não  vinha  bem  ,  porque  depois  de  jun- 
tos com  qualquer  achaque  fe  alterariam  ,  e 
dariam  trabalho  á  fortaleza  ,  e  trabalhou  de 
eftorvar  aquellas  lianças  ,  o  que  nao  pode  já 
fer  por  cílarem  ambos  fatisfeitos :  pelo  que 
determinou  de  com  alguma  invenção  que- 
brar as  pazes  (como  logo  fez)  mandando 
pedir  ao  Rey  de  Tidore  a  artilheria  da  fuf-* 
ta  5  que  nao  era  ainda  entregue  ,  nem  o  tem- 
po era  paíTado.  A  ifto  fe  efcufou  ElRey 
com  di'zer  que  a  tinha  empreftada  a  ElRey 
de  Bachão ,  que  como  a  arrecadaíTe  a  entre- 
garia. Eftava  neíie  tempo  efte  Rcy  de  Ti- 
dore muito  enfermo  ,  e  mandou  pedir  a  Dom 
Garcia  hum  Medico  pêra  o  curar,  el!e  lhe 
mandou  hum  boticário  ,  mas  aproveitou  pou- 
co j  porque  o  Rey  morrco  daquella  doen- 
ça 5  e  fafpeitou-fe  que  o  ajudaram  a  iíTo.  O 
que  fabido  por  D.  Garcia  ,  e  que  eílava  to- 
da a  Cidade  occupada  cm  feu  enterramen- 
to,  embarcou-fe  com  muita  preíTa  em  algu- 
mas corocoras  ,  e  foi  fobre  aquella  Ilha  , 
m.andando  diante  recado  aos  Regedores  que 
lhe  mandaíTem  a  artilheria  ,  fenão  que  ha- 
via por  quebrada  a  paz ,  e  que  alC  lho  no- 

ti- 


Década  IV*  Liv.  IIT.  Cap,  II.  177 

tifícaíTc.  Eílc  recado  lhes  dcrsm  ,  cftando  ain- 
da o  corpo  d'ElRey  por  enterrar ,  ao  que 
UiQ  refpondêram  que  logo  lha  entregariam. 
E  fazendo-lhes  a  notificação  Fernão  Baldaia  , 
que  a  iíTo  foi  ,  tornou-fe  a  D.  Garcia  que 
hia  por  caminho  ,  e  chegou  a  Tidore  de 
madruc:ada.  Como  todos  eíravam.  defcuida- 
dos  de  tal ,  defembarcou  D.  Garcia  com  to- 
dos os  due  levava  ,  e  foi  entrando  á  Cida- 
de,  e  pondo-lhe  fogo  por  algumas  partes, 
que  ateou  braviíHmamente.  Ao  eítrondo  ,  e 
terremoto  acordaram  todos  ,  nao  tendo  o 
tento  em  mais  que  em  falvar  fuás  peíToas , 
acoihendo-fe  pêra  os  matos,  ficando  os  nof- 
fos  fenhores  da  Cidade  ,  que  laquearam  á 
faa  vontade ,  achando  fete  peças  de  artilhe- 
ria  5  que  D.  Garcia  mandou  recolher ;  e  dei- 
xando a  Cidade  poíta  a  ferro  ,  e  a  fogo , 
tornou-fe  a  embarcar.  Ficaram  os  noíTos  delle 
negocio  com  o  credito  perdido  entre  todos 
aquelles  Reis  daquelle  Arquipélago  ,  dizen- 
do-fe  publicamente  que  não  guardávamos 
a  fé.  Pelo  que  defenderam  logo  pela  m^ór 
parte  daquellas  Ilhas  noíTo  commercio  ,  naa 
confentindo  os  noiTos  nellas.  Os  Tidores  , 
tanto  que  fe  embarcou  D.  Garcia  ,  tornáram- 
fe  pêra  a  fua Cidade,  que  acharam  feita  em 
cinza  ,  e  alevantáram  logo  por  Rey  Cachii 
Raxamira  ,  filho  d'ElRey  Almanfor  o  mor- 
to ,  que  por  fer  muito  moço  fe  lhe  deo  por 
Couto.  Tom,  LP.  L  M  tu- 


17B   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

tutor  a  Rade  Cachil ,  ficando  a  guerra  de- 
clarada coR-J  a  noiTa  fortaleza  ,  que  lhe  deo 
bem  de  trabalho  ,  con";o  pelo  decurib  da 
hiíloria  fe  verá. 

CAPITULO    III. 

T)o  que  acontece  o  a  Z).  "jorge  de  Me7?ezes 
72a  jornada  de  Maluco  ,  e  de  como  defcuhrio 
as  Ilhas  dos  Papiias  :  e  da  Armada  que  par- 
tio  de  CajlcUa  pcra  aquellus  libas  de  Ma- 
luco 5  e  da  derreta  que  levou  até  chegar  a 
ellas, 

PArtido  Dom  Jorge  de  Menezes  de  Ma- 
laca pêra  as  Ilhas  de  Mi^luco  ,  como 
atrás  temos  dito  ,  (que  foi  a  primeira  coufa  , 
em  que  proveo  Pêro  Mafcarenhas  ,  depois 
de  ter  recado  que  era  Governador  , )  foi  iè- 
guindo  fua  viagem  pela  via  deBorneo,  co- 
mo levava  por  regimento.  Chegando  ás  Ilhas 
do  Moro  íètenta  léguas  de  Ternate,  indo  de- 
inandar  á  terra  pêra  íurgir  ,  nao  achou  fun- 
do por  fer  tudo  á  roda  daquellas  Ilhas  mui 
alcantilado  ,  e  nao  fe  poder  iurgir  fenao  com 
os  proizes  em  terra ;  e  como  D.  Jorge  nao 
queria  vizinhar-ie  tanto  a  ella  ,  foi-fe  na  vol- 
ta do  mar.  Da  Ilha  foram  logo  viftos  ,  e 
fahíram  duas  almadias  ás  náos  ;  e  porque 
nao  fe  determinaram  ferem  Portuguezes  ,  ou 
Caílclhanos  ,  nao  fe  oufáram  a  chegar.  Dom 

Jor- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  III.  179 

Jorge  lhes  mandou  capear,  com  o  que  Jiu- 
ma  das  almadias  fe  arriícou  ,  c  chegou  a  bor- 
do. D.  Jorge  lhes  mandou  perguntar  pelo 
Capitão  de  Maluco  ,  e  pelo  cílado  em  que 
a  noíla  fortaleza  eílava  ,  de  que  lhe  nao  fou- 
beram  dar  razão  ,  e  por  anoitecer  fe  affaf- 
táram  com  alguns  pannos  ,  que  lhes  mandou 
dar  D.  Jorge  por  irem  contentes.  De  noite 
acalmou  o  vento  ,  ficando  os  noíTos  navios 
anhotos ;  porque  como  não  havia  fundo  pê- 
ra furgir  ,  nem  vento  pêra  governar,  e  as 
aguas  por  antre  aquellas  Ilhas  corriam  pêra 
o  Levante ,  como  a  pedra  da  mão  ,  foram 
levados  até  os  lançarem  fora  de  todas  as  Ilhas 
em  hum  golfo  de  mar  mui  grande  ,  onde 
lhes  deo  hum  temporal  mui  groiTo  ,  com 
que  foram  correndo  quaíi  perdidos  alguns 
dias  5  até  haverem  viíla  de  huma  terra  que 
lhes  pareceo  Ilha  ,  que  eftava  em  altura  de 
• . .  gráos  do  Norte  ,  e  indo-a  demandar  fo- 
ram furgir  perto ,  e  em  muito  bom  fundo. 
Logo  vieram  algumas  embarcações  a  elies , 
cm  que  vinham  alguns  homens  muito  pre- 
tos 5  e  de  cabellos  revoltos ,  como  os  Ca- 
fres dejalofo,  ou  com.o  os  do  Cabo  de  Boa 
Efperança  pêra  Moçambique ,  e  entrados  nas 
nãos  lhes  fizeram  os  noíTos  grandes  gazalha- 
dos  5  mas  não  houve  quem  os  entendeíFe ; 
mandando  com  elles  algumas  peíTcas  a  ter- 
ra n  fallar  com  o  feu  Rey ,  e  haver  o  que 

M  ii  eí- 


l8õ   AS  IA  DE  Diogo  de  Couto 

■cila  tinha  ,  e  acharam  EIRey  que  também 
tra  preto ,  como  os  outros ,  que  os  recebeo 
'bem  ,  faliando-lhe  por  acenos ,  c  viram  ater- 
ia abaílada  cie  mantimentos  ,  gados ,  e  gal- 
linhas  ,  que  os  nofíos  mandaram  refgatar  por 
pannos ,  e  por  calaim.  Vendo  D.  Jorge  que 
não  havia  monção  pêra  tornar  pêra  Malu- 
co 5  fenão  dalii  a  alguns  mezes ,  deixou-fe 
alíi  íicar  commutando  com  os  da  terra  tudo 
o  de  que  tinham  neceílidade  ,  achando  aquel- 
les  moradores  dalli  domeílicos  ,  pofto  que 
diziam  que  pela  terra  dentro  liavia  nações 
que  comiam  gentes.  Aqui  viram  os  noílbs 
alguns  dos  naturaes  ,  aíli  homens  ,  como  mu- 
lheres ,  tao  alvos  5  e  louros  como  Alemães  , 
e  perguntando  como  fe  chamavam  aquellas 
gentes  ,  diííeram  que  Papuas :  e  pelo  pouco 
conhecimento  que  enrao  tínhamos  daquella 
Terra ,  cuidaram  os  nofios  ferem  Ilhas ;  mas 
quanto  a  nós  pelo  que  depois  fe  veio  a  al- 
cançar ,  efta  terra  Jie  aquella  a  que  Marco 
Polo  Veneto  cham>a  Lochac  ,  que  diz  fer 
•riquiíFima  de  ouro  ,  que  diz  que  cílava  fe- 
tecentas  milhas  (que  sao  mui  perto  de  du- 
zentas léguas  noflas )  da  Jaoa  ,  e  a  poe 
da  outra  banda  do  Trópico  ,  e  diz  que  ao 
•derredor  eftavam  as  Ilhas  de  Sodur  ,  Pen- 
tan  5  Malay ur ,  e  outras  ,  e  do  que  delias  de- 
pois fe  foube  5  e  defcubrio  ,  em  outro  lugar 
to  diremos*  E  deixando  a  D.  Jorge  em  quan- 
to 


Década  IV.  Liv.  IIL  Cap.  IIL  i8i 

to  lhe  tarda  a  monção  ,  tornemos  ás  náo5 
dos  Caílelhanos  ,  de  c]ue  em  Ternate  anda- 
va fama ,  e  diremos  que  Armada  era  ,  e  o 
que  lhe  aconteceo  na  jornada.  Depois  de 
chegar  a  Hefpanha  aquclia  formofa  náo  Vi- 
toria ,  da  companhia  de  Fernão  de  Maga- 
lhães ,  dando  razão  ao  Emperador  Carlos 
V.  Máximo  (  que  já  governava  )  do  delcu- 
brimento  que  fizera  das  Ilhas  de  Makico  , 
fazendo-ihe  crer  ficarem  na  fua  demarcação  , 
encarecendo-lhe  as  riquezas  delias  ,  mandou 
logo  ordenar  no  porto  da  Corunha  outra 
Armada  de  íete  velas ,  de  que  deo  a  capi- 
tania a  Frei  Garcia  de  Loaíza  Fidalgo  Bií- 
cainho  ,  Commendador  de  S.  João.  EflaxAr- 
mada  deo  á  vela  vefpera  de  Sant-Iago  de 
mil  e  quinhentos  e  vinte  e  cinco  annos  :  lua 
nella  por  fota-Capitão  o  mefmo  João  Se- 
baftião  dei  Cano.  A  Armada  era  de  quatro 
náos ,  dous  galeões ,  e  hum  pataxo.  Os  Ca- 
pitães eram  Frei  Garcia  ,  João  Sebaftiáo  dei 
Cano ,  D.  Rodrigo  da  Cunha ,  e  Diogo  de 
Vera  :  eíles  hiam  nas  náos  ,  os  das  carave- 
las náo  foubemos.  Partidos  da  Corunha  ,  fo- 
ram tomar  a  Gomeira  ,  e  correndo  a  coda 
de  Guiné  ,  faltando-lhes  o  tempo  pêra  do- 
brar o  Cabo  de  Santo  Agoílinho  ,  por  con- 
felho  de  todos  determinou  o  General  de  fa- 
zer fua  derrota  pelo  Cabo  de  Boa  Efpcran- 
ça :   e  indo-o  demandar ,  encontraram  hum 

na- 


i82   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

navio  de  Portuguezes  ,  que  entre  algumas 
coufas  que  delles  íouberam  ,  foi ,  que  acha- 
ram huma  Ilha  chamada  S.  Mattheus ,  em 
que  fizeram  aguada  ,  e  acharam  finaes  de 
já  fer  povoada  em  algum  tempo  ,  porque 
havia  alli  muitas  larangeiras  ,  e  arvores  de 
efpinho  ,  gailinhas ,  raílo  de  porcos ,  e  em 
alguns  troncos  de  arvores  grandes  acharam 
letras  Portugaezas  ,  em  que  fe  moílrava  que 
havia  oitenta  e  íete  annos ,  que  já  alli  efti- 
veram  gentes  noíTas  ,  do  que  em  nenhuma 
outra  eícrirura  achámos  feito  memoria.  Em 
fim  largando  o  navio  ,  foram  feguindo  fua 
derrota  até  paíTarem  o  Cabo  de  Santo  Agof- 
tinho  :  tornaram  a  demandar  o  eílreito  de 
Magalhães,  porque  lhes  entrou  bom  vento; 
e  indo  correndo  a  cofta  ,  lhe  deo  hum  tem- 
po que  apartou  o  General  dos  outros  na- 
vios ,  que  foram  tomar  hum  rio  formofo  , 
c  grande  ,  a  que  mandaram  o  pataxo  que 
arvoraííe  fobre  a  fua  barra  huma  cruz  ,  e 
aíli  lhe  deram  o  nome  do  r/o  de  Santa  Cruz  : 
ao  pé  delia  deixaram  huma  panella  com  car- 
tas, em  que  contavam  a  jornada  que  fizeram 
até  li ,  pêra  o  feu  General  fe  alli  foíTe  ter , 
dizendo-lhe  que  o  hiam  efperar  ao  eftreito 
de  Magalhães.  Partidos  dalli  acharam  outro 
rio  5  a  que  puzeram  nome  de  Santo  Elefon- 
fo  ,  que  era  tamanho  que  cuidaram  fer  o 
eftreito  ^  e  mandando  João  Sebaftião  dei  Ca- 
no , 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  III.  183 

no  ,  ou  indo  elle  mefmo  a  vello  ,  deo  na 
boca  delle  em  fecco  ,  indo  em  Jium  batel , 
e  hum  parente  feu  em  outro  ,  e  fez  íinal  ás 
n:ios  que  hiam  commettondo  a  entrada  que 
tornaram  a  voltar  ,  e  Sebailiao  dei  Cano  5 
e  o  outro  paíllíram  grandes  trabalhos  até 
tornarem  ás  náos.  E  correndo  outra  vez  a 
coíla  adiante  dersm  com  o  ellreito ,  onde  fur- 
giram  ao  pôr  do  Sol ,  pêra  ao  outro  dia  com- 
metterem  a  entrada  ,  e  bafcarem  nelle  por- 
to pêra  efperarem  o  feu  General.  A  mefma 
noite  llies  deo  ham  tempo  mui  rijo  com 
que  o  pataxo  fe  metteo  em  hum  eíleiro  ,  e 
Joáo  Sebailiao  dei  Cano  indo  caíTando  mui- 
to ,  cortou  a  amarra  ,  e  deo  o  traquete  ;  mas 
foi  varar  tâo  perto  de  terra  ,  que  da  ceva- 
deira  faltaram  cinco  homens  nella  ,  e  mor- 
reram dezenove  affogados.  A  outra  náo  de 
Diogo  de  Vera  teve-íè  fobre  a  amarra  até 
paíTar  o  tempo ,  e  como  pode ,  deo  á  véla  , 
e  nunca  mais  appareceo.  D.Rodrigo  da  Cu- 
nha ,  Capitão  da  outra  mio,  pníTado  o  tem- 
po ,  deo  á  véla  ,  e  foi-fe  na  volta  de  Caftel- 
ía  ,  mas  logo  encontrou  o  General ,  e  com 
pouca  vontade  voltou  com  cWq  ,  e  embocan- 
do  o  eílreito  ,  viram  a  náo  de  Sebaftiao  dei 
Cano  perdida,  e  a  gente  em  terra  que  lhe 
fez  fmai ,  e  mandou  o  batel  a  bufcar  o  Ca- 
pitão y  e  a  todos  os  companheiros  mandou 
dizer  que  efperaíTem,  que  logo  os  mandaria 

buf- 


184   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

hiiícar,  porque  hia  demandar  algum  porto 
cm  que  pudeíTc  llirgir :  c  entrando  o  cftrci- 
to  ,  llirgio  da  banda  de  dentro  no  primeiro 
pou fo  que  achou  bom  ;  e  dalli  tornou  a 
•niandar  huma  caravela  (que  o  acompanhou 
fem.pre)  a  bufcar  a  gente  da  náo  perdida. 
Efta  caravela  tornou  a  íahir  fóra  do  eílrei- 
to  5  e  rccolheo  a  gente  toda  ,  e  voltando 
com  ella  ,  antes  de  entrar  oeílreito,  lhe  deo 
Jium  tempo  ,  com  que  defgarrou  a  outra 
cofia.  A  capitânia  caííbu  com  todas  as  an- 
coras paíTante  de  huma  légua  ,  tocando  mui- 
tas vezes  em  baixo  com  o  arfar ,  pelo  que 
abrio  ,  e  fez  tanta  agua ,  que  lhe  foi  força- 
do alijarem  m.uitas  coufas  ao  mar.  Frei  Gar- 
cia deLoaíza,  vendo  que  o  tempo  crefcia , 
íeceando  que  a  náo  fe  perde 'Te  ,  foi-fe  no 
batel  pêra  terra  ,  porque  era  perto  ,  e  o  mef- 
mo  fez  toda  a  mais  companhia ,  ficando  fó 
os  iBarinheiros.  Paflada  a  tormenta  tornou- 
fe  a  embarcar ,  e  fahio-fe  fóra  do  eílreito  , 
e  foi  tomar  o  rio  de  Santa  Cruz  ,  que  eíla- 
va  dcllc  cincoenta  léguas  ,  pêra  concertar 
as  náos  que  eílavam  deílroçadas ,  nas  marés 
que  alli  crefciam  ,  e  vafivam  fete  braças.  Dal- 
li mandou  D.  Rodrigo  da  Cunha  a  bufcar 
o  pataxo  5  que  achou  junto  da  náo  perdida, 
e  tomando-lh.e  a  gente  que  quiz  ,  nao  que- 
rendo mais  profeguir  naquella  jornada ,  tor- 
nou-fe  pêra  Caftelia ,  e  o  pataxo  fe  foi  pêra 

o  Ge- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  III.  185: 

o  General ,  e  lhe  deo  aqucllas  novas ,  por- 
que fabiam  fiia  dererniinaçao.  Concertadas 
as  náos ,  tornou  o  General  com  os  galeões  , 
e  pataxo  a  entrar  oeílreito  com  determina- 
ção de  invernar  no  meio  delle  ,  e  acudin- 
do-lhe  bom  tempo ,  fahio  fóra  delle ,  e  fen- 
do quatrocentas  léguas  da  cofta  lhe  deo  hum 
temporal  com  que  fe  perderam  os  galeões , 
e  o  pataxo  foi  tomar  a  nova  Hefpanha.  O 
General  foi  fó  feguindo  fua  derrota ,  e  por 
confelho  de  João  Sebaíliao  dei  Cano  paííoii 
a  Equinocial  ,  por  lhe  elle  dizer ,  que  em 
doze  gráos  eftavam  humas  Ilhas  mui  ricas 
de  ouro  ,  e  prata  :  e  indo-as  demandar  adoe- 
ceram muitos ,  e  faleceram  em  poucos  dias 
o  General  ,  e  o  João  Sebaíliao  dei  Cano , 
e  o  Piloto  5  e  Thefoureiro  ,  e  todos  morre- 
ram de  humas  nódoas  pretas  que  lhes  fahi- 
ram  pelas  pernas.  Os  que  ficaram  vivos  ele- 
geram por  Capitão  Toribio  Alonfo  Salazar , 
que  fe  tornou  a  raetter  de  baixo  da  linha  , 
e  faleceo  chegando  ás  Ilhas  das  Velas ,  que 
agora  chamam  dos  Ladroes.  Por  fua  mor- 
te houve  grande  alvoroço  fobre  a  capitania 
entre  Martim  Inhegues  de  Carquicios  Al- 
guazil  maior  da  Armada  ,  e  Fernão  de  Buf- 
tamente  Thefoureiro  da  náo  Santo  Efpirito  , 
a  perdida ,  de  que  foi  Capitão  João  Sebaf- 
tião ,  que  tinha  já  ido  a  Maluco  na  náo  Vi- 
toria ,  e  por  evitarem  contendwas ,  concerta- 
ram- 


i86   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ram-fe  que  ficaíTem  ambos  Capitães ,  e  man- 
dalTem  igualmente ,  até  chegarem  a  alguma 
das  Ilhas  de  Maluco,  onde  fe  determinaria 
quem  ficaria  fó  :  e  feguindo  fua  derrota  ,  fo- 
ram haver  viíla  de  Mandando  ,  onde  foi  Mar- 
tim  Inhegues  julgado  de  todos  por  Capitão  , 
que  também  era  Fidalgo  Bifcainho.  Marrim 
Inhegues  foi  logo  demandar  Maluco  ,  e  che- 
gando a  Cope  lugar  do  Morotay  no  Moro  , 
tomou  refrelco  ,  e  agua ,  dal  li  fe  paílbu  a 
outro  lugar  chamado  Camafo  ,  que  he  na 
Morotoja,  cujo  Sangage  era  vaflallo  deTi- 
dore.  Foi  ifto  no  próprio  tempo  que  Dom 
Jorge  de  Menezes  fe  adaftou  delias  ,  e  fe 
foi  defgarradcrrom  as  correntes  ,  e  todavia 
foi  vifto  dos  Caílelhanos ,  e  conheceram  fer 
a  náo  Portugueza  :  pelo  que  fe  foram  os 
Caílelhanos  mettendo  bem  dentro  no  golfo 
de  Camafo  ,  que  he  da  outra  banda  do  Le- 
vante da  Ilha  do  Moro ,  onde  furgíram.  A 
gente  da  terra  foi  á  náo  a  vifítar  o  Capitão  , 
e  o  levaram  com  todos  os  feus  pêra  terra  , 
e  os  agazalháram  bem  ,  pela  amizade  que 
fabiam  tinham  com  o  feu  Rey.  AUi  foube- 
ram  como  os  Portuguezes  tinham  fortaleza 
em  Ternate  ,  e  todas  as  mais  coufas  que  eram 
fuccedidas  até  então ,  e  da  guerra  que  Dom 
Garcia  fizera  ao  feu  Rey.  Os  Caílelhanos 
ufando  de  fua  natureza  ,  fe  lhes  offerecêram 
pêra  ajudar  o  feu  Rey  contra  os  Portugue- 
zes , 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  III.  187 

zes  ,  lançando  feus  defpechos  ,  promettcndo- 
ihes  de  os  comerem  todos  afiados.  Com  if- 
to  lhes  deram  os  da  terra  tudo  o  que  ha- 
viam mifter ,  e  não  lhes  queriam  tomar  di- 
nheiro ,  porque  eíTe  leria  o  intento  de  fuás 
promeíTas ,  que  bem  íabiam  elles  que  os  Por- 
tuguezes  eram  máos  de  aíTlir ,  e  peiores  de 
tragar.  Eílas  novas  deíla  náo  são  as  que 
deram  a  D.  Garcia  Henriques  ,  (como  atrás 
temos  dito,)  e  certiíicando-fe  ferem  Caíle- 
Ihanos  ,  defpedio  logo  Martim  Corrêa  ,  e 
com  elle  Diogo  da  Guerra  em  huma  coro- 
cora  mui  ligeira  ,  pêra  irem  ver  o  que  aquil- 
lo  era.  e  pêra  tomarem  lingua  da  terra.  Ef- 
tes  homens  foram  ter  a  hum  lucrar  de  Ca- 
mafo ,  onde  foram  certificados  da  verdade  , 
e  de  como  ficava  naquella  Cidade  aquella 
náo,  e  que  partiram  de  Hefpanha  fete  jun- 
tas ,  porque  fe  efperava  ,  e  aííi  o  afiirmavam 
os  Caílelhanos ,  e  fouberam  que  os  da  terra 
eftavam  com  elles  mui  foberbos ,  e  ufanos : 
com  iílo  fe  tornaram ,  e  deram  as  novas  a 
D.  Garcia  ,  que  com  muita  preíTa  armou  dous 
navios  de  remo ,  em  que  mandou  embarcar 
fetenta  Portuguezes ,  e  pedio  a  Cachil  Da- 
roez  5  que  fe  cmbarcaíTe  em  fuás  corocoras , 
como  logo  fez  em  dez  ,  ou  doze ,  e  defta 
Armada  fez  Capitão  mor  Manoel  Falcão, 
dando-lhe  por  regim.ento  ,  que  chegaíTem  á 
vifta  da  náo  ,  e  mandaíTem  a  ella  o  Ouvi- 
dor 


i8S   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

dor  que  comelles  mandou  embarcar,  pêra 
ir  fazer  ao  Capitão  hum  requerimento  que 
lhe  deo  por  efcrito ,  e  com  ilTo  huma  bre- 
ve carta  pêra  o  Capitão ,  e  que  não  queren- 
do defírir  a  coufa  alguma  ,  pelejaíTem  com 
ella  5  e  lhe  levaílem  todos  os  Caftelhanos 
prezos.  Manoel  Falcão  foi  feguindo  fua  jor- 
nada 5  e  ao  fahir  do  golfo  de  Camafo  en- 
controu anão,  e  mandou  a  ella  o  Ouvidor 
em  huma  corocora  pêra  ir  fazer  a  diligen- 
cia. Chegado  o  Ouvidor  a  bordo  da  náo 
entrou  dentro ,  e  foi  recebido  mui  honrada- 
mente de  Martim  Inhegues ,  a  quem  deo  a 
carta  que  levava ,  em  que  D.  Garcia  lhe  re- 
queria da  parte  doEmperador  Carlos  Qj.iin- 
to  ,  que  fe  foíTe  pêra  aquella  fortaleza  de 
Ternate ,  onde  o  agazalhariam  como  a  vaf- 
fallo  de  hum  Senhor  tão  parente ,  e  amigo 
d'ElRey  de  Portugal ,  e  que  dalli  fe  torna- 
ria pêra  Hefpanha ,  e  que  nao  quizeííe  an- 
dar por  aquellas  Ilhas  ,  que  eram  da  Coroa 
de  Portugal  ,  inquietando  a  paz  que  havia 
entre  aquelles  Reys  ,  e  com  iífo  lhe  fez  o 
Ouvidor  o  proteílo  ,  mandando  fazer  delle 
hum  auto  pelo  feu  Efcrivão.  Martim  Inhe- 
gues lhe  refpondeo  ,  que  aquellas  Ilhas  eram 
do  Emperador  feu  Senhor  ,  por  caberem  em 
fua  demarcação  ,  e  que  tinha  fobre  iíTo  ha- 
vido fentença  contra  ElRey  de  Portugal, 
pelo  que  requeria  a  elle  D.  Garcia ,  que  não 

fof- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  III.  189 

foíTe  elle  o  quebrantador  da  paz.  Feitos  os 
proreftos  de  parte  a  parte ,  teve  Martiin  Inhe- 
giics  muitos  cumprimentos  com  o  Ouvidor, 
que  notou  muito  devagar  a  náo  ,  e  a  gen-^ 
te  que  levava,  e  defpedindo-fe  delle  fc tor- 
nou pêra  Manoel  Falcão ,  a  quem  deo  con- 
ta do  que  paflara  com  Martim  Inhegues ,  e 
lhe  affirmou  que  a  náo  eílava  muito  forte , 
e  que  tinha  em  fi  trezentos  homens ,  e  mui^ 
ta  artilheria  ;  e  vendo  que  era  em  vão  com- 
mettella  5  torna ram-fe  pêra  Ternate  ,  e  infor- 
maram a  D.  Garcia  do  que  era  paliado.  A 
náo  foi  feu  caminho,  e  furgio  no  porto  de 
Tidore  dia  de  Janeiro  deíle  anno  em  que 
andamos  de  vinte  e  fete  ,  havendo  dous  me- 
zes  que  tinha  chegado  a  Camafo ,  onde  ef- 
teve  até  ElRey  de  Tidore  o  mandar  cha- 
mar. Logo  aquella  noite  poz  a  gente  ,  e  ar- 
tilheria em  terra  ,  a  que  o  ajudou  ElRey, 
que  o  feílejou  muito.  D.  Garcia  teve  logo 
vifta  da  náo  ,  e  mandou  a  mefma  Armada , 
pêra  que  lhe  foíTe  dar  huma  falva  ,  como 
fez  5  porque  chegando-fe  de  noite  perto  del- 
ia a  começaram  a  bater  fortemente,  matan- 
do-lhe  dentro  dous  homens :  e  ao  outro  dia 
também  continuaram  a  bateria ,  e  quatro  ar- 
reio mais,  fem  a  poderem  metter  no  fundo, 
por  fer  forte ,  pelo  que  fe  tornaram.  Mar- 
.tim  Inhegues  mandou  metter  a  náo  dentro 
do  arrecife  ,  como  fe  elles  foram ,  e  defenir 

bar- 


I 


1^0   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

barcou  tudo  em  terra ,  e  ordenou  com  mui- 
ta prclTa  dous  baluartes  de  pedra  ençoíTa  na 
fronteria  da  Cidade  ,  e  a  náo  pofta  em  meio 
com  íua  artilheria  ,  como  outro  baluarte, 
pêra  defensão  do  porto  ,  com  o  que  ficou 
bem  feguro.  D.  Garcia  não  deixou  de  con- 
tinuar com  feus  proieftos  ,  e  requerimentos , 
fobre  que  correram  recados  de  parte  a  par- 
te íobre  o  direito  daauellas  Ilhas  ,  que  ca- 
da hum  allegava  pelo  leu  Rey.  Alartim  Inhe- 
gucs  dizia  ,  que  Fernão  de  Magalhães  vaf- 
lallo  d'EiRe7  D.  Fernando  de  Caftella  def- 
cubríra  aquellas  Ilhas  ,  D.  Garcia  allegava , 
que  muito  antes  daquillo  foram  defcubertas 
por  António  de  Brito ,  e  que  o  Magalhães 
fora  alevantado  ,  e  que  os  Rcys  daquellas 
Ilhas  receberam  primeiro  nellas  os  Portu- 
guezes  ,  e  mandaram  requerer  a  ElRcy  de 
Portugal  5  que  mnndaíTe  fazer  fortaleza  em 
fuás  Ilhas  ,  e  aíTentar  commercio  cm  fuás 
terras  :  mandando  ElRey  de  Ternate ,  e  in- 
do em  peflba  o  de  Tidore  a  Amboino  buf- 
car  Francifco  Serrão ,  que  ai  li  eftava  perdi- 
do da  companhia  de  Lourenço  de  Brito  ,  e 
fobre  quem  o  agazalharia  ,  e  daria  em  ter- 
ra lugar  pêra  fortaleza  aos  Portuguezes ,  ti- 
veram muitos  defgoílos  hum  com  o  outro , 
requerendo-lhc  fempre  D.  Garcia  ,  que  fe 
foíle  pêra  aquella  fortaleza ,  e  que  lhe  daria 
hum  lugar  apartado ,  em  que  eíliveíTem  to- 
dos 


Década  IV,  Liv.  III.  Cap.  III.  191 

dos  á  fua  vontade  até  fer  tempo  de  fe  tor- 
narem ;  e  que  não  compraíTe  nenhum  cra- 
vo ,  nem  danaíTem  o  preço  que  nelle  efía- 
va  pofto  pelos  Officiaes  d'ElRcy  de  Portu- 
gal j  e  que  não  o  querendo  fazer ,  protes- 
tava por  todas  as  perdas  ,  e  damnos  que  diíTo 
refuItaíTcm.  Martim  Inhegues  também  fez 
feus  proteftos  ,  ficando  aíli  o  negocio  travado 
em  guerra  ,  e  deitaram  fuás  corocoras  ao  mar 
com  que  andavam  fazendo  feus  faltos.  Poucos 
dias  depois  deftes  derradeiros  proteftos  toma- 
ram duas  corocoras  deGeilolo ,  ehum,a  cham- 
pana  deTernate,  que  hia  carregada  de  cra- 
vo 5  e  mataram  hum  Portuguez  que  nella 
hia  5  e  alguns  Ternatezes.  Vendo-fe  os  Ti- 
dores  fcivorecidos  dos  Caílelhanos  ,  ( que 
'  lhes  faziam  caftellos  de  vento  ,  e  que  lhes 
fahíra  aquella  preza  bem  , )  armaram  fuás 
corocoras  ,  e  foram  dar  em  hum  lugar  d'El- 
Rey  deTernate  chamado  Gacca  ,  e  o  rouba- 
ram ,  e  queimaram  :  diílo  teve  logo  D.  Gar- 
cia rebate  ,  e  armou  algumas  corocoras  ,  em 
que  mandou  Martim  Corrêa  ,  e  indo  buC- 
car  os  Tidores  ,  deo  com  ellcs  ,  vindo-fe  re- 
colhendo com  a  preza  ,  e  inveftindo-os  os 
axorou  ,  e  abalroou ,  e  lhes  tomou  a  mor 
parte  das  corocoras  ,  e  da  preza  que  leva- 
vam. Aqui  fizeram  osTernates,  que  foram 
com  Martim  Corrêa  ,  grandes  cavalleriasj 
e  cruezas. 

CA- 


ip2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

CAPITULO     IV. 

J)e  como  Z).  Jorge  de  Menezes  chegou  a 
Maluco  ,  e  de  como  fez  tregoas  com  os 
Caflelhanos  ,  que  Jè  quebraram  logo  :  e 
de  como  faleceo  ElRey  Bayano  ,  e  Jucce- 
deo  feu  Irmão  Ayalo.  E  de  como  ElRey 
deLobu  matou  os  Fortuguezes  que  efta- 
'vam  em  feu  porto  ,  e  tomou  huma  galé 
for  engano. 

S  Caflelhanos  dando-lhcs  pouco  dos 
requerimentos  de  D.  Garcia ,  que  lhes 
mandou  fazer  por  muitas  vezes  ,  começaram 
a  refgatar  cravo  por  elTas  Ilhas  ,  danando 
p  antigo  preço  ,  e  fazendo-o  íubir  em  qua- 
tro vezes  o  dobro  ,  com  o  que  lhe  acudio 
todo  o  daquellas  Ilhas.  Diílo  foi  logo  Dom 
Garcia  avilado  ,  o  que  fentio  muito  :  e  por- 
que fe  lhe  não  acudiíTe  feria  deílruiçao  da 
fazenda  d'ElRey ,  e  do  feu  commercio  da- 
quellas Ilhas  5  mandou  negociar  algumas  em- 
barcações ,  e  pedio  a  Cachil  Darocz  que  o 
acompanhaíTe  nas  fuás  corocoras  ,  do  que 
í<i  çMt  nao  efcufou  ,  e  D.  Garcia  fe  embarcou 
com  cem  Portuguezes  ,  e  a  gente  de  Daroez  , 
e  foi  de  noite  demandar  o  porto  de  Tido- 
re  ,  e  furgio  a  tiro  de  bateria  da  náo ,  que 
logo  começou  a  bater  com  três  cameletes , 
^uc  levava  em  humas  embarcações  ^  que  or- 

de- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  IV.  193 

dcnou  á  maneira  de  barcaflas  com  fuás  man- 
tas ,  e  arrombadas.  Alli  eftiveram  três  dias 
fem  faxerem  mais  que  dar  na  náo  ,  desfa- 
zcndo-a  por  cima  toda,  e  fazendo-lhe  por 
baixo  alguns  rombos.  E  porque  fe  lhe  aca- 
baram as  munições ,  rccolhêram-fe  pêra  hu- 
ma  enceada  da  m.eíma  IJha  ,  em.  quanto  foí^ 
icm  buícar  outras ,  porque  D.  Garcia  logo 
mandou  com  muita  preíía.  Eílando  neíta  en- 
ceada 5  mandou  D.  Garcia  a  Martim,  Corrêa , 
e  a  Cachil  Daroez  ,  que  foíTem  queimar  hum 
lugar  de  Mouros  ,  que  eílava  íobre  hum  te- 
zo  5  aonde  Marti m  Inhegues  mandou  por 
alguns  Caílelhanos  a  rogo  d'ElRey  ,  por- 
que fe  receou  daquillo.  Partidos  elles  pêra 
o  lugar  ,  deram  nelle  huma  miadrugada  ,  e 
o  queimaram  ,  e  aíToláram.  Os  Caílelhanos 
em  fentindo  os  noílbs  fahíram-íe  fói*a  do  lu- 
gar, e  embrenháram-fe  em  hum  mato  per- 
to ,  donde  ao  fahir  dos  noíTos  do  lugar  lhes 
atiraram  muitos  tiros  ,  de  que  hum  quadre- 
lo  deo  a  Martim  Corrêa  abaixo  da  orelha , 
de  que  cahio  como  morro  ,  e  foi  recolhi- 
do :  D.  Garcia  defgoílofo  recolheo-fe.  Os 
Caftelhanos  ficaram  tao  ufanos  ,  e  foberbos  , 
que  diziam  aos  da  terra  ,  que  os  Portugue- 
2es  fugiram  delles ,  e  que  não  eílariam  na- 
quella  fortaleza  mais  que  em  quanto  elles 
quizeffem  :  e  todavia  a  Villa  em  que  elles 
citavam  ficou  aíTolada  ,  e  a  náo  da  bateria 
Couto,  Tom.  L  P.  L  N  tão 


194  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

tão  aberta ,  e  deílroçada  que  fe  foi  ao  fun- 
do :  o  que  elles  fcntíram  muito  ,  por  lhe 
não  ficar  outro  navio  ,  c  perderam  o  orgu- 
lho com  que  cila  vem  ,  e  ficaram  efperando 
por  recado  de  Hcfpanlia.  D.  Garcia  Henri- 
ques negociou  hum.  junco  ,  em  que  mandou 
Martim  Corrêa  ,  e  'Manoel  Lobo  a  Mala- 
ca a  pedirem  foccorro  contra  os  Caílelha- 
nos  5  que  partiram  em  Janeiro  do  anno  de 
vinte  e  fete  ,  e  logo  o  Maio  feguinte  che- 
gou áquclla  fortaleza  D.  Jorge  de  Menezes 
dos  Papiías  onde  o  deixámos  ,  que  trazia 
muito  pouca  gente  ,  por  lhe  morrer  a  mor 
parte  por  aquellas  Ilhas  por  onde  invernou. 
D.  Garcia  lhe  entregou  a  forialeza.  Tanto 
que  Martim  Inhegues  foube  de  fua  chega- 
da o  mandou  vifitar  ,  e  a  voltas  diíTo  lhe 
mandou  fazer  queixume  de  D.  Garcia,  que 
nunca  quizera  com  elle  fenao  guerra  ,  e  que 
lhe  mettêra  a  fua  náo  no  fundo  :  pedindo- 
Ihe  quizeíTe  correr  com  elle  em  amizade, 
pois  eram  Chriílacs  ,  e  quaíi  naturaes  ,  e 
vaíTallos  de  dous  Reis  tão  amigos  ,  e  pa- 
rentes. D.Jorge  lhe  mandou  dizer  que  fol- 
gava muiro  de  ter  chegado  a  tal  tempo , 
porque  efpcrava  de  o  íervir  ,  que  lhe  pe- 
dia ,  que  pois  eílava  fem  náo :  que  fe  fof- 
fe  pêra  aquella  fortaleza  ,  onde  o  agazalha- 
fia ,  e  ferviria  ,  e  lhe  daria  embarcação  pê- 
ra fe  irem  pêra  a  nova  Hefpanha,  ou  pêra 

Caf- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  IV.  i^j 

Caílella.  A  iilo  não  defino  clle  nada:  o  que 
vifto  por  D.  Jorge ,  mandou-lhe  fazer  pro- 
teicos 5  e  requerimentos  pelo  Alcaide  mor , 
na  fórma  dos  que  lhe  D.  Garcia  tinha  fei- 
tos :  e  depois  de  paílar  era  muitos  recados 
de  parte  a  parte ,  vieram  a  concluir  em  tre- 
goas ,  que  fe  aíTentáram  até  lhe  vir  recado 
de  Portugal  ,  e  de  Hefpanha  :  e  fempre  os 
Caílelhancs  fe  paíláram  pêra  a  fortaleza,  fe 
ElRey  de  l^idore  lho  não  efcorvára.  Du- 
raram eftas  tregoas  pouco  ,  porque  logo  fe 
quebraram.  Neíle  tempo  falcceo  ElRey  Bar- 
yano  ,  que  eftavn  reteudo  na  noffa  fortale- 
za ,  e  eftando  já  pêra  morrer  ,  lhe  deo  o 
Capitão  licença  pêra  fe  ir  pcra  fua  caía  ,  on- 
de logo  faleceo  ,  e  o  povo  alevantou  por 
Rey  Cachii  Dayalo  feu  Irmão  ,  que  D.  Jor- 
ge também  recoiheo  na  fortaleza  j  e  como 
neílas  exéquias  fúnebres  fazem  eftes  grandes 
exceílbs  ,  c  duram  muitos  dias  ,  ajuntando- 
fe  a  eílas  muita  gente  ,  faltaram  pêra  iílo 
mantimentos,  e  Cachii  Daroez  Regedor  do 
Reyno  mandou  ao  Aloro  algumas  embarca- 
ções a  bufcallos.  Vindo  eftes  navios  de  lá, 
lhes  fahio  Cachii  Rade  Regedor  de  Tido- 
re ,  e  as  tomou ,  e  cativou  todas  as  peíToas 
que  nellas  vinham.  Tanto  que  ifto  fe  fou-- 
be ,  determinou  Cachii  Daroez  de  fe  defaf- 
frontar  ,  e  pedio  ao  Capitão  D.  Jorg^  al- 
guma gente  que  lhe  deo :  e  partindo  huma 

JN  ii  noi- 


196  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

noite  com  huma  boa  Armada ,  chegaram  a 
Tidore  de  madrugada  ,  e  defembarcáram  em 
huma  parte  fóra  dos  fortes  dos  Caíleihanos  , 
e  deram  na  Cidade ,  a  que  puzeram  fogo , 
em  que  ardeo  a  m.ór  parte  ,  fem  os  Caíle- 
ihanos lhe  poderem  valer  ,  e  os  noíTos  fe 
recolheram  muito  a  feu  falvo  :  com  iílo  fi- 
caram quebradas  as  tregoas  ,  e  não  por  culpa 
dos  noíTos  ,  (como  dizem  alguns  Eícritcres 
Hefpanhoes  5)  e  deixallos-hemos  aqui,  e  da- 
remos conta  das  coufas  que  neíle  tempo  fuc- 
cedêram  em  Malaca.  ElRey  de  Lobu  na 
cofta  de  Çamatra  era  hum  Mouro  ,  que  cor- 
ria em  grande  amizade  comi  os  Capitães  de 
Malaca ,  e  de  fua  terra  hiam  áquelia  forta- 
leza comprar  ,  e  vender  ;  e  o  meíino  faziam 
os  mercadores  Portuguezes  a  Lobu  ,  fem 
nunca  nelle  ,  nem  nos  feus  acharem  engano  , 
nem  fallidade.  Succedeo  neíte  mefmo  tem^- 
po ,  depois  de  Pêro  Mafcarenhas  embarca- 
do pêra  Goa  ,  ir  áquelle  porto  hum  navio 
de  Portuguezes  a  fazer  feu  refgafte ,  os  da 
terra  ,  ou  folTe  por  cubica  ,  ou  pelo  que  quer 
que  foíTe ,  mataram  todos  os  que  hiam  nel- 
le. Difto  foi  Jorge  Cabral  Capitão  de  Ma- 
laca logo  avifado  ,  e  querendo  tomar  fatis- 
fação  daquelle  negocio ,  mandou  Álvaro  de 
Brito  por  Capitão  de  huma  galé  ,  com  fe- 
tenta  homens ,  pêra  fe  ir  pôr  fobre  aquelle 
porto  ,    c  tomar  todas  as  coufas  que  íahiC- 

fem  5 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  IV.  197 

fem  5  e  entraííem  nclle.  Efta  galé  foi  a  Lo- 
bu  ,  onde  os  da  terra  mataram  todos  os  Por- 
tiiguezes  delia ,  e  a  tomaram  ,  fem  fc  faber 
o  como.  Eílas  novas  foram  a  Malaca ,  que 
Jorge  Cabral  fentio  muito  ,  aíTi  pela  perda  j 
como  pela  afrronta  ;  mas  diífimulou  por  não 
ter  navios  ,  nem  gente  pêra  fe  ir  fatisfazer. 
Eftando  com  eíla  mágoa,  chegou  poucos  dias 
depois  ao  porto  de  Malaca  António  de  Bri- 
to ,  que  vinha  de  Banda ,  como  atrás  diíTe- 
mos ,  (poílo  que  Caílanheda  diz  que  era  Mar- 
tim.  Corrêa  ,  o  que  foi  erro  ,  porque  iílo  fuc- 
ccdeo  no  tempo  em  que  elle  eftava  ferido 
em  Maluco  do  quadrelo  ,  e  António  de  Bri- 
to deixamo-lo  partido  de  Banda.  )  Efte  Fi- 
dalgo foi  bem  recebido  de  Jorge  Cabral , 
que  eílava  com  a  mágoa  frefca  ,  e  lhe  pe- 
dio  quizeíTe  fatisfazer  aquella  aíironta  ,  o 
que  CiIq  acceitou  de  boa  vontade  ,  e  arman- 
do algumas  lancharas  ,  mandcfwi  em.barcar 
déíTa  pouca  gentQ  que  havia ,  e  com  a  que 
António  de  Brito  trazia  prefez  cento  e  vin- 
te foldados  5  e  fazendo-fe  á  vela  atravelTou 
a  outra  cofta  de  noite  ,  e  foi  demandar  o 
porto  de  Lobu  ,  fem  delle  terem  viíla  da 
terra.  E  fendo  paíTado  o  quarto  da  Modor- 
ra 5  embarcou-fe  nos  navios  ligeiros ,  por- 
que hia  na  fua  náo  ,  e  entrou  pelo  rio  ,  e 
fem  fer  fentido  defembarcou  na  Cidade, 
inandando-lhe  primeiro, que  tudo  pôr  o  fo- 
go 


198  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

go  por  algumas  partes;  e  como  era  de  ma- 
deira ,  c  palha  ,  ateou-le  em  toda  com  tao 
grande  cílrondo  ,  e  terremoto  ,  que  foi  cou- 
fa  efpantoía.  Como  ifto  tom.ou  todos  repou- 
fando  5  e  defcuidados  5  nao-fizeram  mais  que 
faltar  fora  das  camas ,  e  fugir  pêra  as  ruas , 
onde  acharam  os  noíTos  ,  que  não  faziam 
mais  que  matar  ,  e  andar,  nao  perdoando 
a  coufa  alguma  ,  fbizendo  tamanha  dedrui- 
ção  ,  e  tomando  tao  cruel  vingança  da  af- 
fronta  paííada  ,  que  ficou  perpetuamente  por 
memoria  naquella  Cidade.  Depois  de  dei- 
xarem tudo  poílo  a  ferro  ,  e  a  fogo  ,  em- 
barcáram-fe  muito  á  fua  vontade  ,  e  toma- 
ram a  galé  5  que  eftava  no  rio  com  toda 
fua  artilheria  ,  e  outras  muitas  embarcações  , 
e  pondo  o  fogo  a  outra  cópia  delias  ,  que 
eftavam  em  eíialeiro  ,  fe  foram  pêra  Ma- 
laca 5  onde  foram  recebidos  com  triunfo. 
Jorge  Cabr.f!  fabendo  de  António  de  Bri- 
to do  eitndo  em  que  Aíaluco  eíiava  ,  def- 
pedio  logo  duas  navetas  ,  e  hum  junco 
cheios  de  mantimentos  ,  e  munições  ,  e  dous 
mil  cruzados  em  roupas  ,  e  cem  homens 
Porruguczes  pêra  irem  de  foccorro.  A  ca- 
pitania deílas  velas  deo  a  hum  Fidalgo  cha- 
mado Gonçalo  Gomes  de  Azevedo.  Eíle 
foccorro  partio  na  entrada  de  Janeiro  de 
vinte  e  fete  ,  quafi  no  mefmo  tempo  que 
de  Maluco  partio  Martim  Corrêa  a  pedir 

íbc- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  V.  199 

foccorro ,   e   da  jornada   de  ambos  adiante 
daremos  razão. 

CAPITULO     V. 

De  como  D.  Simão  de  Menezes  fohou  Fe- 
ro Ma  fc  are  nhãs  :  e  dos  requerimentos  que 
771  andou  fazer  a  Lopo  Vaz  :  e  da  Arma- 
da que  ejie  anno  de  vinte  e  fete  partio 
de  Portugal:  e  de  como  duas  nãos  delia 
Je  perderam  na  liba  de  S,  Lourenço. 

^  I  "i  Ornando  a  continuar  com  as  coufts  dos 
i  dous  Governadores  ,  que  deixámos  com 
a  refpoíla  que  Lopo  Vaz  deo  aos  requeri- 
menios  de  Pêro  Mafcarenhas  ,  com  que  che- 
gou Me  m  Vaz  a  Cananor,  e  tanto  que  foi 
viíla  por  Pêro  Mafcarcnhr.s  ,  e  que  ieo  as 
cartas  dos  Fidalgos  que  ficavam  prezos  ,  bem 
vio  que  Lopo  Vaz  queria  levar  aquelle  ne- 
gocio por  força  ,  e  ajuntando-fe  com  Dom 
Sim.ao  5  mandou  chamar  o  Feitor,  Efcri- 
váes ,  e  mais  OlEciaes ,  e  os  cafados  ,  e  pe- 
rante todos  fez  Pêro  Alafcarenhas  hum  pro- 
teílo  a  D.  Simão ,  mandando-lhe  ler  os  que 
mandara  fazer  a  Lopo  Vaz  ,  e  a  refpoíla 
que  deo  a  elles ,  e  mandou  a  Mem  Vaz  que 
recitaíTe  alli  tudo  o  que  paíTára  ,  e  o  modo 
de  como  fora  a  prizão  daquelles  Fidalgos. 
Depois  de  tudo  ifto  notificado  ,  lhe  reque- 
reu da  parte  d^ElRey ,  que  pois  Lopo  Vaz 

fe 


2jo  ASIA  de  Diogo  de  Couto 

lè  não  queria  pôr  com  elJe  a  direito ,  antes 
moftrava  ular  de  força  ,  que  o  reconhecei^ 
íem  a  cUq  Fero  Malcarenhas  por  Governa- 
dor da  Índia  ,  conforme  áquclia  fiiccefsao 
d'ElRey  ,  e  auto  da  poíTe ,  que  fora  dada 
naquella  fortaleza  ,  mandando-lhe  ler  tudo 
novamente  ,  e  que  pois  Lopo  Vaz  não  que- 
ria juftiça  ,  que  pêra  iíTo  tinha  ElRcy  os 
Fidalgos  como  eile  na  índia,  pêra  não  con- 
fentirem  coufas  tanto  contra  feu  íerviço. 
D.  Simão  ficou  de  todo  efcandalizado  do 
modo  de  Lopo  Vaz  ,  c  logo  mandou  tirar 
os  ferros  a  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  o  levou 
á  Igreja  ,  e  pre lente  o  povo  todo  mandou 
ler  lua  íucceísão ,  em  que  elle  fuccedeo  por 
morte  de  D.  Henrique  de  Menezes  ,  e  o 
auto  da  entrega  da  governança ,  que  foi  fei- 
ta a  Lopo  Vaz  até  fua  vinda  de  Alalaca  , 
e  todos  os  mais  aue  foram  feitos  ,  e  das 
reíiílencias  que  lhe  Affcnfo  Mexia  fez  em 
Cociíim  ,  e  todas  as  mais  coufas  paíTadas 
até  aquelle  dia.  Depois  de  tudo  lido ,  diiTe 
Pêro  Mafcarenhas  alto  ,  que  todos  ouvi- 
ram ;  ))  Tudo  aquillo  ,  Senhores ,  vos  foi 
))  notificado  ,  pêra  que  íaibais  quão  injufta- 
»  miente  fui  injuriado  ,  prezo ,  e  maltrata- 
))  do  5  como  le  eu  fora  algum  malfeitor ,  e 
»  que  quizera  entregar  a  índia  aos  Mouros , 
»  fobre  a  mercê  que  me  fez  ElRey  da  go- 
»  vernança  da  índia  ,  pelos  muitos ,  e  mui 

D  grau- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  V.  2or 

))  grandes  ferviços  que  nella  ,  e  cm  outras 
))  partes  lhe  tenho  feitos  ;  e  agora  por  re- 
))  mate  de  todos  ,  com  lhes  fegurar  Mala- 
»  ca  com  toda  a  tomada  de  Bintão  ,  cui- 
))  dando  que  vinha  receber  o  galardão  del- 
))  les  ,  fui  eípancado  de  AfFonib  Mexia , 
))  prezo  em  ferros  de  Lopo  Vaz,  coufa  tão 
))  fea  ,  que  até  os  Mouros  ,  e  Gentios  de 
))  todo  o  Oriente  fe  efcandalizam  diíTo.  Af- 
»  fonfo  Mexia ,  que  por  razão  de  feu  oíli- 
»  cio  era  obrigado  a  favorecer  o  íerviço 
))  d'ElRey  ,  e  não  confentir  a  Lopo  Vaz 
»  fazer-me  tamanha  força  ,  o  fez  tanto  ao 
))  contrario  ,  que  como  meu  inimigo  capi- 
»  tal  ordio  todas  eítas  diíTensões  ,  com  que- 
»  rer  dar  entendimento  á  carta  d'ElRey  , 
»  diíFerente  do  que  era  fua  tenção  ,  e  tem 
))  com  iíTo  poíla  a  índia  em  bandos  ,  e  di- 
»  visões  3  e  em  perigo  de  fe  perder ;  e  Lo- 
))  po  Vaz  o  ajuda  por  fua  parte  em  fe  não 
»  querer  pôr  comigo  a  direito  ,  e  por  não 
))  ir  a  requerer  minha  juíliça  (por  faber  que 
»  a  tenho)  me  impedio  a  entrada  de  Goa , 
))  mandando-me  prezo  em  ferros  ,  como 
))  viíles  ,  pêra  efta  fortaleza  ,  como  fe  eu 
))  pretendera  entregar  o  eílado  da  índia  ao 
))  Turco  5  e  publicamente  diz  que  por  ar- 
))  mas  fe  ha  de  fuftentar  naquelle  lugar,  e 
))  aíTi  parece  que  quer  nellas  pôr  fua  juíii- 
»  ça  5  pois  prende ,  e  maltrata  a  todos ,  que 

»  por 


202  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

»  por  minha  parte  lha  requerem  :  e  agora 
))  com  a  prizáo  daquelles  Fidalgos  ,  que 
»  são  os  principaes  que  ElRey"  tem  na  In- 
))  dia ,  ficou  tão  ufano  ,  que  fegundo  tenho 
))  por  cartas  5  eftá  apoítado  a  vir  cercar  eC- 
))  ta  fortaleza  ,  e  prender  o  íenhor  D.  Si- 
))  mão ,  que  a  mim  já  o  tem  feito  em  tem- 
»  po  que  ha  tão  certas  novas  de  galés  de 
»  Rumes.  Todas  eílas  coufas  são  mui  cla- 
yt  ros  íinaes  de  homem  alevantado  ,  e  que 
»  lhe  dá  pouco ,  aíli  da  Provisão  d'£lRey , 
3)  como  de  tão  honrados  vaíTalIos  ,  como 
»  tem  neíle  Eítado  ;  e  a  todos  os  que  não 
yi  são  feus  parentes  ,  e  criados  ,  parece  mai 
))  o  modo  de  como  procede  neíle  negocio. 
»  Pelo  que  ,  Senhores  ,  vos  requeiro  a  to- 
:»  dos  os  que  prefentes  eftais ,  e  de  novo  o 
y)  torno  a  fazer  ao  Senhor  Capitão  ,  e  Of- 
»  íiciaes  dajuftiça,  c  fazenda  d'ERley ,  que 
»  vifta  a  contumácia  de  Lopo  Vaz  ,  e  co- 
5)  mo  quer  ufar  de  força ,  e  não  de  juíliça , 
»  ( pois  trabalha  tanto  por  eu  não  chegar 
)>  com  elle  a  direito  fobre  a  governança 
5)  da  índia  ,  que  ElRey  me  tem  dado  pri- 
))  mci';o  que  a  elle ,  )  que  todos  me  hajais 
))  por  voílb  Governador  ,  c  me  entregueis 
))  a  índia  por  voífa  parte  ,  pois  todos  já 
^)  me  obedeceftes  ,  pêra  que  com  efte  fa- 
))  vor ,  e  com  outros  que  elpero  poíTa  conC- 
»  tranger   a  Lopo  Vaz  a   íe  pôr  comigo  ^ 

»   dl- 


Década  IV.  Liv.  IIL  Cap.  V.  203 

»  direito  ,  pêra  que  fique  a  governança  a 
»  cuja  for  5  porque  nao  pretendo  outra  cou- 
»  fa  mais ,  que  paz ,  c  quietação  da  índia , 
»  porque  fe  não  perca  vindo  a  dlà  a  Ar- 
»  mada  dos  Turcos.  E  torno  de  novo  a 
»  requerer  ,  e  a  vos  notificar,  que  confin- 
»  tais  no  que  vos  peço  ;  e  quando  nao  , 
»  protefto  d^ElRey  vo-Jo  eílranhar  ,  e  de 
»  llie  dardes  conta  dos  males  que  fuccede- 
))  rem ,  e  de  haver  por  voíTas  fazendas  to- 
»  das  as  perdas,  e  damnos  que  diíTo  rece- 
»  ber.  De  tudo  ifto  que  teníio  dito  vós  Ta- 
))  belliáo  me  dareis  hum  eílromento  com 
»  luas  refpoílas  ,  ou  fem  ellas ,  e  calou-íe.  » 
Todos  os  que  prefentes  eftavam  a  huina 
voz  diíTeram ,  que  nao  tinha  neceílldade  de 
coufa  alguma  ,  que  elles  o  conheciam  pjr 
feu  Governador ,  e  que  como  a  tal  eílavam 
preíles  pcra  lhe  obedecerem  ;  e  logo  íe  fez 
hum  auto  diíTo  ,  em  que  todos  fe  aílináram  , 
e  D.  Simão  de  Menezes  o  aíTentou  na  ca- 
deira ,  e  Jhe  deo  a  menagem  da  fortaleza 
em  fuás  mãos ,  como  a  Governador  da  ín- 
dia ,  em  nome  de  ElRey  de  Portugal ,  de 
que  tudo  fe  fizeram  papeis  ,  e  o  Governa- 
dor fe  agazalhou  na  fortaleza  com  D.  Si- 
mão ,  correndo  com  as  coufas  como  Go- 
vernador. E  poílo  que  o  Caftanheda  nao 
declara  fe  ElRey  de  Cananor  o  houve  por 
Governador  ,   e  o  tratou  ,   e  viíitou  como 

ef- 


204  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

efle  5   quanto  a  nós  D.  Simão  lho  fez  pri- 
irieiro    a  faber ,   como   o  fazia    a  rodas   as 
coufas  que  fuccediam  ,    pela    pontualidade 
com  que  corriam  com  elle  em  amizade.  As 
novas  difto  chegaram  logo  a  Cochim  ,  que 
caufáram  em  todos  grande  alvoroço ,  e  Af- 
fonfo  Mexia  ficou  fobre faltado  ,    porque  já 
lhe  nao   vinha  bem   governar  Pêro  Mafca- 
renhas   pelas  atfrontas   que    lhe  tinha  feito  , 
de  que   receava  que    fe    vingaíle.    O  verão 
entrou  logo  ,   e  de  Cochim  ,   e  Couláo  Ce 
vieram    pêra  Pêro  Mafcarenhas    alguns  Ca- 
pitães de  navios  ,   e  outras  muitas  pcíToas , 
e  lhe  deram  a  obediência ,    com  o  que  elle 
íicou   com  mais  confiança    de  Lopo  Vaz  fe 
pôr  com  elle  a  direito ;  e  quando  por  aqui 
não  pudeíTe  levar  efte  negocio  ao  cabo ,  ha- 
veria que  não  era  Deos  fervido  diíTo ,  e  tra- 
tou de  não   lhe  ficar  coufa  alguma   por  fa- 
zer.   E  porque   da  carta   de  Chriílovão    de 
Soufa  ( que    atrás    dillemos )  cntendeo   que 
liavia  fua  prizao    por  injufta  ,   quiz  dar-lhe 
conta  do  eftado  em  que  ficava  ,  pêra  ver  fc 
o  podia  grangear  pêra   o  ter   de  fua  parte ; 
porque   como   era  hum    dos  principaes  Fi- 
dalgos da  índia  ,    muito  aparentado ,   e  ri- 
co ,   e  eílava   certo    penderem  todos   á  fua 
parte   delle  ,   com    o  que  ficaria  fendo  fua 
juíliça  mais  certa  ,    logo  defpedio  hum  na- 
vio ligeiro  pêra  Chaul  ,   em  que  foi  Fran- 

cit 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  V.  205' 

cifco  Mendes  de  Valconcellos  com  cartas 
pêra  eUc  ,  e  procurações  baftantes  pêra  o 
que  foííe  neccíTario ,  e  os  traslados  dos  au- 
tos de  como  ficava  obedecido  por  Gover- 
nador ,  pedindo-lhe  que  requereíTe  a  Lopo 
Vaz  ,  que  íe  puzeíTe  com  eJle  a  direito ,  e 
quando  o  recufaíTe  ,  que  lhe  obedeceíTe  a 
dic  como  tinJia  feito  D.  Simão  ,  pois  elle 
era  o  que  queria  juíliça  pêra  paz  ,  e  foce- 
go  de  toda  a  índia  :  e  mandou  outro  re- 
querimento a  Lopo  Vaz ,  aíli  por  fua  par- 
te ,  como  pela  de  D.  Simão ,  em  que  lhe 
requeriam  íoltaíTe  os  Fidalgos  que  tinha  pre- 
zos  5  efcrevendo  a  todos  cartas  de  oífereci- 
mentos ,  e  eíperanças  de  cedo  ferem  foltos. 
Francifco  Mendes  chegou  a  Goa  ,  e  deo  os 
requerim.entcs  que  levava  na  mão  do  Se- 
cretario 5  e  as  cartas  aos  Fidalgos.  O  Se- 
cretario levou  os  papeis  a  Lopo  Vaz  ,  e 
por  clles  foube  com.o  Pêro  Mafcarenhas 
ficava  folto ,  e  obedecido  por  Governador , 
e  bravejando  fobre  iíTo  ,  cahindo  no  erro 
que  fizera  em  o  confiar  de  ninguém  ,  re- 
ceando que  lhe  entraífe  hum  dia  de  fupito 
em  Goa  ,  o  que  feria  fua  perdição  ,  porque 
fabia  de  certo,  que  em  pondo  alli  os  pés, 
lhe  haviam  de  acudir  todos  os  Fidalgos. 
Pelo  que  defpedio  Sim^ão  de  Mello  em  hu- 
ma  galeota  ,  e  hum  bargantim  pcra  fe  ir 
pôr  em  Goa  a  velha  ^   porque  não  entraífe 

por 


'2o6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

poraquella  barra.  Era  iílo  ainda  entrada  de 
Agoílo  ,  e  poucos  dias  logo  depois  chega- 
ram á  barra  as  duas  náos  da  invernada  do 
anno  paíTado ,  de  que  eram  Capitães  Vicen- 
te Gil  5  e  António  de  Abreu ,  que  lurgíram 
aos  dezefeis  daquelJe  mez,  e  deíembarcan- 
do  foram  ao  Governador  ,  que  llies  deo 
conta  das  coufas  dantre  ú\q  ,  e  Pêro  Maf- 
carenhas ,  e  lhes  moílrou  as  fuccefsoes ,  aíll 
humas  como  outras  ,  e  todos  os  mais  pa- 
peis 5  fobre  o  que  lhes  pedio  íeus  parece- 
res ,  rogando-lhes ,  que  livremente  lhes  dií^ 
feííem  le  era  por  virtude  daqucllas  Provi- 
sões verdadeiro  Governador  da  índia  ;  e 
não  fe  contentando  com  aquillo  ,  lhes  deo 
juramento  dos  Santos  Evangelhos.  Os  ou- 
tros como  não  tinham  mais  informação, 
que  a  que  lhe  elíe  mefmo  deo  ,  e  os  to- 
rnou depreíTa  ,  pêra  que  logo  lhes  rcfpon- 
deífem.  ,  diíTeram  ,  que  pelo  que  lhes  tinha 
dito ,  e  por  aquelles  papeis ,  cllava  de  mui- 
to boa  poííe.  Diílo  mandou  fazer  hum  ter- 
mo 5  em  que  ambos  fe  aíhnáram.  PaíTado 
ifto ,  aos  féis  de  Setembro  chegaram  á  bar- 
ra duas  náos  do  Reyno  ,  de  cinco  que  ti- 
nham partido  ,  de  que  era  Capitão  mor 
Manoel  de  Lacerda ,  que  por  culpa  do  feu 
Piloto  varou  na  Ilha  de  S.  Lourenço  >  e  o 
mefmo  fez  outra  náo  que  o  feguia ,  de  que 
era  Capitão  Aleixo  de  Abreu,    que  ambas 

jun- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  V.  207 

juntas  vararam  na  Bahia  de  Sant-lago  ,  que 
jaz  da  banda  do  Poncnte  em  vinte  gráos  e 
meio  ,  e  foi  em  parte  que  fe  falváram  to- 
dos em  terra  ;  e  por  fe  fegurarem  da  gen- 
te delia  5  ordenaram  humas  tranqueiras ,  em 
que  fe  recolheram  com  algumas  armas  que 
falváram  ,  e  com  as  coufas  que  tiraram  das 
náos  ,  e  que  depois  o  mar  trouxe  a  terra , 
com  o  que  fe  ficaram  fuílentando  miferavel- 
mente  ,  commutando  com  os  da  terra  (que 
era  m.uito  falta  de  mantimentos  naqueila 
parte)  algumas  coufas  poucas,  deixando-íè 
ficar  alli  efperando  que  paíTaíTe  alguma  náo 
a  que  fízcílem  final  pêra  os  tomar.  Deixal- 
]os-hemos  aqui  até  tornarmos  a  elles.  Das 
outras  duas  náos  ,  que  chegaram  á  barra  , 
eram  Capitães  Balthnzar  da  Silva  ,  e  Gas- 
par de  Paiva ,  em  que  vinham  embarcados 
D.  Joáo  Deça  ,  cunhado  de  Lopo  Vaz  de 
Sampaio  ,  que  vinha  com  a  capitania  de 
Cananor  apôs  D.  Simão ,  e  Francifco  Pe- 
reira de  Berredo  com  a  de  Chaul.  Eftes 
Fidalgos  foram  m.ui  bem  recebidos  de  Lo- 
po Vaz  5  e  lhes  moftrou  os  autos  ,  e  pa- 
peis 5  e  deo  conta  de  luas  coufas  ,  como 
fez  aos  Capitães  da  invernada  ;  e  pergun- 
tando-lhes  o  que  lhes  parecia  ,  diíferam  que 
eftava  de  boa  poíTe  ,  dando-lhe  pêra  iíFo 
fuás  razoes ,  de  que  elle  mandou  fazer  hum 
termo  affinado  por  elles.  Depois  diílo  já  no 

fim 


2o8  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fim  do  mez  chegou  a  Goa  outra  náo  que 
faltava  ,  de  que  era  Capitão  Chriílovão  de 
Mendoça  irrnão  de  Dona  Joanna  Duqueza 
de  Bragança ,  filho  de  Diogo  de  Mendoça  , 
que  vinha  provido  da  fortaleza  de  Ormuz 
na  vagante  de  Diogo  de  Mello.  Efte  anno  , 
de  vinte  e  fete  foi  mui  trabaihofo  de  gran-  I 
des  terremotos ,  e  tremores  de  terra  em  Lis-  ! 
boa  ,  de  que  cahio  a  mor  parte  daquella  i 
Cidade  ,  e  houve  grandes  damnos  ,  mortes  ,  1 
ruínas ,  deílruiçóes ,  e  andava  a  gente  toda 
tão  aíTombrada  ,  que  viviam  pelos  campos  , 
e  defertos ,  e  foi  também  o  laco  de  Roma 
pelo  Duque  de  Borbon. 

CAPITULO     VL 

Da  Armada  ,   que  o  Turco  Solehnao  man- 
dava contra  os  Portuguezes  :  e  das  dif- 
f crenças  que  houve  entre  os  Capitães  : 
e  de  como  mataram  o  General  ^  e 
a  Armada  fe  desfez, 

O  Turco  Soleimao  ,  filho  de  Cely ,  que 
fuccedeo  no  Império  Othomano  os  ân- 
uos áo  Senhor  de  i5'io,  o  mefmo  dia  que 
o  invencível  Emperador  Carlos  Quinto  foi 
coroado  em  Aquifgrana  ,  o  que  parece  or- 
denou Dcos  NoUo  Senhor  pêra  enfrear  a 
foberba  daquelle  bárbaro  ,  que  tanto  que 
tomou  poíTe  do  governo ,  e  começou  a  fen- 

tir 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VI.  209 

tir  o  pczo  do  Império ,  entre  as  cargas  que 
lhe  carregaram  muito  ,  foi  a  de  noítas  Ar- 
madas ,  que  todos  os  annos  lhe  entravam 
pelo  ertreito  do  mar  Roxo  ,  fazendo  por* 
clle  grandes  damnos  ,  deílruindo-lhe  leus 
vaíTalios  ,  e  impedindo-lhe  a  navegação ,  e 
romagem  da  fua  cafa  da  abominação  de 
Mafunede  ,  com  o  que  o  commercio  ,  e 
rendas  daquelle  eftreito  eílavam  totalmente 
perdidas  ,  fendo  fempre  as  mais  importan- 
tes que  os  Impérios  Romano  ,  e  Egypcio 
tiveram  pela  groílidao  de  fuás  entradas  ,  e 
continuação  de  muitas  náos  ,  que  de  todas 
as  partes  do  Oriente  hiam  áquelles  portos , 
carregadas  de  m.uitas  ,  e  ricas  fazendas ; 
querendo  acudir  a  eftas  coufas  ,  tinha  os 
annos  atrás  paíTados  mandado  pêra  iíTo  or- 
denar huma  groíTa  Armada  no  porto  de 
Sues  pêra  mandar  á  índia  contra  os  Por- 
tuguezes ,  pêra  o  que  fe  levou  huma  gran- 
de íomma  de  madeira  dos  Montes  negros, 
e  deífas  partes  de  Satalia  ,  muito  ferro , 
cordoalha  ,  carpinteiros  ,  ferreiros  ,  meílres 
de  galés  ,  e  todos  os  mais  officiaes  ddlàs , 
o  que  tudo  foi  levado  em  muitas  náos  por 
vezes  ao  porto  de  Alexandria  ;  ahi  fe  def- 
embarcaram  ,  e  em  barcas  foram  levados 
pelo  Nilo  aílima  até  o  Cairo  ,  onde  le  car- 
regaram em  Camelos ,  e  por  efpaço  de  vin- 
te e  quatro  léguas  de  terra  deferta  ,  e  fera 
Quto,  Tom.  L  P.  L  O  agu  a ;, 


2 IO  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

agua  ,  foi  tudo  paíTado  a  Sues  com  defpc- 
zas  mui  exceíTivas ,  onde  íe  começaram  ar- 
çnar  as  vazilhas ,  e  galés  ,  em  que  gaíláram 
(inço  ,  ou  Íeis  annos  peJa  incommodidade 
do  porto  5  porque  até  a  agua  que  haviam  de 
beber  os  Oínciaes  ,  ié  ievava  em  Camelos 
de  muito  longe  ,  e  pela  meíma  maneira  to- 
das as  mais  coufas  que  eram  neceíTarias , 
que  tudo  alli  chegava  á  cuíla  de  grande 
fomma  de  ouro  ;  porque  como  o  Turco 
entrava  neíle  negocio  com  o  zelo  de  lua 
religião ,  pêra  deíimpedir  aquella  romagem 
da  cala  de  Meca  ,  tinha  mandado  fe  gaí- 
taílem  todos  íéus  theiouros ,  e  aífi  a  poder 
delles  íè  armaram  fetenta  e  féis  velas  de 
todas  as  fortes  ,  que  fe  acabaram  efte  an- 
uo ,  nomeando  pêra  General  defta  empreza 
a  Soleimáo  Baxá  Governador  do  Cairo, 
hom.em  de  grande  confelho  ,  e  esforço , 
dando-lhe  gente  ,  dinheiro  ,  moniçoes  ,  e 
artilheria  ,  tirando  tamanho  cabedal  de  íi , 
fem  embargo  de  andar  occupado  contra  EI- 
Rey  Luiz  de  Ungria  ,  que  com  demazia- 
do  esforço  5  mas  pouco  confelho,  lhe  apre- 
fentou  aquella  batalha  entre  Buda  ,  e  Bel- 
grado 5  em  que  foi  morto ,  e  desbaratado. 
Deo  o  Turco  por  regimento  ao  Baxá  que 
fizeífe  primeiro  que  tudo  huma  fortaleza  na 
Ilha  de  Camarão  ,  porque  não  tentaíTe  El- 
!p.ey  de.  Portugal  y  como  já  fizera ,  mandar 

far 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VI.  iix 

fàzella  alli ,  e  que  depois  fe  paflaíTe  á  ín- 
dia ,  e  lançafle  delia  os  Portaguezes.  E 
qucrendo-o  honrar  por  eílc  negocio  em- 
que  o  occupava  ,  lhe  deo  o  cargo  de  Ba- 
xá  de  fua  camará  ,  que  he  o  mais  a  qua 
fe  pode  chegar  ,  mandando  com  elle  Ef- 
cander  Can  por  íeu  lugar  Tenente  ,  e  mil 
Janizaros  da  íua  guarda  ,  homens  efcolhi- 
dos  ,  em  que  entravam  Moílafá  Beran ,  fo- 
brinho  do  .mefmo  Baxá  ,  filho  de  fua  ir- 
mã ,  Coge  Çofar  natural  de  Otranto ,  que 
já  na  Armada  de  Mir  Ocem  ,  (que  o  Vi- 
lo-Rey  D.  Francifco  de  Almeida  desba- 
ratou ,  e  em  Dio  fora  por  Capitão  de  hu- 
ma  galé  ,  )  homem  de  ardiz  ,  e  invenções , 
porque  veio  a  valer  muito  ,  e  a  efte  tem- 
po era  thefoureiro  do  Cairo  ,  eíle  trazia 
fua  mulher ,  e  hum  filho  já  homem  ,  cha- 
mado Maarran  ,  (que  depois,  fe  chamou 
RumeCan,  como  em  feu  lugar  diremos,) 
e  duas  filhas  mais ,  huma  cafada  com  Afe- 
re Can ,  homem  tão  façanhofo  de  corpo , 
e  forças  ,  que  por  ellas  foi  depois  chama- 
do Tigre  do  Mundo ,  de  que  algumas  ve- 
zes havemos  de  fallar.  Vinha  mais  neíla 
envolta  Moflafá  Carmany  Elaracen  ,  que 
depois  foi  fenhor  deBaroche,  eAcemLaji- 
caíta  Cherquez ,  que  depois  teve  no  Re)?^ 
no  de  Cambaya  o  titulo  de  Madre  Malu-t 
CO  3   com  quein    pelo    decurfa  da  Hiíloria 

O  u  ha- 


212  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

havemos  de  continuar  muitas  vezes.  E  na 
entrada  defte  Verão  ,  em  que  andamos , 
partio  o  Baxá  de  Sues  com  eíla  potente 
Armada  ,  cuja  fama  atroou  o  Mundo  ,  com 
que  os  Mouros  da  índia  andavam  alvoroça- 
dos ,  cuidando  que  noíTas  coufas  eram  acaba- 
das de  todo.  O  Baxá  foi  tomar  a  Ilha  de  Ca- 
marão 5  onde  com  muita  preíTa  poz  as  m.aos 
á  obra  da  fortaleza  ,  que  acabou  por  todo 
mez  de  Agoílo  ,  e  provendo-a  de  gente , 
e  mcniçoes ,  fe  embarcou  pêra  paíTar  á  ín- 
dia ;  mas  quiz  Deos  NoíTo  Senhor  que  na 
boca  do  eííreito  lhe  deíTem  os  levantes  de 
rofto  tão  rijos ,  que  tornaram  a  voltar  pê- 
ra dentro  ,  e  tomando  confelho  fobre  o 
que  fariam ,  aíTentou-fe  que  foflem  efperar 
os  ponentes  de  Abril  em  Cobit  Sarif ,  por- 
to do  Reyno  de  Zabit,  na  terra  de  Ará- 
bia da  outra  banda  da  Ilha  de  Camarão  , 
aonde  defembarcáram  em  terra  ,  e  arma- 
ram fuás  tendas ;  e  porque  ficavam  ociofos 
todo  aquelle  tempo  ,  determinou  o  Baxá 
de  conquiílar  aquelle  Reyno  ,  marchando 
contra  a  Cidade  de  Zebit,  dez  léguas  pe- 
lo fertão.  Sendo  aquelle  Rey ,  que  fe  cha- 
mava. Soltao  Hamede  5  avifado  da  potencia 
do  Baxá  ,  largando  a  Cidade ,  fugio  bem 
pêra  o  fertão  ,  ficando  a  Cidade  fó ,  que 
feus  moradores  também  fe  quizeram  fegu- 
rar.  O  Ba.xá  entrou  nella,  e  líj^ndou  lan- 
çar 


Década  IV.  Liv.-III.  Cap.  VI.  213 

çar  pregoes  pelas  aldeãs  viziriiias,  pêra  que 
todos  os  da  Cidade  íe  tornaíTem  livremen- 
te pêra  íiias  caíiis ,  promettendo-Ihes  hon- 
ras ,  e  favores  5  com  o  que  acudiram  logo. 
O  Baxá  proveo  aquella  Cidade  de  guarni- 
ção ,  pondo  nella  por  Governador  a  Mir 
Eícander  ,  ficando  aJli  efperando  a  mon- 
ção pêra  paíTarem  d  índia.  Mas  como  Deos 
Noflb  Seniior  tinha  os  olhos  nella  ,  e  a 
queria  guardar ,  e  defender  ,  pêra  que  por 
toda  ella  foíTe  dilatada  fua  Santa  Fé  ,  or- 
denou aquellas  coufas  de  feição  ,  que  fe 
desfez  a  Armada  ;  porque  fe  paíTára  á  ín- 
dia naquelle  tempo  de  tantas  divisões ,  íèm 
dúvida  fe  perdera  de  todo.  E  foi  a  coufa 
deíla  maneira.  Antre  o  Baxá ,  e  Mir  Ef- 
cander  começaram  a  haver  alguns  arrufos 
no  principio  ,  ainda  que  pequenos  ,  que 
crefcêram ,  e  fe  vieram  a  accender  por  ef- 
ta  maneira.  Tiveram  os  Janiçaros  queixas 
do  Baxá  ,  ou  fobre  as  prezas  de  Zebit , 
ou  fobre  a  paga  ,  de  que  clle  fez  pouco 
cafo ,  e  como  fabiam  o  defgoílo  que  Mir 
Moílafá  tinha  do  Baxá ,  trataram  com  cl- 
le em  fegredo  de  o  matarem ,  o  que  fize- 
ram 5  dando  hum  dia  de  fupito  nas  fuás 
tendas  ,  que  roubaram  ,  e  efcaláram,  Mof- 
tafá  fobrinho  do  Baxá  vendo  o  tio  mor- 
to recolheo-fe  ás  fuás  galés  com  os  Jani- 
çaros   de  fua  valia  ,   em  que  entravam  os 

que 


214  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

que  aflima  nomeamos ,  que  eram  Capitães 
das  galés  ,  e  fe  apoderou  do  rhefouro,  e 
tratou  de  fe  fazer  cabeça  da  Armada ,  fo- 
Jicitando  a  gente  pêra  o  feguirem  na  jor- 
nada da  índia,  a' que  o  tio  hia  enviado, 
promettendo-lhes  grandes  prezas ,  e  rique- 
zas 5  de  que  todos  zombaram  ,  porque  hiam 
muito  defgoftofos  naquella  jornada  por  fer 
contra  Portuguezes ,  cuja  fama  das  vitorias 
que  cada  dia  tinham  na  índia  ,  os  trazia 
aííombrados ;  o  que  vifto  por  Moílafá  com 
CS  Capitães  de  fua  valia  ,  que  eram  finco , 
fe  foram  em  faas  galés  pcra  outro  porto  , 
levando  nellas  quatrocentos  Turcos ,  Q  mor 
parte  delles  efcravos ,  que  foram  doBaxá, 
e  como  tiveram  tempo  ,  e  em  Abril ,  fe 
paíTáram  a  Xael  ,  de  que  adiante  faliare- 
mos.  Os  mais  Capitães  das  galés  vendo-fe 
fem' cabeça  embarcados  nellas,  fe  tornaram 
pêra  Sues ,  onde  as  vararam  ,  levando  no- 
va ao  Turco  do  fucceíTo  ,  que  em  eftrcmo 
fentio  ,  porque  lhe  cuílou  aquella  jornada 
huma  grande  fomma  de  ouro ,  ficando  Mir 
Efcander  em  Zebit  com  muitos  Turcos  que 
com  elie  quizeram  ficar  ,  €  logo  fe  appel- 
iidou  Rey.  Fernão  Lopes  de  Caílanheda  , 
e  Petro  Mapheo  dizem  que  Moita  fá  ,  e 
Coge  Çofar  mataram  o  Baxá  ,  e  que  fe  fo- 
ram pêra  Cambaya ,  no  que  foram  mal  in- 
formados 5  porque  efta  verdade  nós  a  âve- 

ri- 


Década  IV.  Liv.  IIÍ.  Cap.  VI.  215' 

riguámos  com  Caracen  ,  hum  deftes  Jani- 
caros  ,  eftando  por  Capitão  de  Baroche , 
com  quem  converlainos  naquella  Cidade  por 
fer  homem  muito  amigo  dos  Portugviezcs ; 
e  depois  que  nos  foi  encommendada  cila 
hiíioria  ,  o  tornámos  a  ratificar  com  hum 
Mouro  Arábio  chamado  Bcnaoder  ,  que 
neíle  tempo  eílava  em  Adem  ,  e  nos  con- 
tou neíla  Cidade  de  Goa  todas  as  parti- 
cularidades defca  jornada  ,  de  que  nao  fa- 
zemos menção  ,  mais  que  das  cbufas  fub- 
flanciaes,  que  fervem  pêra  a  noífa  liiftoria* 
As  novas  deíle  fucceíTo  chegaram  a  Chaul 
entrada  de  Setembro  por  algum.as  náos  de 
Meca,  que  ãquelle  porto  foram,  com  que 
Chriítovão  de  Soufa  ficou  deíalivado  ,  e 
logo  as  enviou  a  Lopo  Vaz.  Pouco  de- 
pois chegou  áquella  fortaleza  Francifco 
Mendes  de  Vafconcelíos  com  as  cartas  de 
Fero  Mafcarenhas  ,  D.  Simão  ,  autos ,  e 
mais  papeis  que  levava  ,  porque  foube  fi- 
car Fero  Mafcarenhas  obedecido  por  Go- 
vernador em  Cananor  ,  aprefentando-Ihe , 
e  notificando-lhe  com  hum  Tabelliao  o 
mefmo  Francifco  Mendes  hum  proteílo ,  e 
requerimento  pôr  parte  de  Fero  Mafcare- 
nhas 5  em  que  requeria  a  elle  Chriftovao 
de  Souíli  que  lhe  obevieceífe ,  e  conhecef- 
fe  por  Governador  tia  Índia  ,  confbrnie  à 
fuccefsâó  d'£iRèy ,  que  fe  abrio  por  fíiór- 

le 


ii6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

te  de  D.  Henrique ,  já  que  Lopo  Vaz  que- 
ria uíar  de  poder  ,  e  nao  fe  queria  pôr 
com  elle  a  direito  ,  proreílando  de  haver 
por  elle  Chi-iftovao  de  Soufa  (não  lhe  que- 
rendo obedecer )  todas  as  perdas ,  e  dam- 
nos  que  diíTo  recebcíTe ,  e  de  dar  conta  a 
ElRey  daquelle  negocio  ,  e  elle  lho  eftra- 
iihar  5  e  caíligar  ,  por  confcntir  a  Lopo  Vaz 
ufar  de  força.  Chriílovao  de  Soufa  vendo 
aquillo,  chaiTiou  a  confelho  o  Feitor,  Al- 
caide mor  5  Fidalgos ,  e  Cavalleiros ,  que 
alli  íè  acharam  invernando  com  elle  ,  que 
eram  muitos  ,  e  lhes  deo  conta  daquelle 
negocio  ,  e  da  prizao  dos  Fidalgos ,  e  do 
efcandalo  que  antre  todos  havia  delia  ,  e 
de  Lopo  Vaz  querer  ufar  de  força  ,  e  po- 
der 3  e  não  fe  querer  pôr  a  direito  com 
Pêro  Mafcarenhas ,  nioftrando-lhe  todos  os 
a'equerimentos ,  e  proteílos ,  c  todos  os  mais 
papeis ,  pedindo-lhes ,  que  lhes  diíTeíTem  o 
que  mais  lhes  pareceííe  cumpria  ao  fervi- 
ço  d^ElRej.  Viílo  por  todos  muito  bem , 
aíTentáram  que  obcdeceíTe  a  Pêro  Mafca- 
renhas por  Governador  da  índia ,  com  de- 
claração ,  que  a  todo  tempo  que  Lopo  Vaz 
fe  quizeíle  pôr  a  direito  com  elle ,  tornaf- 
fe  acoufa  a  ficar  devoluta  até  fc  averiguar 
por  juftiça  a  qual  delles  pertencia  a  go- 
vernança ,  e  que  logo  fe  havia  de  acudir 
áquillo,  antes  que  Lopo  Vaz  aquiriíTe  maio- 
res 


Década  IV.  Liv.  TIL  Cap.  VI.  217 

rcs  forças  ,  com  que  fe  quizeíTe  fuílcntar 
naqiielle  lugar  por  armas,  dando  pêra  iíTo 
muitas  razoes  ,  com  que  Chriftovao  de  Sou- 
fã  determinou  obedecer  a  Pêro  Maicarc- 
nhas ,  mandando  fazer  hum  auto  de  tudo 
o  que  fe  alli  aíTentou  ,  com  que  fe  aííiná- 
ram  todos  os  que  fe  acharam  naquelle  pa- 
recer ;  com  declaração  ,  que  fe  notificaíTe 
a  Lopo  Vaz,  que  fe  puzeffe  a  direito  com 
Pêro  Mafcarenhas  ,  e  que  então  fe  julgaíTe 
qual  era  o  legitimo  Governador :  e  alfi  lo- 
go começaram  a  nomear  Pêro  Mafcarenhas 
por  eífe ,  efcrevendo-Ihe  Chriítovão  de  Sou- 
la  pelo  mefmo  Francifco  Mendes  de  Vaf- 
concellos  de  como  ficava  obedecido  por 
Governador ,  mandando-lhe  o  traslado  do 
auto  que  fe  fez.  O  mefmo  efcreveo  a  Lo- 
po Vaz  ,  de  que  elle  fe  tornou  m.uito  ,  def- 
pedindo  logo  António  da  Silveira  com  hu- 
ma  Armada  a  Chaul ,  dando-Ihe  por  regi- 
mento 5  que  requereífe  a  Chriílovao  de  Sou- 
fa  ,  que  lhe  entregafíè  a  Armada  que  ti- 
nha em  Chaul  ,  mandando  embarcar  com 
elle  Francifco  Pereira  de  Berredo  pêra  o 
metter  de  poíTe  daquella  capitania ,  de  que 
era  provido  por  ElRey.  António  da  Sil- 
veira chegou  a  Chaul ,  e  á  barra  lhe  man- 
dou Chriíiováo  de  Soufa  requerer  que  não 
cntraífe  dentro ,  porque  não  havia  de  obe- 
decer  a  nenhum  mandado   de  Lopo  Vaz , 

por- 


ai8  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

porque  fó  a  Pêro  Mafcarenhas  conhecia 
por  Governador  da  índia  ;  que  fe  íe  qui- 
zefle  ver  com  elle ,  que  elle  iria  em  hum 
catiir ,  e  que  vieíTe  ellc  em  outro  ao  meio 
do  rio  5  onde  fc  ajuntariam  ,  e  ahi  falla- 
riam  ,  c  aíli  íe  fez.  António  da  Silveira 
lhe  notificou  o  regimento  de  Lopo  Vaz  , 
a  que  Chriílovao  de  Soufa  refpondeo  ,  que 
lhe  não  havia  de  obedecer  ,  porque  tinha 
mandado  em  contrario  do  Governador  Pê- 
ro Mafcarenhas  ,  e  que  não  havia  de  en- 
tregar aquella  fortaleza  a  ninguém  ,  fenao 
por  Provisão  fiia  ,  fobre  o  que  hum  ,  e 
outro  fizeram  feus  proteftos  ,  e  requerimen- 
tos ,  e  Francifco  Pereira  outros  contra  Chri- 
ítovão  de  Soufa  pelos  ordenados  da  ca- 
pitania ,  e  de  tudo  tiraram  feus  inílr amen- 
tos, e  papeis. 

CAPITULO     VII. 

l)e  hum  ãjjinaão  ^   que  António  ãe  Miran- 
da de  Azeiedo  deo  a  Fero  Mafcarenhas 
de  lhe  obedecer :  e  do  que  ajfentàrayyi  o 
mefnío  António  de  Miranda  ,  e  (Ihri- 
Jiovão  de  Soufa  fohre   as  coufas 
dantre  os  Governadores. 

ANtonio   de  Miranda  de  Azevedo  Ca^ 
pitão  mòr  do  mar^  q«è  invernou  em 
Cochim  -y   tanto  <jiie  foram  qttÍH-ze  dé  Se- 

tem- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VIL  21^ 

tenibro  ,  que  o  tempo  Jhc  deo  lugar  ne*- 
gociando  lua  Armada  ,  d'^o  á  véla  pêra 
Goa,  tomando  Cananor  pêra  prover  aqacl- 
■]a  fortaleza  do  que  tivelíc  neceíTidade  j  c 
furgindo  na  Bahia  ,  lhe  mandou  o  Gover- 
nador Pêro  Maícarenlias  fazer  hum  re^ue- 
rimento  ,  a  que  foi  D.  Simíio  em  peííoa 
com  hum  Tabellião  ,  em  que  lhe  requeria 
da  parte  d'ElRey  ,  que  pois  o  mefmo  Dom 
Simáo  5  c  Chriftovao  de  Soufa  ,  com  a 
maior  parte  dos  Fidalgos  da  índia  ,  o  ti- 
nham havido  5  conhecido  ,  e  obedecido  por 
Governador ,  por  virtude  de  fua  fuccefsão  , 
fazendo  elle  primeiro  tantos  proteftos  ,  e 
requerimentos  a  I.opo  Vaz  ,  (que  indevi- 
damente fe  appellidava  Governador  ,  nio 
o  fendo  elle  lenao  em  fua  aufencia  ,  por- 
que a  fuccefsão  em  que  elle  fuccedeo  nao 
podia  fer  aberta  ,  tendo-fe  já  ufado  da 
fua ,  )  e  que  Pêro  Mafcarenhas  por  paz,  é 
íocego  da  índia  queria  pôr  fuás  coufas  eni 
juíliça  ,  o  que  Lopo  Vaz  nao  queria  con- 
fentir  ,  fenao  ufar  de  força ,  que  pois  el- 
le requeria  juftica  ,  devia  elle  António  de 
Miranda  ,  como  Capitão  mor  do  mar  ^ 
obedecer-lhe  ,  e  enrregar-Ihe  aquella  Ar- 
mada pêra  a  tornar  a  receber  de  fua 
mão  ,  porque  aíH  podia  fer  que  fe  movef* 
fe  Lopo  Vaz  a  fe  pôr  com  elle  a  direito 
guando  fe  viíTe  fem  Armada ,  qúe  elle  nâe 

que- 


aio  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

queria    mais  ,    fenão    que    fe  julgafle   qual 
delles  havia    de  fer  Governador  da  índia; 
porque  fe  o  era  Lopo  Vaz  ,  elle  Pêro  MaC- 
carenhas  fe  queria  ir  pêra  o  Reyno  a  dar 
razão  de  íi  a  ElRey ,  porque  de  outra  ma^ 
neira  daria  má  conta  de  íí :  e  quando  elle 
António  de  Miranda  lhe  nao  quizeíTe  obe- 
decer 5  que  elle  proteílava  de  haver  por  el- 
le feus  ordenados ,    e  de  ElRey  o  caíligar 
como  lhe  pareceíTe  juíliça,  e  o  cafo  reque- 
ria. António    de  Miranda  vendo    as  juftifi- 
cações  de  Pêro  Mafcarenhas  ,    e  que  tudo  • 
o  que   requeria  era  juíliça  ,    de  que  Lopo 
Vaz  fugia  tanto  ,  refpondeo  ao  requerimen- 
to 5  que  por  ora  elle  nao  podia  fazer  mu- 
dança de  fi  até  fe  não  ver  com  Lopo  Vaz  , 
e  faber  delle  fe  fe  queria  pôr  a  direito  com 
elle  ;   e  que  não  o  querendo  fazer,  então 
lhe  obedeceria  a  elle  Poro  Mafcarenhas ,  e 
o   haveria    por  Governador.    Com  efta    re- 
fpofta  tornou  D.  Simão  a  Pêro  Mafcarenhas  , 
que  não    ficou   fatisfeito    delia  ,    e  todavia 
tornou  a  mandar  pedir  por  D.Simão,  que 
lhe  déíTe    hum    aífinado    daquillo  que  pro- 
mettia  ,    fobre  o  que  debateo  com  D.  Si- 
mão ,  e  por  fim  houve  de  o  conceder ,  que 
continha  ofeguintc:   «Digo  eu  António  de 
»  Miranda  de  Azevedo  Capitão  mòr  do  mar 
»  da  índia ,    que  cu  me  obrigo  ao  Senhor 
>»  Pêro  Mafcarenhas  de  fazer  com  o  Senhor 

»  Lo- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VIL  221 

•»  Lopo  Vaz  de  Sampaio ,  que  ora  he  Go- 
))  vernador  da  índia  ,  que  fe  ponha  a  di- 
»  reito  com  elle  ,  (que  também  pretende  fel- 
j)  Io , )  fobre  qual  deiles  deve  de  ficar  com 
yt  o  governo ;  c  não  querendo  elle  pôr-fe  a 
» juízo  5  por  efte  dou  minha  fé  ,  e  faço 
»  prcitomenagem  ao  dito  fenhor  Pêro  Maf- 
))  carenhas  de  me  ir  pêra  elle ,  e  lhe  obe- 
» decer  como  a  verdadeiro  Governador. 
»  Feito  5  e  aílinado  por  mim  aos  dezefete 
))  de  Setembro  de  15*27.  »  Dado  efte  aíUna- 
do  5  foltou  a  véla  pêra  Goa ,  onde  chegou 
em  breves  dias,  c  vendo-fe  com  o  Gover- 
nador Ihedeo  conta  de  tudo  o  que  paíTou 
com  Pêro  Mafcarenhas ,  e  do  aílinado  que 
lhe  deo ,  dizendo-lhe  que  pois  Pêro  Maf- 
carenhas não  queria  mais  fenão  que  fepu- 
zeíTe  com  elle  a  direito  fobre  qual  deiles 
havia  de  fer  Governador ,  que  parecia  que- 
rer ufa  r  de  força  não  o  querer  elle  con- 
fentir ;  que  fe  lhe  parecia  que  tinha  juftiça, 
devia  de  o  fatisfazer ,  por  fe  quietar,  e  fe 
acabarem  tantas  divisões  antre  todos  os  Fi- 
dalgos. Lopo  Vaz  lhe  eftranhou  muito  o 
que  tinha  feito ,  aíErmando-lhe  que  fe  não 
havia  de  pôr  em  direito  com  Pêro  Maf- 
carenhas fobre  a  mercê  que  lhe  ElRey  fi- 
zera ,  e  que  bem  fe  podia  tornar  pêra  elJe 
como  fe  lhe  obrigara ,  porque  nao  faltaria 
a  quem   dar  a  capitania  mor  do  mar   da 

In- 


222  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

índia.  António  de  Miranda  fe  dclculpou  , 
certifícando-lhe  que  nao  dera  aqueile  aíli- 
pado  com  tenção  de  o  cumprir .  íenão  por 
íe  livrar  de  Pêro  Mafcarcnhas  pelo  ver  tao 
damnado  ,  que  receou  algum  dcfmancho. 
Lopo  Vaz  esbravejou  ,  e  diíTe  a  António 
de  Miranda  ,  que  logo  fe  partifle  pêra  Cbaul , 
dando-lhe  por  regimento  ,  que  tomaíTc  a 
Armada,  que  lá  eítava ,  e  íizeíTe  mctter  de 
poíTe  daqueila  fortaleza  a  Francifco  Perei- 
ra de  Berredo.  Não  faltaram  homens  ami- 
gos de  novidades  ,  que  aconfelhaflem  a  Lo- 
po \^vz,  que  prendeíTe  António  de  Miran- 
da, e  que  IhetiraíTe  a  Armada,  o  que  pe- 
la ventura  feria  mais  por  cada  hum  delles 
apertender,  que  por  verem  que  havia  pê- 
ra iíTo  razão.  Lopo  Vaz  diílimulou  aquel- 
les  coníelhos  por  nao  fazer  com  iílb  mor 
união  nos  homens  ,  porque  nao  lhe  vinha 
bem  efcandalizar  tantos.  António  de  Mi- 
randa chegou  aChaul,  aonde  ainda  achou 
António  da  Silveira  ,  que  lhe  deo  conta 
do  que  tinha  paíTado  com  Chriílovao  de 
Soufa  ,  elle  lhe  pedio  fe  dctivciTe  até  fe 
ver  com  ellc  ,  porque  já  fe  levava  pcra 
dar  á  vela.  E  logo  mandou  recado  a  Chrif- 
to^'ão  deSoufa,  que  importava  ao  ferviço 
d'ElRey  verem-fe ;  ao  que  lhe  refpondeo , 
cjue  íe  era  pêra  lhe  entregar  a  Armada ,  e 
capitania  da  fortaleza ,.  que.  já  tinha  refpon-? 

di- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VIL  223 

dido  fobre  iflb  a  António  da  Silveira  ,  e 
com  iflb  lhe  mandou  fazer  hum  requeri- 
mento pelos  Officiaes  em  companhia  de  to- 
dos os  Fidalgos  ,  que  alli  havia ,  em  que 
dizia  5  quevilTem  bem  a  força  que  Lopo 
Vaz  ,  e  AfFonfo  Mexia  faziam  a  Pêro  Maf- 
carenhas  em  lhe  tomarem  a  governança  da 
Índia  ,  fem  fe  querer  Lopo  Vaz  pôr  com 
elie  em  direito  íbbre  a  qual  delles  perten^. 
cia  :  que  lhe  requeria  da  parte  d'ElRe)r, 
como  a  peflba  tao  principal  na  índia  ,  e 
Capitão  mor  do  mar  ,  fizeíTe  com  Lopo 
Vaz  ,  que  não  ufafl:e  naquelle  negocio  de 
poder  abfoluto  ,  e  que  confentiíTe  ficar  em 
direito ,  e  juftiça  ,  pêra  fe  fazer  a  quem  a 
tivefle  ^  e  que  em  ília  mão  eilava  determi- 
na r-fe  efte  cafo  5  e  acabarem-fe  todas  as 
diiTensÔes  que  havia  na  índia.  De  tudo  que 
lhe  notificaram  fe  fez  hum  termo  allinado 
por  todos  aquelles  Fidalgos.  António  de 
j  Miranda  refpondeo  ,  que  dlc  fe  iria  ver 
com  ellc  á  fortaleza  ,  como  logo  fez ,  in- 
do fó ,  e  ambos  em  fegredo  praticaram  fo- 
bre aqucllas  coufas  ,  e  por  fim  vieram  a 
concluir  fizefícm  com  Lopo  Vaz  ,  que  fe 
puzefl^e  a  direito  com  Pêro  Mafcarenhas , 
fazendo  ambos  huns  apontamentos  fobre  o 
modo  que  fe  niflTo  teria,  que  era  o  feguin-. 
te :  »  Que  fe  julga  fiem  aquellas  differenças 
)í  de  antre  ambos  os  ÇQvernadores.  por  fo 

»te 


224  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

» te  Juizes ,  que  ellcs  elegeram  logo  ,  e  fí- 
)j  zeram  dellcs  hum  rol  aíTinado  por  ambos 
»  pêra  ficar  em  fuás  mãos  em  fegredo  ,  fem 
»  pelToa  alguma  faber  quaes  eram  ,  e  que 
))  fe  não  defcubririam  fenão  á  hora  que  o^ 
))  chamaíTem  pêra  a  fentença  ,  os  quaes  lo- 
»  go  nomearam  ,  que  eram  António  de  Mi- 
»  randa  ,  D.João  Dcça  ,  Francilco  Pereira  de 
))  Berredo ,  Baltliazar  da  Silva ,  Gafpar  de 
)>  Paiva  5  Fr.  João  Dalvi  da  Ordem  dos  Me- 
» nores  ,  Fr,  Luiz  da  Vitoria  da  Ordem 
»  dos  Pregadores  ambos  Letrados.  Nefta  elei- 
ção íe  começou  logo  a  tomar  a  juftiça  a 
Pêro  Mafcarenhas  ,  porque  todos  aquelles 
Juizes  ,  tirando  aquelles  Frades  ,  tinham  da- 
do aíTmados  a  Lopo  Vaz  de  como  elle  era 
"verdadeiro  Governador ,  e  bem  o  entende- 
ram elles  5  mas  trataram  de  quietar  por  alli 
a  Lopo  Vaz  ,  porque  ainda  que  fe  déíTe 
por  elle  a  fentença ,  já  eílava  de  poíTe  da 
governança  ;  e  Pêro  Mafcarenhas  ainda  que 
por  então  lhe  tomaíTem  o  direito ,  depois 
lhe  ficaria  refguardado  pêra  ElRcy  o  fatis- 
fazer ,  porque  fó  trataram  eíles  Fidalgos  de 
apaziguar  a  índia.  Chriílovão  de  Soufa  não 
quiz  que  elle ,  nem  Fidalgo  algum  feu  pa- 
rente entralTe  na  conta  dos  Juizes  ,  porque 
não  fícaíTe  Lopo  Vaz  tendo  pejo  nelles , 
porque  tudo  aqui  fe  tratava  a  feu  gofto.- 
Ç)s  apontamentos  que  fe  haviam  de  publi- 
car 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VII.  225- 

car  eram  cftes.  »  Que  António  de  Miranda 
»  daria  lium  aííinado  a  Chriílovao  de  Souía 
))  tal  como  o  que  dera  a  Pêro  Maícarenhns , 
))  e  outro  em  que  fe  obrigalTe  a  elle  Chrif- 
»  tovao  de  Soufa  pêra  poder  ir  a  Goa  cm 
»  fua  companhia  ,  e  fallar  íeguramentc  com 
))  Lopo  Vaz  5  íem  perjuizo  de  fua  fazenda , 
)>  parentes  ,  e  amigos ,  pêra  que  livremente 
»  lhe  pudefle  requerer  o  que  lhe  pareceíTe 
))  ferviço  d'ElRey,  fcm  entervirem  palavras 
))  fora  da  matéria  ;  e  que  chegando  todos  a 
))  Goa  5  ficaria  a  Armada  fora  da  barra  ,  e 
»  António  da  Silveira  genro  de  Lopo  Vaz 
))  dentro  nella  em  reféns ,  em  poder  de  pef- 
))  foas  de  confiança ,  e  a  Armada  entregue  a 
»  hum  Fidalgo ,  que  daria  a  menagem  a  el~ 
))  le  Capitão  mor ;  e  que  declaraíTe,  que  fen- 
))  do  cafo  que  Lopo  Vaz  prendeíTe  a  qUq 
»  Chriílovao  de  Soufa  ,  que  em  tal  cafo  o 
»que  ficaííe  na  Armada  fe  foíle  com  toda 
»  ella  pêra  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  que  lhe  obe- 
-))  deceíTe  como  a  Governador ;  e  que  Chri- 
))  ftovão  de  Soufa  daria  hum  aífinado  aíli 
»  por  elk  5  como  por  todos  os  Fidalgos , 
»  que  eftavam  com  elle  ,  em  que  fe  obrigaf- 
-»  fem  a  obedecer  a  elle  António  de  Miran- 
»  da  com  toda  a  Armada ,  que  em  feu  po- 
))  der  tinha,  até  chegarem  a  Goa  ;  e  que  não 
yt  querendo  Pêro  Mafcarenhas  confentir  no 
■»  que  elles  tinham  ordenado ,  fe  foííem  to- 
Coutõ,  Tom,  L  P,  L  P  »  dos 


220  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

))  dos  pêra  Lopo  Vaz  ,  e  lhe  obedeccíícm  , 
))  íem  mais  íer  ouvido  Peio  Aiafcarenhas  j 
))  e  que  o  Alcaide  mor  que  fícaíTe  em  Chaul , 
))  promctteria  também  de  entregar  aquelJa 
»  fortaleza  a  Lopo  Vaz  pela  mefma  manei- 
5j  ra  j  e  que  confeiitirido  ambos  os  preten- 
y^  fores ,  que  fe  puzeíTe  fua  caufa  em  direito  : 
y^  que  antes  dos  Juizes  pronunciarem  nella 
j,  coufa  alguma  ,  prometteriam  ambos  com 
))  juramento  5  que  o  que  delles  ficaíTe  nogo- 
))  verno  nao  entenderia  na  peíToa  ,  fazcn- 
jj  da  5  parentes  ,  amigos  ,  e  criados  do  ou- 
))  tro  ,  nem  desfaria  o  que  outro  tiveíTe  já 
j)  feito  até  então,  e  a  qualquer  delles,  que 
))  niílo  não  confentiíTe  ,  lhe  defobedeceíTem. 
^  E  que  tanto  que  ambos  chegaíTem  a  Goa  , 
^  feriam  logo  foltos  Eitor  da  Silveira ,  e  os 
yf  mais  Fidalgos  que  eílavam  prezos  ,  que 
» também  prometteriam  de  guardar  o  que 
))  alli  determinavam  ;  e  que  efte  negocio  fe 
indeterminaria  em  Cochim,  onde  fe  ajunta- 
))  riam  ambos  os  pretenfores  ,  c  que  em  par-^ 
))  tindo  Lopo  Vaz  de  Goa  defiíliria  da  go- 
»  vernança ,  e  iria  como  peíToa  privada  em 
»  poder  de  x\ntonio  de  Miranda  ,  e  que  cbe- 
))  gando  a  Cananor  fe  entregaria  também  de 
»  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  que  Lopo  Vaz  íica- 
»  ria  entregue  a  Chriílovão  de  Soufa ,  ou  a 
))  D.  Simão  de  Menezes ,  pêra  que  o  levaf- 
yi  fe   nos  navios  em  que  foífem  :   que  além 

»  do 


DeoIV.  Liv.ITI.  Cap.VII.  eVIIL  227 

j>  do  feguro  que  António  de  Miranda  havia 
))  de  haver  pêra  Chriílovao  de  Soufa  do  Go- 
))  vernador  ,  íhe  haveria  outro  do  Capitão  , 
))  e  Vereadores  da  Cidade  de  Goa ,  que  ju- 
))  rariam  que  não  guardando  Lopo  Vaz  o 
))  feguro  5  obedeceriam  a  Pêro  Mafcarenhas.  )> 
Eíla  pauta  le  leo  a  todos  os  que  eftavam  na 
fortaleza  ,  e  Chriílovao  de  Soufa  lhes  diíTe 
a  caufa  porque  a  fizera  ,  requerendo  que  lha 
ajudaíTem  a  pôr  em  eíFeito  ,  e  de  tudo  fe 
fez  termo ,  em  que  todos  fe  aíTináram  ,  fei- 
to por  Gafpar  Affonfo  Tabcllião  em  quatro 
de  Outubro  de  mil  quinhentos  e  vinte  e  fe- 
te  annos. 

CAPITULO     VIIL 

De  como  fe  mojlrou  a  pauta  a  Lopo  Vaz  ^ 
e  de  como  jurou  de  a  cumprir ,  e  fe  par- 
tio  pêra  Cochim  ,   aonde  fe  havia  de 
julgar  a  contenda :  e  do  que  paffou 
em  Cananor  com  Vero  Maf- 
carenhas, 

COncIuido  iílo  5  que  foi  o  melhor  mo- 
do que  pode  fer  pêra  a  quietação  da  In^ 
dia ,  partiram  todos  aquelles  Fidalgos  pêra 
Goa ,  ficando  a  fortaleza  de  Chaul  entregue 
a  Álvaro  Pinto  Alcaide  mor  delia.  Chega- 
dos a  Goa  ,  foi-fe  António  de  Miranda  ver 
<:om  o  Governador^   e  perante  o  Licencia- 

P  ii  do 


228  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

do  João  de  Soiiro  Ouvidor  geral ,  e  o  Se- 
cretario António  Rico ,  lhe  moilrou  a  pau- 
ta,  dizendo-]he  que  fizera  aquillo  por  cum- 
prir aíli  ao  ferviço  de  Deos ,  e  d'ElRe7  ,  e 
íe evitarem  grandes  males,  que  cílavam  or- 
denados ;  e  que  peles  muitos  proteftos  que 
em  Chaul  lhe  fizeram  confentira  naquillo 
muito  contra  fiia  vontade ,  porque  bem  fa- 
bia  que  eliQ  era  o  verdadeiro  Governador, 
e  que  pêra  lua  juíliça  trabalharia  que  os  Jui- 
zes foítem  fcm  íuipcita  ,  e  fete  fomente  ,  pê- 
ra terem  menos  que  apurar.  O  Governador 
ficou  íbbrelaltado  com  aquillo  ,  dizendo-lhe 
que  elle  tinha  a  culpa  ,  pois  fe  fiara  mais  del- 
Je  depois  que  dera  o  aíTuiado  a  Pêro  Maf- 
carenhas  ,  e  que  fe  cuidara  que  fizera  aquil- 
lo por  evitar  males ,  que  agora  ficavam  el- 
les  mais  prenhes  ;  e  querendo-lhe  António 
de  Miranda  dar  mais  razoes  ,  lhas  não  quiz 
ouvir ,  dizendo-lhe  ,  que  já  que  aíli  era  ,  en- 
tendeíTe  que  os  Juizes  não  haviam  de  fer 
mais  de  fete  ,  como  lhe  tinha  dito ,  o  que 
lhe  elle  certificou  que  não  feriam  mais.  E 
porque  vio  Lopo  Vaz  tão  accezo  ,  e  cheio 
de  paixão ,  fem  embargo  do  juramento  que 
tinha  feito  ,  lhe  defcubrio  os  Juizes  que  eC- 
tavam  declarados,  com  o  que  Lopo  Vaz  fe  : 
defapaixonou  ,  ficando  mui  defaliviado  ,  e  lhe 
pedio  lhe  déíTe  hum  afiinado  feu  de  ferem 
Juizes  aquelles  que  lhe  tinha  dito ;  que  lhe 

el- 

í 
i 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VIII.  229 

elle  deo  ,  em  que  fe  alTináram  o  Ouvidor 
geral  ,  e  o  Secretario.  Lopo  Vaz  inoítrou 
a  pauta  a  Pêro  de  Faria ,  e  a  feus  amigos  , 
que  lhe  aconfelháram  confentiíTe  nella  ,  por- 
que não  o  fazendo  íe  alevnntariam  todos 
contra  elle  ,  e  perderia  o  direito  que  tinha 
na  governança  ,  e  o  mefmo  lhe  diíleram  os 
Vereadores  ,  a  quem  deo  conta  daquelíe  ne- 
gocio ;  e  por  tím  de  tudo  diíTe  a  António 
de  Miranda  que  confentia  na  pauta  ,  mas 
que  havia  de  ir  como  Governador  até  Ca- 
nanor ,  e  que  a  honra  de  AíFonfo  Mexia  fof- 
fe  guardada  ,  e  que  julgando-fe  o  negocio 
por  Pêro  Malcarenhas  ,  não  o  tiraria  dos 
oíiicios  que  tinha  ,  do  que  António  de  Mi- 
randa foi  contente  ,  e  lhe  paíTou  diíTo  leu 
aílinado.  Pelo  que  logo  fe  fokáram  os  pre- 
zos  5  e  paíTou  feguro  a  Chriílovao  de  Sou- 
fa  pêra  poder  entrar  em  Goa  ,  porque  até 
então  ellava  na  barra  ,  ( onde  foi  avifado 
que  Lopo  Vaz  tratava  de  o  prender  ,  e  o 
mefnío  a  António  de  Miranda , )  e  deixou- 
fe  ficar  fora  fem  querer  entrar  dentro.  Pelo 
que  afTentou  com  Àntojiio  de  Miranda  ,  que 
diíTeíTem  na  aguada  huma  MiíTa  ,  e  que  neí- 
la  tornaíTem  a  ratificar  o  juramento  que  ti^ 
nham  feito ,  e  de  novo  fe  obrigavam  a  Lo- 
po Vaz  ir  até  Cananor  por  Governador ,  e 
aííi  a  fcgurança  de  AíFonfo  Mexia  ,  o  que 
juraram   de  novo  alevantando-ie   a  Floília , 

ef- 


230  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

eftando  prefentes  por  parte  de  Lopo  Vaz 
D.  Joao  Deça  ,  e  o  Secretario  ,  que  de  tu- 
do fez  hum  aíTento  ,  em  que  le  declarou  , 
que  tanto  que  Lopo  Vaz  chegaííe  a  Cana- 
íior  fc  deíèmbarcaria  do  galeão  S.  Diniz , 
(  por  fer  tão  poderofo  que  lo  com  elle  po- 
deria pelejar  com  toda  a  Armada  da  índia  ,  ) 
e  que  como  reteudo  fe  entregaria  a  Antó- 
nio de  Miranda  na  fua  galé ,  do  que  Lopo 
Vaz  foi  contente ,  e  o  jurou  eílando  em  S. 
Franciíco  ao  levantar  do  Santo  Sacramen- 
to 5  fazendo  algumas  declarações ,  e  protef- 
tos  que  lhe  convinham.  Aos  vinte  e  dous 
dias  de  Outubro  fe  embarcaram  todos  ,  e 
cliegáram  a  Cananor  aos  fcis  de  Novembro ; 
e  defembarcando  Chriftovâo  de  Soufa  ,  e 
António  de  Miranda  ,  foram  dar  conta  a 
Pêro  Mafcarenhas  de  tudo  o  que  era  paíTa- 
do  ,  dizendo-lhe  elle,  que  tudo  confentiria 
por  pacificação  da  índia  ,  poílo  que  tinha 
entendido  que  todos  tratavam  de  lhe  toma- 
rem feu  direito  ,  porque  já  António  de  Mi- 
fanda  tinha  defcuberto  o  fegredo  dos  Juizes 
à  Lopo  Vaz,  como  vira  porhuma  carta  fua 
que  houvera  ás  mãos  por  luas  intelligencias  , 
efcrita  ao  Vcador  da  Fazenda  ,  em  que  lhos 
nomeava  ,  e  aiitre  elles  a  Fr.  Joao  Dalvi, 
que  lhe  tinha  promettido  de  votar  por  elle  ^ 
moílrando-lhe  logo  a  mefma  carta  ,  do  que 
António    de  Miranda    ficou  atalhado.    Pêro 

Maf^ 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VIIÍ.  231 

Mafcarenlias  lhe  requerco  ,  que  Ic  lançaíTe 
fóra  Fr.  João  Dalvi  ,  pois  era  fufpeito ,  e 
declarara  fua  tenção  ,  e  que  em  Teu  lugar 
entraílb  Chriíiovâo  de  Soula  ,  e  que  bem  po- 
dia fer  hum  dos  Juizes,  pois  o  era  elle  An- 
tónio de  Miranda  também;  mas  Chriftovão 
de  Soufa  fe  efcuíbu  com  dizer ,  que  Lopo 
Vaz  o  tinha  por  mais  íliípeito  que  a  todos , 
pelo  que  em  lugar  de  Fr.  João  Dalvi  no- 
mearam aquelles  Fidalgos  em  fegredo  entre 
íi  íinco  Juizes  mais  ,  que  foram  Lopo  de 
Azevedo  ,  António  de  Brito ,  que  fora  Ca- 
pitão de  Maluco  ,  Nuno  Vaz  de  Caílel-bran- 
co  5  Triílao  Dega  ,  e  Baíiiao  Pires  Vigairo 
geral  da  índia ,  o  que  fe  fez  fem  embargo 
de  António  de  Miranda  ter  dado  o  aílina- 
do  que  diffcmos  a  Lopo  Vaz  de  nao  ferem 
mais  de  fete.  AíTentado  iílo ,  ao  outro  dia 
eílando  todos  á  Miffa  ,  virando-fe  Baíiiao 
Pires  Vigairo  geral  com  o  Santo  Sacramen- 
to nas  máos  pêra  o  povo  ,  jurou  Pêro  Maf- 
carenhas  de  cumprir  a  pauta  ,  em  que  havia 
por  bem ,  que  ficando  Lopo  Vaz  por  Go- 
vernador o  pudeífe  mandar  prezo  pêra  o 
Reyno  ,  e  o  mefmo  juraram  todos  os  do 
feu  bando  ,  de  que  fe  fez  term.o  aííinado 
por  elles.  Acabado  ifto  ,  mandou  Pêro  Mas- 
carenhas chamar  o  Secretario  ,  e  fez  lium 
termo ,  em  que  declarava  que  os  Juizes  de- 
putados não  haviam  de  pronunciar  mais  na 

cau- 


2^z  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

caiifa  )  fcnão  qual  delles  ambos  havia  de  fi- 
car por  Governador  ,  porque  cuja  era  a  go- 
vernança por  direito  fó  ElRéy  com  os  feus 
Defembargadores  o  haviam  de  determinar, 
no  que  claramente  deo  a  entender  pela  fuf- 
peição  dos  Juizes ,  que  havia  de  ter  lènten- 
ça  contra  íi ;  mas  não  podia  ai  fazer ,  fenao 
confentir  no  que  eítava  ordenado ,  e  queria 

?jue  lhe  fícaíTe  acção  pêra  requerer  aElRey 
ua  juftiça.  Acabado  iíío ,  embarcou-fePero 
Mafcarenhas  no  galeão  de  Chriftovão  de 
Soufa  5  e  António  de  Miranda  fe  paíTou  ao 
galeão  S.  Diniz  pêra  tomar  entrega  de  Lo- 
po Vaz  5  fendo  obrigado  o  mefmo  Lopo 
Vaz  paíTar-fe  pêra  a  fua  galé,  como  eftava 
aíTentado  na  pauta  ,  e  jurado  por  todos , 
do  que  fe  Pêro  Mafcarenhas  aggravou  ,  di- 
zendo aChriílovão  de  Soufa  ,  que  já  fe  que- 
bravam os  contratos  que  eflavam  feitos  ,  pois 
Lopo  Vaz  fe  não  queria  fahir  do  galeão  S. 
Diniz ,  nem  defirtir  do  mando  ,  e  governo , 
e  levava  ainda  bandeira  na  gávea  ,  como 
Governador.  Sobre  iílo  mandou  Chriftovão 
de  Soufa  outro  recado  a  António  de  Mi- 
randa ,  que  requereo  a  Lopo  Vaz  fe  mudaf- 
fe  á  fua  galé,  como  eílava  aíTentado,  o  que 
elle  não  quiz  fazer ,  do  que  fe  todos  efcan- 
dalizáram  ,  e  começou  a  haver  união  de  no- 
vo ,  o  que  vifto  por  Lopo  Vaz  ,  mandou 
dizer  a  Fero  Mafcarenhas  por  D.  João  De- 

ca  , 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  VIII.  233 

ça ,  que  pois  a  caiifa  fe  havia  de  averiguar 
em  Cochim  fem  elles  eftarem  prefeiites ,  que 
o  bom  feria  ficarem  naquella  cofta  com  a 
Armada  repartida  ,  fazendo  guerra  ao  Ça- 
morim  ,  e  defendendo  que  nao  mandaífe  fuás 
náos  a  Meca  ,  por  não  levarem  a  pimenta 
que  fazia  abater  na  d'ElRey  ,  e  que  fó  os 
Juizes  foíTem  a  Cochim  ,  e  que  depois  de 
dada  a  fentença  lha  mandariam  notificar.  If- 
ío  commetteo  Lopo  Vaz  ,  porque  houve ,  que 
fe  o  negocio  ficava  em  Affonfo  Mexia  ,  que 
era  cabeça  em  Cochim  ,  que  elle  ordenaria 
com  que  fe  déíTe  a  fentença  por  elle ,  o  que 
Pêro  Mafcarenhas  entendeo  mui  bem,  e  re- 
fpondeo  que  nao  vinha  bem  a  nenhum  dei- 
les ,  porque  o  que  tiveífe  fentença  contra  íi 
fe  havia  logo  de  embarcar  pêra  o  Reyno , 
pêra  o  que  era  neceíTario  eííar  em  Cochim 
pêra  fe  negociar  ,  mandando-lhe  requerer, 
que  fe  fahiííe  do  galeão  S.  Diniz  ,  fobre  o 
que  fe  paííáram  alguns  dias  fem  Lopo  Vaz 
querer  defirir  a  fcus  prorefios  :  a  que  acudio 
Chriílovão  de  Soufa ,  e  pedio  por  mercê  a 
Pêro  Mafcarenhas  ,  que  deixaíTe  ir  Lopo 
Vaz  aonde  quizeíTe  ,  porque  niíTo  hia  pou- 
co ,  pois  os  Juizes  haviam  de  julgar  a  cau- 
f  1 ,  e  não  os  galeões,  com  o  que  houve' de 
o  confentir ;  e  dando  am.bos  os  prctenfores 
a  vela  ,  defparárani  cada  hum  feu  tiro  ,  a 
c.ijo  íinal  os  homens ,  que  pêra  iífo  tinham 

nas 


234  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

nas  gáveas  ,  tiraram  as  bandeiras  juntamen- 
te ,  pêra  que  fe  entendeffe ,  que  por  aquelle 
final  defiftiam  ambos  do  mando  ,  e  gover- 
no ,  e  que  até  fe  julgar  a  caufa  ficariam  co- 
mo pefToas  privadas ,  e  ao  tirar  das  bandei- 
ras proteftáram  ambos  ,  que  não  defiftiam 
da  poíTe  que  tinham.  Feiro  ifio  ,  António 
de  Miranda  entregou  Pêro  Mafcarenhas  a 
Chriftovão  de  SouTa  pêra  no  galeão  S.  Ra- 
fael ,  em  que  hia  ,  o  levar  a  Cochim  ,  e  lá 
lho  entregar ,  e  elle  tomou  entrega  de  Lo- 
po Vaz  ,  ficando  então  como  Capitão  mor 
que  era  da  índia ,  a  primeira  peíToa  delia  , 
e  ambos  os  Governadores  de  baixo  de  feu 
poder.  E  fendo  eu  moço ,  fervindo  a  ElRey 
D.João  na  guarda-roupa  5  ouvi  dizer  áquel- 
les  Fidalgos  velhos  daquelie  tempo  ,  falian- 
do  neftas  coufas  ,  que  diíTera  ElRey  ,  que 
António  de  Miranda  não  foubera  fer  Go- 
vernador da  índia.  E  em  huma  falia  que  o 
mefmo  António  de  Miranda  lhe  fez  fobre 
feus  fer  viços  ,  dizem  ,  que  lhe  refpondêra  El- 
Rey ,  que  de  huma  fó  coufa  fe  não  houve- 
ra por  bem  fervido  delle ,  que  fora  não  lhe 
mandar  prezos  Lopo  Vaz ,  e  Pêro  Mafca- 
renhas depois  de  os  ter  em  feu  poder,  o  que 
elle  bem  pudera  fazer ,  ficando  governando 
a  índia  com  titulo  de  Capitão  mór  até  El- 
Rey a  prover,  como  logo  fez. 

CA- 


Década  IV.  Liv.  III.        235* 

CAPITULO     IX. 

De  algumas  defauenças ,  que  houve  em  Co- 

chim  entre  os  Governadores  :  e  de  como 

Je  accrefcentdram  mais  dous  'Juizes 

por  parte  de  Lopo  Vaz  ^  e  do  que 

mais  pajjou, 

SUrtos  todos  no  porto  de  Cochim  ,  foi 
António  de  Miranda  a  terra  ,  e  deo  con- 
ta a  AíFonfo  Mexia  do  que  era  paíTado  , 
moílrando-lhe  a  pauta ,  c  todos  os  mais  pa- 
peis 5  que  eílavam  feitos  antre  os  Gover- 
nadores 5  de  que  Aííbnfo  Mexia  tomado  dif- 
fe ,  que  tal  não  havia  de  confentir ,  pois  íè 
tratara  tudo  aquilio  fem  fua  authoridade , 
fendo  a  fegunda  peíToa  do  Eílndo  em  car- 
go ,  que  a  elle  havia  ElRey  de  eílranhar 
mais  aquellas  coufas  que  a  todos  elles.  E 
com  quantas  razoes  António  de  Aliranda 
\hc  deo  5  não  o  pode  mover  a  coufa  algu- 
ma ,  porque  era  homem  mui  afferrado  a 
íeu  parecer.  O  que  fabido  por  Pêro  Maf- 
carenhas  ,  e  pelos  de  fua  valia  ,  requere- 
ram a  António  de  Miranda  ,  e  a  Chrifto- 
vão  de  Soufa  ,  que  pois  AíFonfo  Mexia 
não  queria  jurar  a  pauta  ,  nem  confentir  na- 
quellas  coufas ,  que  eram  pêra  paz ,  e  foce- 
go  do  Eílado  ,  (no  que  fe  queria  moílrar  par- 
te ^   e  claramente  fufpeiro    a  Rias  coufas ,  ) 

que 


236  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

« 

que  fe  não  dererminaíTe  aquelle  negocio  em 
Cochim  fenão  em  Coulao  ,  que  era  dalli  hum 
dia  de  caminho.  E  entendendo  elles  que  Lo- 
po Vaz  o  não  havia  de  querer,  por  terem 
iabido  que  toda  fua  efperança  eftava  no  Af- 
foníb  Mexia,  porque  quanto  ao  direito  ef- 
tava delle  bem  duvidofo  ,  como  na  verda- 
de eftava ,  fe  o  não  tomaram  tão  claramen- 
te a  Pêro  Mafcarenhas  todos  quantos  or- 
díram  aquella  tca  ^  e  como  elles  eftavam  apoC- 
tados  a  fazerem  em  tudo  a  vontade  a  Lopo 
Vaz  5  e  acabar-fe  já  aquella  contenda  ,  fi- 
zeram com  Pêro  Mafcarenlias  que  deixaíTe 
fentencear  aquelle  negocio  ,  pofto  que  A£- 
fonfo  Mexia  não  aílinaíTe  a  pauta  :  o  que 
elle  confentio  ,  porque  não  vieíTe  aquelle  ne- 
gocio ás  armas  pêra  mais  juíliíicação  fua  pê- 
ra com  ElRev.  Com  ifto  fe  foram  a  terra 
António  de  Miranda ,  e  Chriftovão  de  Sou- 
fa  ,  e  fe  recolheram  no  Mofteiro  de  Santo 
António  pêra  nomearem  os  Juizes  ,  inliftln- 
do  Chriftovão  de  Soufa  em  fe  lançar  fora 
Fr.  João  Dalvi  ,  e  que  em  feu  lugar  fe 
iTietteíTem  os  que  já  eftavam  declarados ,  no 
que  não  quiz  confentir  António  de  Miran- 
da até  o  fazer  a  faber  a  Lopo  Vaz  ,  que 
tomou  muito  mal  a  mudança  que  fe  queria 
fazer  nos  Juizes,  e  difle  bradando  alto,  que 
já  não  podia  foffrer  mais ,  e  que  bem  efcu- 
fado  fora  enganarem-no ,  e  trazcrcm-no  affi 

de 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  IX.  237 

de  Goa  ,  que  elle  tinha  diíTo  a  culpa,  e  que 
a  elle  António  de  Miranda  ,  e  a  todos  os 
mais  efpetaria  em  hum  pá  o  :  e  que  fe  fof- 
fem  logo  pêra  Pêro  Mafcarenhas  ,  porque 
fe  nao  quizelTe  confcntir  no  que  eftava  af- 
íèntado  ,  nem  elle  coníentia  cm  algum  dos 
Juizes  ,  nem  fe  queria  por  a  direito  com  peP- 
Iba  alguma  ,  que  elle  naquellc  galeão  pele- 
jaria contra  todos  ,  e  que  a  ventura  diria 
quem  era  o  Governador ;  e  que  elle  Antó- 
nio de  Miranda  daria  conta  a  Dcos  ,  e  a  EI- 
Rey  de  todas  as  defaventuras  que  fuccedef- 
fem  5  pois  elle  íó  fora  a  caufa  delias.  António 
de  Miranda  affrcntado  daquellas  palavras, 
lhe  refpondeo  ,  que  elle  não  enganava  a  nin- 
guém ,  antes  tinha  feito  o  que  devia  ao  fer- 
viço  de  Deos  ,  e  d'ElRey  ,  e  bem  ,  e  quie- 
tação naquelle  Eílado  :  que  elle  fe  queixaria 
a  feu  Rey  das  injúrias  que  lhe  alli  dizia , 
e  que  elle  era  o  que  não  queria  razão  ,  nem 
juíliça  ,  deíèntoando-fe  em  palavras ,  que  fe 
não  ouviram  bem  com  a  grande  revolta  dos 
que  fe  mettêram  em  meio :  e  aíll  apaixona- 
do ,  e  blazonando  fe  fahio  do  galeão ,  e  fe 
paífou  ao  de  Pêro  Mafcarenhas.  Sabendo 
clle  o  que  paíTava  ,  lhe  requereo  que  por 
virtude  da  pauta ,  ejuram.entos  feitos,  (pois 
Lopo  Vaz  quebrava  as  condições  delia  ,  e 
não  confentia  nos  Juizes ,  )  que  o  houveíTe 
por  Governador ,  conforme  aos  aíTentos  que 

ef- 


238  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

eftavam  feitos  ,  fem  mais  fer  ouvâdo  Lopo 
Vaz  ,  e  o  meímo  requerimento  lhe  fizeram 
CS  Fidalgos  que  alli  ellavam.  António  de 
Miranda  diíTe  que  lhe  obedecia ,  mandando 
fazer  hum  auto  ,  que  pois  Lopo  Vaz  que- 
brava os  contratos,  e juramentos  feitos  ,  que 
havia  Pêro  Mafcarenhas  por  legitimo  Go- 
vernador da  índia ;  e  logo  lhe  entregou  to- 
da a  Armada  que  tinha  a  feu  cargo  ,  que 
era  a  galé  baílarda ,  em  que  eílava  Eitor  da 
Silveira ,  e  a  ndo  de  Nuno  Vaz  de  Caftel- 
branco  ,  duas  caravelas ,  de  que  eram  Ca- 
pitães Vicente  Pegado  ,  e  João  de  Sá ,  hum 
galeão  de  que  era  Capitão  Simão  de  Mel- 
lo,  que  naquelle  tempo  não  eftava  nelle ,  e 
alguns  navios  de  remo ,  e  o  galeão  S.  Ra- 
fael 5  em  que  eílava  o  meímo  Pêro  Mafca- 
renhas. Com  Lopo  Vaz  ficaram  os  galeões 
S.  Diniz  ,  e  S.  Luiz ,  de  que  era  Capitão 
Martim  AíFonfo  de  Mello  Juzarte ,  e  o  Ça- 
morim  em  que  eftava  João  de  Mendoça ,  e 
ás  galés  de  Ruy  Pereira ,  e  António  da  Sil- 
veira ,  a  caravela  de  Fernão  de  Aloraes ,  e 
muita  fuftalha ,  que  eftava  no  porto  de  Co- 
chim  ;  e  aííi  fe  apartou  Pêro  Mafcarenhas 
com  a  fua  Armada  a  huma  parte  ,  pondo- 
íè  em  ordem*  de  peleja  ,  o  mefmo  fez  Lo- 
po Vaz  pêra  averiguarem  aquelle  negocio 
por  armas,  como  já  aconteceo  antreAuguf- 
to,  e  Marco  António  fobre  o  Império  de 

Ro- 


Década  IV.  Liv.  III.  Cap.  IX.  239 

Roma,  levando  todos  fua  artilheria ,  eaíTa- 
calando  fuás  armas ,  como  fe  cada  hum  deC- 
tes  Governadores    houvera   de  pelejar    com 
Rax  Soleimao    fe  paíTára  á  índia.    A  gente 
ordinária  de  Pcro  Mafcarenhas  bradava  por 
batalha  ,  dizendo  que  já  não  era  razão  fot- 
frer  tanto  a  Lopo  Vaz ,   de  forte  que  tudo 
era  huraa  confusão  ,   e  barbarice  que  met- 
tia  medo ,  e  efpanto  ,  porque  ,  fegundo  o  po- 
der de  ambos  eftava  igual ,  não  pudera  dei- 
xar de  haver  a  mor  deíaventura  do  Mundo  , 
porque   eílava  certo  não   fe  apartarem    fem. 
a  vitoria  de  alguma  das  partes  ^  e  aííi  o  que 
ficaíTe  com  o  Império  do  Oriente  ,  fobre  que 
contendiam,  havia  de  ferem  eílado  que  mui- 
to facilmente  o  poderia  logo  perder  ,   por- 
que  o   Çamorim  com    todos   os  Reys   do 
Malavar  eílavam  á  mira  com  grande  Arma- 
da ,    pêra  mandarem  dar  no  que  ficafíe ,   e 
folicitáram  os  Reys  deCananor,  e  Coulao , 
pêra  fe  alevantarem  logo  contra  aquellas  for- 
talezas ,   e  tudo  fe  perdera  ,  fe  Deos  o  não 
atalhara.  Os  proteftos  corriam  apreíTados  de 
parte  a  parte ,  defcarregando  hum  fobre  ou- 
tro toda    a  culpa  dos  damnos  que  fuccedel- 
fem.    António  de  Miranda   fentio-fe  muito 
culpado    em  ter  defcuberto  a  Lopo  Vaz  os 
Juizes  5   porque  dahi  nafceo  todo  o  mal ,  e 
foi  contra  o  juramento,  e  obrigação  que  ti- 
nha j  porque  fe  os  tivera  em  fegredo,  nem 

Lo- 


240  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Lopo  Vaz  foubera  quem  havia  de  julgar  a 
caufa  5  nem  houvera  mais  que  eíperar  fen- 
tença  ,  porque  a  hora  que  fe  norneaíTem  , 
fem  fe  bulirem  dalli  ,  fe  havia  de  determi- 
nar o  negocio  ;  e  por  evitar  tantos  damnos  , 
e  defaventuras  ,  dizem  ,  que  mandara  dizer 
em  fegredo  a  Lopo  Vaz ,  que  lhe  dava  fua 
palavra  de  votar  por  elle  ,  por  iíTo  que  fe 
quietaíTe,  como  fez  por  confelho  de  Affon- 
fo  Mexia ;  e  mandando  cham.ar  António  de 
Miranda  ,  pedio-Jhe  perdão  das  palavras  que 
lhe  diíTera  ,  e  depois  de  reconciliados  fez 
hum  termo  em  que  confentia  nos  Juizes ,  e 
a  requerimento  de  Pêro  Mafcarenhas  fe  mu- 
dou do  galeão  S.  Diniz  á  náo  S.  Roque, 
efoi  entregue  a  António  da  Silveira,  e  Pê- 
ro Mafcarenhas  fe  mudou  á  náo  Flor  de  la- 
mar  entregue  a  Diogo  da  Silveira  ,  e  am- 
bos juraram  de  os  entregar  a  António  de 
Miranda  quando  lhos  pediíTe.  Com  iílo  fe 
foram  a  terra  António  de  Miranda ,  e  Chri- 
ftovao  de  Soufa  com  todos  os  Fidalgos  pê- 
ra nomearem  os  Juizes. 


1 


DE- 


ECADA  (QUARTA. 
LIVRO     IV. 

Da  Hiíloría  da  índia. 


CAPITULO     I. 

Dos  Juíz-es  que  fe  accrefcentârani   de  V(h 
vo:  e  de  como  fe  de  o  a  fent  ença  por  Lo^ 
po  F^az  de  Sampaio :  e  de  como  Fe- 
ro Mafcarenhas  fe  embarcou 
pêra  o  Rcyno. 

EcoLHiDOS  Chriftovao  de  Soufa  ,  e 
António  de  Mirajida  em  Santo  An- 
tónio ,  hum  dia  pela  manhã  nomea- 
ram os  Juizes,  que  temos  dito,  eftando  na 
Capella  da  Igreja ,  onde  logo  fe  diíTe  huma 
MiíTa  ,  e  alevantando  o  Saniillimo  Sacramen- 
to ,  juraram  os  Juizes  de  bem  ,  e  verdadei- 
ramente julgarem  aquella  contenda  ;  e  o  Se- 
cretario 5  que. havia  de  tomar  os  votos  ,  tam- 
bém jurou  de  ter  em  íegredo  os  taes  votos , 
que  os  Juizes  ihe  haviam  de  dar  por  feus 
aíTinados  ,  e  que  os  não  moílraria  fenão  a 
ElRey  em  Portugal.  Eftando  já  a  coufa  deC- 
Couto.Tom.LP.L  Ct  ^^ 


24^  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ta  maneira  ,  apartou  António  de  Miranda 
a  Chriftcvao  de  Soufa ,  e  lhe  diííe ,  que  el- 
le  queria  accreicentar  mais  deus  Juizes  ,  que 
eram  Fr.  João  Dalvi  ,  e  Braz  da  Silva  \\e 
Azevedo  ,  o  que  Jhe  Chriílovao  de  Soufa 
eftranhou  ,  debatendo  com  elle  muito  ,  até 
que  lhe  prometteo  ,  íe  o  confentiííe,  de  dar 
feu  voto  por  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  que  o 
meímo  entendia  que  havia  de  fazer  D.  João 
Dcça  ,  porque  a  juíliça  citava  muito  clara 
por  eile ,  e  que  não  fazia  aquillo  fenao  por 
pacificar  ,  e  fatisfazer  a  Lopo  Vaz  ,  e  por 
quietação  da  índia  ;  c  tantas  couíiis  lhe  dif- 
fe  fobre  iíTo  ,  que  o  confentio  ,  fem  dar  con- 
ta a  Pêro  Mafcarenhas  ,  que  todos  andavam 
a  lhe  tomar  o  que  era  feu  :  E  certo  que  pa- 
receqcoufa  efcandalofa  a  deíle  Religiofo  Fr. 
João  Dalvi  querer-fe  quafi  por  força  metter 
reíle  negocio  ,  tanto  ,  que  a  primeira  vez 
que  Pêro  Mafcarenhas  teve  pejo  nelle  ^  lo- 
go fe  houvera  de  lançar  de  fora  ,  e  fegun- 
áo  a  inílancia  com  que  Lopo  Vaz  iníifria 
em  o  metter  por  Juiz  ,  parecia  que  lhe  ti- 
nha promettido  fentença  ,  ou  o  feu  voto  , 
em  que  fe  m.oíirava  fer  bem  fufpeito  ,  pois 
fe  aíiirmava  que  defcubrira  fua  tenção  con- 
tra a  obrigação  de  fua  proíilsao  ,  de  que  íe 
os  Religiofos  haviam  muito  de  aíFaílar ,  por-»- 
que  feu  officio  he  rogar  a  Deos  pela  con- 
fcrvação  dos  Reynos ,   e  das  Republicas ,  e 

dei- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  I.  245 

deixar  o  governo  delias  a  quem  os  Reys  as 
enconiineiidam  ,  que  são  Capiraes  ,  e  Caval- 
leiros  ,  que  com  as  armas  defendem  os  Ef- 
tados  ,  c  os  dilatam ,  ganhando  fama  per- 
pétua ,  e  gloria  eterna  ,  pelejando  pela  Fé  de 
Chriito  ,  que  os  bons  Religiofos  ganham 
com  orações  ,  e  lagrimas.  E  deixando  efta 
matéria  ,  tornando  ás  coufas  dantre  os  dous 
Governadores  Chriílovao  de  Souía  ,  e  An- 
tónio de  Miranda  ,  deram  juramento  a  Af- 
foníb  Mexia ,  e  a  D.  Vaíco  Deça  ,  que  en- 
tregariam aquella  fortaleza  de  Çochim  a 
qualquer  dos  dous  por  quem  fe  julgaílé  a 
Governança  ,  o  que  ellcs  fizeram  com  con- 
dição ,  que  juraflem  todos  os  que  aili  cíla- 
vam  ,  que  dando-íe  íentença  por  Pêro  Maf- 
carenhas  ,  tomavam  fobre  íi  a  elles  ,  e  Ai- 
res da  Cunha  Capitão  de  Couíão  ,  a  Pêro 
Vaz  Travaííos  ,  e  a  Diogo  Sancho,  e  aos 
moradores  de  Cochim  ,  aíTi  fuás  pcíFoas , 
como  fazendas  ,  e  lhe  fízelTem  dar  a  elie 
AíFonfo  Mexia  embarcação  pêra  o  Reyno , 
e  que  o  não  obrigaíTem  a  ficar  na  índia , 
o  que  clles  juraram  juntos  \  e  apartados  os 
Juizes  5  deixou-fe  ficar  dentro  cõm  elles  Chri- 
ílovão  de  Soufa  ,  fem  embargo  de  não  que- 
rer fer  hum  deiles  ,  o  que  lhe  António  de 
Miranda  eftranhou  ,  pedindo-lhê  fe  fahiíTe 
pêra  fora ,  tendo  elíes  aiTentado  ambos  que 
eftariam  ao  defpacho ,  o  que  Chriftovãô  át 

Q^ii  Sou- 


244  -^SIA  DE  Diogo  de  Couto 

Souía  não  quiz  fazer  ,  febre  o  que  alter- 
caram razoes  ,  e  fe  atearam  em  palavras, 
.a  que  os  Juizes  acudiram  mettendo-fe  em 
jneio ;  e  em  fím  Chriílováo  de  Soufa  fe  fa- 
■liio  pêra  fora  ,  entendendo  mui  bem  que  íe 
queria  roubar  a  juílip  a  Pêro  Mafcarenhas  , 
e  ficou  mui  rrifte  ,  e  arrependido  dos  dous 
Juizes ,  que  deixou  accrefcentar  de  novo  j  e 
vendo  que  a  coufa  toda  ficava  á  vontade 
de  Lopo  Vaz ,  foi-fe  embarcar  ,  e  entrando 
no  galeão  de  Pêro  Maícarenhas ,  chegando 
a  tile  mui  agaftado  ,  diíTe  :  S'us ,  façamos 
alforges  ^  e  partamos ,  que  tudo  he  por  de- 
7nais ,  e  calou-fe  pelo  juramento  que  tiiiha. 
■Bem  entendeo  Pêro  Mafcarenhas ,  que  tudo 
ficava  fobornado  por  parte  de  Lopo  Vaz ; 
mas  como  não  queria  mais  que  paz,  e quie- 
tação ,  deixou  julgar  o  negocio  como  qui- 
zeílem  ,  porque  bem  fabia  que  EiRey  lhe 
faria  juftiça.  E  querendo  os  Juizes  entrar  na 
matéria  que  levavam  já  bem  eíludada  por 
parte  de  Lopo  Vaz  ,  chegaram  D.  Vafco 
Deça  5  e  Simão  Caeiro  procuradores  de  am- 
bos os  prctenfores  ,  e  offereceram  fuás  ra- 
zoes ,  e  apôs  elles  entrou  o  Procurador  da 
Cidade  com  hum  requerim.ento  dos  Vcrea^ 
dores  ,  em  que  lhes  pediam  da  parte  de 
Deòs ,  e  d'ElRey  que  não  julgaílem  a  Go- 
vernança por  Pêro  Mafcarenhas,  porque  le 
O  faziam  j  juravam  de  defpovoar  a  Cidade, 

c  paf- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  I.  245- 

e  paíTarem-fe  a  terra  dos  Mouros  ,  offcre- 
cendo  pcra  iíTo  huip.as  razoes  mui  compri- 
das ,  que  por  taes  as  deixamos  ,  em  que  apon- 
tavam muitas  couías  contra  Pêro  Mafcare- 
Ilhas  5  porque  diziam  não  poder  Ter  Gover- 
nador. Fechados  os  Juizes  5  começaram  a  de- 
bater a  matéria  ,  em  que  gaíláram  parte  do 
dia  ,  e  da  noite  ,  em  que  os  caiados  todos 
de  Cochim  andaram  pelas  ruas  em  procif- 
soes  defcalços  ,  com  fuás  mulheres ,  e  filhos  , 
pedindo  a  NoíTo  Senhor  os  livraíTe  de  Pe- 
i"0  Maícarenhas  governar  ,  porque  receavam , 
que  fendo  Governador  fe  vingafle  de  todos 
pela  reíiílencia  que  lhe  fizeram.  Viftas  pelos 
Juizes  as  fuccefsoes  ambas  ,  os  autos  das  pof- 
fes  ,  e  juramentos  ,  e  as  razoes  de  parte  a 
parte  ,  e  depois  apartados  de  dous  em  dous  , 
defcutíram  a  matéria  ,  e  puzeram  fuás  ten- 
ções em  efcrito  ,  e  aífinando-fe  nelles  ,  os 
deram  ao  Secretario  ,  que  depois  de  os  ter  to- 
dos 5  os  apurou  ,  e  tomando  os  votos  ,  achou- 
fe  mais  hum  por  Lopo  Vaz  de  Sampaio , 
que  fegundo  ouvimos  dizer  a  hum  Fidalgo 
honrado ,  e  muito  velho  na  índia ,  foi  o  do 
P.  Fr.  João  Dalvi.  Sendo  vencidos  os  vo- 
tos por  parte  de  Lopo  Vaz ,  pronunciaram 
os  Juizes  a  Sentença  neíla  forma:  Vijios  ef- 
t€s  autos  ,  e  o  que  por  elles  fe  mojira  ,  jul- 
gamos  por  noffa  definitiva  Sentença  ,  que 
Lopo  Vaz  de  Sampaio  feja  Governador  nef- 

tas 


2^6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

tas  partes  da  índia  ,  e  que  Pêro  Mafca- 
venhas  Je  embarque  pêra  o  Reyno  ,  dando- 
fe-lhe  embarcação  conforme  a  fua  pejjoa  \  e 
quanto  aos  ordenados  fique  per  a  ElP^ey  os 
julgar  como  lhe  bem  parecer ,  e  ajji  todo  o 
mais  que  cada  hura  quizer  requerer,  E  aí- 
finados  todos  os  Juizes ,  publicou-íc  logo  a 
Sentença,  que  foi  dada  aos  vinte  e  liiim  de 
Dezembro.  Tanto  que  íc  publicou  ,  embar- 
cáram-íe  em  hum  barga:uim  António  de  Mi- 
randa  5  D.JoaoDeça,  Braz  da  Silva  ,^  Trif- 
tão  Dega  ,  e  foram  á  náo  de  Pêro  Mafca- 
renhas ,  que  eílava  com  Chriílovao  de  Sou- 
fa  ,  e  D.  Simão  de  Menezes  ,  e  prefentes 
todos  lhe  notificou  o  Secretario  a  Sentença 
que  Pêro  Mafcarenhas  ouvio  com  hum  roí- 
to  muito  feguro  ,  fcm  fazer  mudança  em 
coufa  alguma;  e  depois  de  a  ouvir  não  dif- 
fe  mais  fenao  que  ElRey  lhe  faria  juíliça. 
Dalli  fe  foram  á  náo  de  Lopo  Vaz  ,  c  lha 
publicaram  também  ,  que  a  ouvio  com  bem 
diíFerentes  exteriores  de  Pêro  Mafcarenhas  , 
porque  logo  wqiWq  ,  e  nos  ieus  fe  enxergou 
mui  fobcja  alegria  ,  dando  publicamente  os 
agradecimentos  aos  Juizes ,  e  pedindo  per- 
dão a  António  de  Miranda  ;  e  porque  aquil- 
Io  era  já  de  noite ,  a  paliaram  toda  no  feii 
galeão  em  bailos  ,  e  tangeres ;  e  pela  ma- 
nha emb<l"cando-íè  o  Governador  em  hum 
bergantim,  foi  correndo  todos  os  navios  da.. 

Ar- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  I.  247 

Armada  pêra  fegurar  os  Fidalgos ,  que  fo- 
ram do  bando  de  Pêro  Maícarenhas  ,  por- 
que receou  que  fe  quizeíTem  ir  pêra  o  Rey- 
no  ,  e  com  todos  íe  reconciliou  ,  apazigou  , 
e  quietou.  Dalli  fe  foi  a  terra,  onde  foi  re- 
cebido da  Cidade  com  pallio  ,  e  grandes  fef- 
tas  ,  dando  logo  ordem  á  carga  das  náos. 
Pcro  Mafcarenhas  não  fe  deíembarcou  ,  an- 
tes ficou  fempre  no  mar  ,  mandando  fazer 
preíles  as  coufas  neceíFarias  pêra  fua  embar- 
cação;  e  fendo  quinze  de  Janeiro  fe  embar- 
cou ,  entregue  por  mandado  do  Governador 
a  António  de  Brito ,  que  hia  rico  de  Malu- 
co,  e  era  hum  Fidalgo  muito  honrado  ,  que 
depois  de  fer  em  Portugal  cafou  com  hu- 
ma  irmã  de  Martim  Affonfo  de  Soufa  ,  que 
depois  foi  Governador  da  índia  ,  de  quem 
teve  huma  filha,  que  cafou  com  D.  João  da 
Silva  Conde  de  Portalegre  ,  de  quem  elle 
não  houve  filhos.  Primeiro  que  Pêro  Maf- 
carenhas íb  embarcaíTe  ,  mandou  citar  Lopo 
Vaz  pêra  em  Portugal  requerer  contra  elle 
a  Gov^ernança  da  índia  ,  aííi  pelos  ordena- 
dos ,  como  por  todos  os  próis  ,  e  percalços. 
Caílanheda  diz ,  que  depois  houvera  fenten- 
ça  contra  elle  pelos  ordenados ,  e  o  mefmo 
diz  Pêro  IMaphco  ,  que  o  fegue ;  e  accref- 
centa  mais  ,  que  fora  condemnado  o  mef- 
mo Lopo  Vaz  em  vinte  mil  cruzados  ,  que 
era  o  ordenado  de  dous  anãos ,  que  gover- 
nou 


248  ASIx\  DE  Diogo  de  Couto 

noLi  depois  de  aberras  as  fucceisòes  que  vie- 
ram do  Reyno.  João  de  Barros  ,  fc  nos  náo 
kmbra  mal,  diz,  que  foi  aleive  que  Cafta- 
nheda  aievaiitou  a  Lopo  Vaz  j  e  parece-me 
que  diz  niais  ,  que  bulcára  os  cartórios  pê- 
ra ver  eíla  Icntença  ,  e  que  em  neniium  a 
achara.  Fero  Malcarenlias  foi  bem  recebi- 
do d'ElPvCy ,  que  teve  feirtpre  muita  conta 
com  fuás  coufas  ,  e  lhe  deo  a  capitania  de 
Azamor  ,  e  depois  de  eftar  alli  alguns  an- 
nos  vindo  pêra  o  Reyno  perdeo-fe  em  hu- 
mas  caravelas.  Foi  efte  Fidalgo  filho  fegun- 
do  de  João  Mafcarenhas ,  e  neto  de  Nuno 
Mafcarenhas  irmão  do  Capitão  dos  Gine- 
tes Fernão  Martins  Mafcarenhas  :  foi  ca- 
fado  com  D.  Maria  filha  de  Fernão  Pe- 
reira Barreto  ,  de  que  houve  duas  filhas , 
Dona  Catharina  Pereira  Barreta  mulher  de 
D.  João  de  Caílel-branco  filho  do  Conde 
D.  Martinho  ,  e  D.  Elena  Mafcarenhas  ,  que 
cafou  com  D.  Pedro  Mafcarenhas  ,  que  foi 
por  Embaixador  a  Rom,a ,  e  depois  porVi- 
ib-Rey  da  índia.  Teve  mais  dous  filhos  baf- 
tardos  ,  João  Mafcarenhas  ,  e  Jeronymo  Maf- 
carenhas 5  foi  natural  da  Villa  de  Loulé  no 
Algarve.  Depois  deftas  diííerenças  (  porque 
não  houvcITe  outras  na  Lídia)  mandou  El- 
Rey  D.João  hum  regimento,  em  que  diz, 
que  abrindo-fe  as  fuccefsoes  da  Governança 
(da  índia ,  fe  o  que  aellas  fuccedeíTc  não  ef^ 

ti- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  I.  249 

tiveíFe  defde  o  Cabo  de  Çamorim  até  a  pon- 
ta de  Dio ,  náo  fe  eíperaíTe  pela  tal  peitoa  , 
e  íe  abrilTe  a  outra  íuccefsão  ,  ( o  que  já 
aconteceo  quando  fuccedeo  D.  Diogo  de 
Menezes  ,  como  em  feu  lugar  diremos.  ) 
Lopo  Vaz ,  depois  de  defpedir  as  náos  pê- 
ra o  Reyno ,  tendo  já  íabido  que  a  Arma- 
da dos  Turcos  fe  tornara  a  recolher  a  Suez  , 
tratou  de  a  ir  bufcar  ,  e  queim.ar  naquelle 
porto ,  o  que  poz  em  confelho  ,  e  foi  con- 
trariado de  todos  por  caufa  da  Armada  que 
o  Çamorim  tinha  feita  ,  •  aíTentando-fe  ,  que 
fe  mandaífe  o  Capitão  mor  áquelle  eílreito 
a  faber  a  certeza  delias  ,  e  que  nao  vindo 
pêra  o  anno  Governador  do  Reyno  ,  então 
as  poderia  ir  bufcar  com  mais  poder ,  e  ca- 
bedal. AíTentado  ifto  ,  defpedio  logo  Antó- 
nio de  Miranda  com  leis  galc()e3 ,  c  huma 
caravela ,  huma  g:úé ,  dez  navios  de  remo , 
em  que  hiam  os  Capitães  feguintes.  No  ga- 
leão S.  Diniz  ,  dlc  :,  Fernão  Rodrigues  Bar- 
bas no  galeão  S.  Rafael  ,  António  da  Sil- 
va no  Reys  Magos  ,  Ruv  Vaz  Pereira  no 
galeão  S.  Luiz  ,  Henrique  de  Macedo  no 
Çamorim  grande  ,  Lopo  de  Mefquita  no 
pequeno  ,  Ruy  Gonçalves  na  caravela  bi- 
cha ,  Ruy  Pereira  na  galé  baftarda.  Nos  na- 
vios de  remo  Francifco  de  Vafconcellos , 
Pêro  Celas  ,  Francifco  Alvares  ,  e  outros. 
Iriam  neíla  Armada  mil  homens  d'armas ,  e 

deo 


250  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

deo  cila  Armada  á  véla  cjuafi  juntamente 
com  as  náos  do  Reyno.  Lego  poucos  dias 
depois  mandou  o  Governador  feu  íobrinho 
Simão  de  Mello  ás  lihas  de  Maldiva  efpe- 
rar  as  náos  de  Meca  ,  e  levou  Jium  galeão , 
huma  caravela  ,  e  dous  ,  ou  três  navios  de 
remo  ,  e  de  fua  jornada  adiante  diremos. 
Em  quanto  o  Governador  fica  em  Cochim , 
entendendo  em  algumas  coufas  ncceílarias , 
tornaremos  ás  de  Maluco  que  nos  cham.am. 

CAPITULO      IL 

Do  que  pnjjou  Z).  Jorge  Capitão  de  Malu- 
co  com  D.  Garcia  Henrique  fobre  cer- 
tos apoiít amentos  que  levava  :    e  de 
como   mandou   a   Malaca   pedir 
foccorro  ,  e  prendeo  D.  Gar- 
cia em  ferros, 

A  Trás  temos  dado  conta  das  coufas  que 
em  Maluco  fuccedêram  com  a  chega- 
da de  D.  Jorge,  e  de  como  ficou  correndo 
em  tre.^oas  com  os  Caíklhanos.  Vindo  a 
niouçáo  em  que  D.  Garcia  íe  quiz  embar- 
car pêra  a  índia,  lhe  mandou  D.Jorge  no- 
tificar ,  que  ie  foíie  pela  via  de  Borneo , 
conforme  a  hum  regimento  que  levava  de 
Pêro  Mafcarenhas  ,  porque  defejava  de  fe 
fazer  íempre  aquella  derrota  por  fer  m.ais 
apreíTada  ,   que   a  que   fe  fazia   por  via  de 

Ban- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  II.  25'! 

Banda  :  que  por  fer  mais  apreíTada  ,  man- 
dou Anronio  de  Miranda  de  Brito  ,  íendo 
Capitão  de  Maluco  ,  defcubrir  o  anno  de  vin- 
te e  três  por  António  de  Abreu  feu  paren- 
te 5  que  foi  o  primeiro  que  por  ella  nave- 
gou ,  o  que  Fero  Maícarenhas  defejava  fe 
continuaíTe  ,  aíii  por  ler  mais  breve  a  jor- 
nada ,  como  por  grangear  o  commercio  ,  e 
amizade  daquelles  Reys ,  e  fenhores  das  Ilhas 
de  Borneo  ,  porque  tinha  por  noticia  que 
havia  nellas  muito  ouro  ;  e  a  principal  ra- 
zão era ,  porque  queria  tolher  aquella  nave- 
gação aos  Caílelhanos.  D.  Garcia  tomou 
iv.Cil  a  notificação  ,  porque  recebia  mui  gran- 
de perda  não  indo  por  via  de  Banda ,  por- 
que efperava  de  achar  alli  hum  junco  que 
o  anno  paíTado  mandara  a  Malaca  ,  e  man- 
dou dizer  a  D.  Jorge  ,  que  de  muito  boa 
vontade  fora  pela  via  de  Borneo ,  mas  que 
era  jornada  duvidofa  ,  porque  já  a  comet- 
téra  em  tempo  de  António  de  Brito,  levan- 
do muito  bons  Pilotos  ,  e  que ,  depois  de  an- 
dar muitos  dias  perdido  por  antre  aquellas 
Ilhas  5  tornara  arribar  a  Maluco.  D.  Jorge 
o  efcufou  5  ordenando  de  mandar  outrem 
defcubrir  aquelle  caminho.  D.  Garcia  tra- 
tou de  o  eílorvar ,  porque  indo  alguém  que 
não  foíle  elle  ,  ficava  culpado  com  o  Go- 
vernador ,  e  diíTe  a  D.  Jorge ,  que  lhe  pa- 
recia efcufado  mandar  navio  a  Malaca,  por- 
que 


i^z  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

que  fe  era  a  pedir  íbccorro  ,  que  elle  tinha  ll 
já  mandado  a  iíTo  Manoel  Lobo  ,  que  de-.  || 
via  de  fer  já  lá  ,  e  que  a  reípofta  nao  po- 
deria tardar  ,  porque  como  fe  foubefle  dos 
Cartel hanos ,  forçado  fe  haviam  de  apreíTar: 
e  que  vendo  lá  outro  navrio  com  gente  ,  ha- 
veriam que  a  neceílidade  não  era  grande  , 
pois  a  podia  efcuíar  ,  e  ainda  o  faria  mais 
vagarofo  fe  lhe  levaíTc  recado  ,  que  ficavam 
em  tregoas  com  os  Caftclhanos :  que  elle  ti- 
nha por  novas  que  Martim  Inhcgues  orde- 
nava hum  navio  pêra  mandar  com  recado 
á  nova  Hefpanha  a  pedir  náos  ,  e  gente  : 
que  elle  queria  ir  efpeiar  eíle  navio  ,  que 
havia  de  levar  o  recado  ,  e  tomallo  ,  que 
lhe  mandaíTe  armar  pcra  iíTo  o  feu  navio , 
e  outros  alguns.  D.  Jorge  nao  lhe  acceitou 
os  cumprimentos  ,  fobre  o  que  D.  Garcia 
lhe  fez  grandes  proteílos ,  com  o  que  Dom 
Jorge  deílílio  do  navio ,  que  queria  mandar 
a  Malaca  ,  e  D.  Garcia  fe  começou  a  ne- 
gociar  pêra  fe  partir ;  e  porque  receou  nao 
lhe  deixar  D.  Jorge  embarcar  vinte  homens 
de  fua  obrigação  ,  pela  neceílidade  que  ha- 
via dclles ,  lhe  deo  cem  bares  de  cravo  ,  e 
paflbu-lhe  huma  efcritura  ,  que  em  Malaca' 
os  daria  a  feus  procuradores  ,  por  eftarem 
já  embarcados ,  com  tanto  que  lhe  deixaíTe 
embarcar  a  gente  de  fua  obrigação ,  o  que' 
lhe  elle   prometreo  ^   ( couía   mui  ordinária 

na 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  II.  2^^ 

na  índia  eni  alguns  Governadores ,  e  Capi- 
tães ,  dar-lJies  pouco  de  a  deixarem  em  tra- 
balhos ,  e  perigos  ,  porque  não  tratam  mais 
que  de  fi ,  e  de  levarem  com  que  comprar 
rendas  no  Reyno  ,  e  depois  em  fuás  quin- 
tas aos  foalheiros  ,  quando  vam  as  novas 
da  índia  ,  perguntam  fe  ainda  vive  ,  e  fe 
eílá  ainda  em.  pé  :  no  que  tem  muita  razão  , 
porque  os  mais  delles  a  deixaram  ,  e  fuás 
fortalezas  pêra  efpirar. )  E  tornando  a  Dora 
Jorge  ,  depois  de  ter  feito  aquelle  partido 
tão  aííi-ontofo  ,  cahio  que  fazia  erro  em  não 
obrigar  a  D.  Garcia  a  ir  pela  via  de  Bor- 
jQco  ,  como  lhe  mandara  Pêro  Mafcarenhas , 
pelo  que  lhe  tornou  a  mandar  fazer  novo 
requerimento  fobre  iíTo.  E  porque  de  todo 
lhe  pareceo  fer  obrigação  avifar  o  Capitão 
de  Malaca  das  coufas  dos  Caílelhanos  ,  man- 
dou huma  corocora  mui  ligeira  ,  e  nella 
três  Cavalleiros  mui  honrados  ,  chamados 
•Vafco  Lourenço  ,  Diogo  Cão ,  e  Gonçalo 
Vellofo  ,  e  hum  Piloto  Caílelhano ,  a  que 
não  achámos  o  nome ,  dando  por  regimen- 
to a  eíles  homens  que  foíTem  por  Borneo , 
c  notaíTem  bem  aquella  derrota  ,  e  fe  vif- 
fem  com  aquelle  Rey  ,  e  airentaíTem  com 
filie  pazes  ,  e  amizades ,  mandando-lhe  por 
elles  hum  prefente  de  brincos ,  e  couías  cu- 
riofís  ,  em  que  entrava  hum  panno  de  raz 
de  figuras    antigas  ,   e  grandes  muito  ricoj 

ef- 


25'4  ÁSIA  t)E  Diogo  de  Couto 

efcrevendo  ao  Capitão  de  Malaca  ,  e  ao  Go- 
vernador muito  largamente  iodas  as  couías 
fuccedidas  em  íeu  tempo  naqiiellas  Illias  : 
neíla  volta  foram  também  cartas  de  Dom 
Garcia .  e  de  Cacliil  Daroez  pêra  o  Gover- 
nador, em  que  lhe  diziam  muitos  males  de 
D.  Jorge  ,  e  deíla  jornada  adiante  daremos 
razão.  D.  Garcia  ficou  negociando  hum  jun- 
co feu  pêra  íe  ir  pêra  a  índia  ,  e  fuccedeo 
lio  mefmo  tempo  falecer  Martim  Inhegues 
Capitão  dos  Caílelhanos  ,  e  Ter  eleito  hum 
Fernão  de  la  Torre  ,  que  D.  Jorge  mandou 
viíitar  ,  e  faber  delle  fe  queria  guardar  as 
tregoas  que  citavam  feitas  ,  o  que  elle  não 
quiz  ,  porque  era  homem  alterado  ,  e  de 
não  muito  governo  ,  com  o  que  fe  tornou 
a  atear  a  guerra  ,  mandando  o  de  la  Tor- 
re armar  huma  galeota  pêra  fazer  guerrd 
aos  noííos.  Sabido  por  D.  Jorge ,  por  não 
ter  .nenhum  navio  de  rem,o  poíTante  pêra 
contra  aquella  galeota  ,  mandou  logo  armar 
outra  ,  a  que  fez  dar  muita  preíTa  ,  toman- 
do porá  ifib  quantos  carpinteiros  havia  na 
terra  ,  em  que  entravam  alguns  que  traba- 
lhavam no  junco  de  D.  Garcia  ,  fobre  o 
que  tiveram  muito  ruins  palavras  ,  em  que 
chegou  D.  Garcia  a  punha r  da  efpada  ,  e 
niettendo-fe  muitos  no  meio  ,  fe  recolheo 
D.  Garcia  pêra  fua  cafa.  D.  Jorge  induzi- 
do de  homens  mal  inclinados ,  (que  fempre 

nelr 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IT.  25'^ 

•nefte  negocio  aíTopram  bem  o  fogo  , )  man- 
dou pelo  Ouvidor  tomar  a  menagem  a  Dom 
Garcia  ,  e  que  fe  vieííe  metrer  na  fortaleza. 

ID.  Garcia  zombou  do  Ouvidor  ,  ao  que 
acudio  D.  Jorge  a  repique  de  lino  ,  nego- 
ciando-fe  pêra  o  ir  prender ,  mandando  dian- 
te o  Alcaide  mor  a  lhe  requerer  que  fe  fof- 
fe  pêra  a  fortaleza.  D.  Garcia  eftava  com 
quarenta  homens  poftos  em  armas:  dando- 
lhe  o  Alcaide  mor  o  recado  ,  dizcndo-lhe 
que  D.  Jorge  hia  por  caminho  ,  que  havia 
deefjufar  pendenças  ,  refpondeo  ,  que  fe  ei- 
]e  lá  foííe  ,  que  clle  o  fahiria  efperar  fora. 
Sabido  por  D.Jorge,  m.andou  aííeíiar  algu- 
inas  peças  de  artilheria  nas  cafas  de  D.  Gar- 
cia pêra  lhas  derribar,  mandando-lhe  fazer 
primeiro   notificação   pelo  Alcaide  mor  ,    e 

'  por  Triftão  Vieira  ,  que  era  amigo  de  Dom 
Garcia ,  que  lhe  diíTe  tantas  coufas ,  que  fe 
fahio  ió^  de  caia  ,  e  chegando  á  fortaleza , 
diíTe  a  D.Jorge:  Eis-me  aqui  ^  que  me  que- 
reis ?  D.  Jorge  lhe  tomou  a  menagem  ,  e 
mandou  fazer  de  tudo  hum  auto  pelo  Ou- 
vidor ,  ficando  na  fortaleza  alguns  dias  pre- 
zo ,  em  que  o  Rey  de  Geilolo  por  par- 
te dos  Caftelhanos  começou  a  fazer  guerra 
aos  noíTos  com  Armadas  pelo  mar ,  dando 
nos  lugares  d'ElRey  de  Ternate.  D.  Jorge 
acudio  com  algumas  corocoras  que  man- 
dou em  bufca  dos  inimigos.  Vifto  por  to- 
dos 


1^6    ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

dos  os  da  fortaleza  a  guerra  travada  ,  pedi- 
ram a  D.Jorge  foltaíTe  D.  Garcia,  que  era 
hum  Fidalgo  tão  honrado  ,  e  que  acabara 
de  ier  Capitão  daqueíla  fortaleza  ,  e  que  os 
Mouros  andavam  efcandalizados  de  ver  an- 
tre  cllesaquellas  diíTcnsoes  i  mas  como  Dom 
Jorge  eílava  teimolb  ,  diíTe  que  aífi  prezo 
o  havia  de  mandar  á  índia  :  com  o  que  Dom 
Garcia  lhe  mandou  requerer  que  o  foItalTe, 
e  quando  nao ,  que  o  prendeíTe  em  ferros , 
ienão  que  fe  havia  de  ir  pêra  fua  cafa ; 
(iílo  lhe  mandou  dizer ,  porque  fcmpre  cui- 
dou que  D.  Jorge  nao  quizeííe  chegar  com 
gWc  ao  cabo  :  )  Mas  D.  Jorge  ,  que  eílava 
com  fua  paixão  ,  lhe  mandou  lançar  hum 
bom  grilhão  ,  com  o  que  os  amigos ,  e  cria- 
dos,  que  feriam  perto  delincoenta,  fe  amo- 
tinaram ,  tratando  de  o  ir  tirar  da  fortale- 
za ,  mas  não  puderam  :  pelo  que  fe  deter- 
minaram de  fe  irem  pêra  hum  lugar  forte 
do  Sertão  ,  do  que  deram  conta  a  Cachil 
Daroez  ,  pêra  de  lá  mandarem  requerer  a 
D.  Jorge  foltaíTe  D.  Garcia  ,  fenao  que  iè 
paííariam  pêra  os  Caílelhanos.  Eíles  tratos  ; 
defcubrio  hum  deíles  a  hum  Fernão  Bal-  : 
daya  ,  por  fiber  que  o  havia  de  dizer  logo  a  : 
D.  Jorge  ,  como  fez  :  pelo  que  determinou  i 
de  prender  os  principaes  da  conjuração  ,  a  : 
que  acudio  Simão  de  Vera  ,  e  outro  ,  di-  ( 
zcndo-lhe  que  melhor  feria  foltar  D.  Gar- 
cia^ 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  III.  ^^'J 

cia ,  e  diílimular-fe  tudo  ,  como  logo  fez  , 
fazendo-fe  amigos ,  e  rompendo  as  dcvaílas 
ficaram  correndo  em  amizade. 

CAPITULO     III. 

De  como  os  ãe  D.  Garcia  o  induziram  que 

prendejje  D,  Jorge  ,  e  de  como  o  fez , 

e  fe  metteo  na  fortaleza, 

OS  amigos  de  D.  Garcia  ,  c  todos  os 
que  pretendiam  ir  com  elle  pêra  a  ín- 
dia ,  não  ficaram  fatisfeitos  deitas  amizades  y 
receando  que  fe  duraffem  até  fe  embarcar, 
iiáo  levaíTe  todos  ,  nem  era  razão ,  porque 
ficaria  a  fortaleza  fò.  Pelo  que  começaram 
a  femear  novas  zizanias  3  perfuadindo  a  Dom 
Garcia  fe  não  fiaíTe  de  D.  Jorge  ,  que  por 
derradeiro  era  amigo  reconciliado.  Tanto 
lhe  diíTeram  diílo ,  que  fizeram  com  elle  an- 
dalTe  com  o  olho  fobre  o  hombro ,  come- 
çando a  andar  acompanhado  dos  induzido- 
res.  Por  outra  parte ,  alguns  que  fe  moftra- 
vam  familiares  de  D.  Jorge  ,  o  avifavam , 
que  não  fe  fiaíTe  de  homem  a  quem  tinha 
efcandalizado ,  porque  a  todo  o  tempo  que 
pudeíTe  fe  havia  de  fatisfazer ;  e  que  fabiam 
que  D.  Garcia  dava  muitos  avifos  aos  Caf- 
íelhanos  ,  e  trabalhava  tudo  o  que  podia  por 
Cachil  Daroez  fe  alevantar  contra  a  for- 
taleza 5  e  que  provocava  os  Ternatezes  ao» 
Couto^  Tom,  L  P.  /.  R  odia- 


2)8   ÁSIA  DE  Diogo  de  Coxtto 

odiarem.  E  não  parando  aqui  o  negocio , 
luccedeo  vir  EIRey  de  Baclião  á  noffa  for- 
taleza a  negocio,  e  tendo  llias  eftancias  fo- 
ra, huma  noite  deram  huns  poucos  nellas , 
e  matando-lhe  quatro  ,  ou  fmco  homens ,  e 
ferindo-lhe  muitos ,  tudo  a  fim  de  o  omizia- 
rem  com  D.  Jorge.  x\o  outro  dia  indo  El- 
Rey  á  fortaleza  a  fazer  queixas  daquillo  , 
]he  íahíram  Triftao  Vieira  ,  AíFonfo.  Gen- 
til 5  e  Luiz  Dias ,  (que  diziam  foram  os  da 
alhada ;  )  e  como  fabiam  ao  que  hia  ,  o  ti- 
raram diíTo  5  affirmando-lhe  que  D.  Jorge 
lhes  mandara  fazer  aquillo  em  vingança 
da  morte  de  certos  Portuguczes  ,  que  em 
Bachão  mataram  a  ièu  irm.ao  D.  Triílão  de 
Menezes  ,  e  dos  juncos ,  e  cravo  que  lhes 
tomaram ,  como  na  terceira  Década  fe  con- 
ta, o  que  tudo  foi  fácil  a  ElRey  de  crer, 
e  deixou  dalli  por  di"inte  de  ir  á  fortaleza , 
c  eíleve  de  todo  pêra  fe  conjurar  cem  Ca- 
chil  Daroez ,  e  darem  de  fobrefalto  na  for- 
taleza ,  e  tomarem-na ;  mas  ordenou  Deos 
que  foíTe  D.  Jorge  avifado  defte  negocio , 
e  de  todas  as  mais  coufas  ,  em  aue  o  cul- 
pavam  ,  de  que  logo  mandou  tirar  huma 
devaííii  5  cm.  que  fe  acharam  culpadas  as  pef- 
foas  que  aííima  nomeámos  ,  e  outros  que 
foram  avifados ,  e  fe  acolheram  pêra  o  ma- 
to :  pelo  que  D.  Jorge  fe  vio  com  ElRey 
de  Bachão  ,  e   lhe  contou  as  coufas  como 

paf- 


Década  TV.  Liv.  IV.  Cap.  IIL  25*9 

paíTárara  ,  com  o  que  ficou  delalivado  ,  e 
quieto ,  e  tornou  a  correr  em  amizade  com 
elle.  Nao  ceíTáram  por  aqui  a<5  maldades 
dos  da  parte  de  D.  Garcia ,  pelo  que  deter- 
minou D.  Jorge  de  o  mandar  pêra  Talan- 
game  ,  aue  era  outro  porto  da  Ilha  onde 
as  na  os  lurgem  :  e  diíto  deo  conta  ao  Al- 
caide mor  5  e  ao  Baldaya ,  que  ^ou  por  fe- 
rem amigos  de  D.  Garcia  ,  ou  por  quere- 
rem ver  paz  ,  e  quietação,  lhe  aconíèlhá- 
ram  ,  que  devia  de  diíllmular  com  aquillo 
por  nao  renovar  chagas  paíTadas  ,  o  que  cl- 
ie  fez,  porque  também  defejava  quietação. 
Mas  os  máos  homens  que  não  defcançavam 
em  quanto  nao  viíTem  nquelles  dous  Fidal- 
gos baralhados  ,  lançaram  pela  povoação 
huma  fama  íiirda  d'amigo  em  amigo ,  que 
D.Jorge  mandava  matar  D.Garcia.  Depois 
de  fe  ido  divulgar,  fuccedeo  que  hum  ne- 
gro ,  que  D.  Jorge  levou  da  índia  chama- 
do Migue]  Nunes ,  induzido  parece  por  ef- 
tes  tecedores  ,  em  muito  fegredo  foi  dizer 
ao  Feitor ,  que  D.  Jorge  lhe  mandava  ma- 
tar D.  Garcia  ,  e  que  por  íhe  não  parecer 
aquillo  bem,  fe  queria  ir  perar  os  Caftelha- 
íios*  'O  Feitor  parecendo-lhe  aquillo  muito 
"grave ,  aconfelhou  ao  negro  que  avifaíTe  Dom 
Garcia ,  o  que  elle  diílc  que  nao  havia  de  fa- 
zer ,  mas  que  também  não  havia  de  com- 
metter  hum  tão  grande  crime.  O  Feitor  Ihè 
-noj  R  ii  dit 


a6o  ÁSIA  x)E  Diogo  de  Couto  ' 

difle  que  diffimuIaíTe ,  c  laao  fe  paíTaíTe  aos 
jCaílelhanos : ;,  por  não  íaberem  Já  aquellas 
defavcnças-,  ficando  íurpenío  naquella  maté- 
ria ,  lobre  que  deo  mil  voltas ,  cuidando  íe 
feria , verdade  5  ou  não;  e  porque  tudo  po- 
dia íer ,  determinou  de  o  defcubrir  a  Dom 
Garcia  ,  debaixo  de  graves  juramentos  ,  pê- 
ra andar  recatado  ,  porque  queria  ataliiar 
tamanha  defaventura  ,  fe  era  verdade  que 
D.  Jorge  atentava  :  e  aíTi  lho  dilTe,  duvi- 
dando porém  poder  conceber  D.  Jorge  em 
feu  peito  coufa  tão  fea ;  mas:  como  as  cou- 
fas  que  tocam  á  vida  de  hum  homem  não 
lie  bem  ficarem  em  dúvida.,  quiz-le  fcgurar 
D.  Garcia.  E  dando  conta, daquelle  negocio 
a  Manoel  Falcão  ,  a  Diogo  da  Rocha ,  e 
íi  Manoel  Botelho  5  (de  quem  era  mui  gran- 
de amigo, ,)  e  como  parecia  que  o  demó- 
nio andava  nas  CQuías  delia  Ilha  ,  entre  os 
noíTos  íemeando  zizanias  yc  díícordias ,  acon- 
felháram-lhe  eíles ,  que  cumpria  a  f  ja  vida 
matar  D.  Jorge  ,  tirando  Manoel  P^aleão , 
que  lhe  diííe ,  que  muito  melhor  era  pren- 
dello :  e  que  tiraíTe  devaíla  de  fuás  culpas;, 
G  o  mandafiTe  á  índia,  c  que  ficaíTe  cIJe  por 
Capitão  até  o  Governador  prover  aquella 
fortaleza.  Ifto  foou  melhor  a  D.  Garcia,  e 
dando  conta  de  tudo  a  Cachil  Daroezij  e'á 
ElRey  de,  Bachap  ,  pedindo-lhes  favor  pe- 
ia iffo,   que  lhe  eljes  promettêram  ( ficando 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  III.  261 

contentes ,  e  alegres  de  verem  antre  aqucf- 
jes  dous  Fidalgos  tampinhas  diícordias ,  por- 
que por  derradeiro  eram  Mouros  ,  e  folga- 
vam com  o  nolTo  damno.  )  Succedeo  nefte 
tempo  5  em  que  eílas  meadas  fe  ordíram  ,  man- 
dar D.  Jorge  a  Cachil  Daroez  que  foíTe  de 
Armada  á  Ilha  de  Maquuíe ,  com  quem^  fe 
embarcaram  a  mor  parte  dos  criados ,  e  ami- 
gos de  D.  Jorge.  O  que  vendo  D.  Garcia , 
pareceo-lhe  que  o  tempo  lhe  dava  todas  as 
occaíiôes  pêra  fua  prctençao  ;  pelo  que  não 
quiz  defcuidar-fe  nellas  ,  traçando  com  os' 
am.igos  o  modo  de  como  prenderia  D.Jor- 
ge; e  porque  tinha  m.ui  grande  inconvenien- 
te no  Alcaide  mor  ,  ordenou  com  hum  Fran*- 
cifco  deCaílro,  que  oconvidaíTe  o  dia  que' 
elle  tinha  aprazado  ,  como  fez ,  e  o  levou 
a  huma  quinta  no  lugar  que  cham^am  Odo- 
loco  ,  huma  légua  da  fortaleza  ,  e  na  fua 
envolta  foram  a  m.ór  parte  dos  moradores , 
e  criados  de  D.  Jorge  ,  que  ficava  fó  na 
fortaleza.  Sabendo  I).  Garcia  que  D.  Jor« 
ge  acabara  de  jantar ,  mandou  Manoel  Fal- 
cão que  lefoííe  pêra  elle  ,  e  armaíTem  jogo 
de  tavolas  ,  (como  muitas  vezes  faziam.  ) 
Eeikndo  D.Jorge  embebido  no  jogo  ,  bem- 
defcuidado  do  que  fe  lhe  ordenava ,  entra- 
ram pela  fortaleza  Pêro  Botelho  ,  TrilMo 
Vieira,  e  AíFoníb  Gentil  (que  já  eram  per- 
doados do  cafo  d'ElRey  deBachão)  levan- 
do 


202  ÁSIA  DE  Diogo  de  Coxjto 

do  ordem,  do  que  haviam  de  fazer  ,  hum 
que  tomaíTe  ã  porra  da  fortaleza  ,  e  outro 
a.efcada ,  porque  nao  fubiíTe  alguém  ,  e  ou- 
tro que  fecliafle  as  portas  por  fora  a  alguns 
criados  que  eftavam  em  fuás  cafas  dormin- 
do 5  porque  nao  pudeíTem  acudir  ao  reboli- 
ço. Feito  iílo  3  entrou  D.  Garcia  com  outros 
armados  ;  e  logo  os  que  tinham  cuidado  das 
portas  as  fecharam  ,  e  fubindo  aífima ,  che- 
gando-fe  a  D.  Jorge ,  liou-fe  com,  eile ,  di- 
:^endo  :  Eftai  prezo ,  e  Manoel  Falcão  ,  e 
os  mais  o  ajudaram  liando-fe  com  elle  ,  e 
os  outros  com  alguns  criados  que  alli  efta- 
vam.  D.Jorge  começou  a  bradar:  Traição  ^ 
traição.  Humi  pagem  efcapulindo  dalli  teve 
tal  acordo  que  foi  repicar  o  fino.  D.  Gar- 
cia ,  e  os  outros ,  que  eftavam  ferrados  em 
D.Jorge,  tiveram  muito  trabalho  em  o  der- 
ribar ,  porque  era  homem  de  grandes  for- 
ças ,  e  de  grande  animo,  e  com  a  paixão 
de  fe  ver  affi  tratado  ,  bracejava  ,  perneava , 
e  mordia  de  maneira  ,  que  quafi  o  nao  po- 
diam ter,  e  fempre  bradou,  dizendo:  Trai- 
dores ,  matai-me ,  não  me  affronteis ,  mas  em 
fim  como  os  outros  eram  muitos  ,  depois 
de  grande  efpaço  deram  com  D.  Jorge  no 
cháo ,  e  lhe  deitaram  o  próprio  adobe ,  que 
eile  mandou  lançar  a  D.  Garcia ,  e  toman- 
do-o  nos  ares  deram  com  elle  em  huma  maf- 
morr^  debaixo  do  cimo  ,  onde  o  amarra-, 
o  b  ram 


i 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IV.  263 

ram   a  humas  camarás   de  falcão  pêra  eílar 
mais  feguro. 

CAPITULO     IV. 

Do  que  fizeram  os  amigos  de  D.  Jorge  fia- 
bendo  fua  prizao  :  e  das  coufas  que  fuc^ 
cederam  até  o  foliarem  :   e  do  que 
aconteceu   aos  que  J).  Jorge   ti- 
nha mandado  a  Borneo, 

O  repique    do  ílno ,   que  o  moço  fez 
acudio  o  Feitor ,  que  poufava  fora ,  e 
outros  Portuguezes  com  armas  ,   fem  fabe- 
rem  o  que  aquillo  era  ,    e  achando  as  por- 
tas fechadas  ,    cuidando  fer  traição ,  come- 
çaram a  lhe  dar  vaivéns,  e  outros  trazerem 
efcadas  para  fubirem  por  ellas  ,  fazendo  hu- 
ma  grande  matinada.  Aqui  acudio  D.  Gar- 
cia  ao  muro  ,   vendo  aquelle  alvoroço  ,    e 
lhes  diííe  :  Senhores ,  ajjocegai  ,  que  a  forta- 
leza eftd  por  ElB^ey  de  Portugal ,   e  todos 
fomos  feus  v  a  ff  alio  s  ,  e  por  defejar  a  paz  , 
efocego  d.ella  ,  fiz  efte  negocio ,  contando-Ihes 
tudo  o  que  paílava  ,  com  outras  couías  que 
mais  accrefcentou  :  Porijfo  vos  peço  que  ha- 
jais por  bem  o  que  tenho  feito  ,  e  defta  for- 
taleza eu  tomo  entreza ,  e  delia  darei  con- 
5  ta  a  ElRey  ,   e  ao  feu  Governador  da  In- 
*  dia.  O  Feitor  por  fe  achar  culpado  naquei- 
le   nesocio   em    lhe   defcubrir   a  velhaca  ria 

do 


264  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

do  negro  ,  com  muita  paixão  interrompeo 
a  falia  a  D.  Garcia  ,  queixando-fe  deile  a 
grandes  brados  ,  e  deílemperando-fc  bem 
em,  palavras.  D.  Garcia  lhe  pedio  Te  re- 
çolhcíTe  5  e  que  correílb  com  feii  officio , 
que  da  prizao  de  D.  Jorge  elle  daria  con- 
ta a  ElRey  ,  com  o  que  todos  fe  reco- 
lheram 3  por  não  haver  aili  que  fazer.  Náo 
tardou  muito  o  Alcaide  mor  ,  e  os  mais 
amigos  de  D.  Jorge,  que  eram  idos  ao  ban- 
quete 3  e  fabendo  o  que  paliava ,  foi  a  fua 
paixão  tão  grande  que  trataram  de  entrar 
a  fortaleza ,  c  foltar  D.  Jorge ,  e  aíTi  fe  ar- 
maram ,  e  foram  demandar  a  fortaleza  com 
efcadas  ,  machados ,  e  outros  petrechos  pê- 
ra quebrarem  as  portas ,  começando  de  íu- 
bir  ao  muro.  A  ifto  acudio  D.  Garcia  com 
os  da  fua  valia  ,  e  entre  todos  fe  começou 
liuma  grande  briga.  EiRey  de  Bachao  com 
muita  gente  acudio  logo  por  parte  de  Dom 
Garcia  ,  com  diíUmulaçao ,  moftrando  que 
vinha  apaziguar,  e  trazia  iiuma  adarga  em- 
braçada  ,  e  huma  lança  nas  mãos  ,  requeren- 
do ao  Alcaide  mòr ,  e  aos  mais ,  que  fe  re- 
colheíTem  ,  que  aquelle  negocio  não  fe  ha- 
via de  fazer  por  armas  :  e  que  pois  todos 
eram.  naturaes ,  e  vaííallos  d'ElRey  de  Por^ 
tugal ,  entendeflem  que  não  era  ferviço  aven- 
lurarem-fe  tantos  homens  por  hum  íb ,  po- 
idendo-fe  pacificar  tudo  fem  tanto  damno, 

CO- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IV.  265' 

como  fe  ordenava ,  que  o  tempo  curava  tu- 
do ;  que  nao  fe  caníhlTem  ,  que  aquillo  íe 
acabaria  em  bem  de  D.  Jorge.  Com  ifto  fe 
recolheram  todos  muito  trirtes.  Eílas  novas 
correram  logo  por  aquellas  Ilhas,  até  chega- 
rem a  Cachil  Daroez  ,  que  andava  de  Ar- 
||  mada.  Os  amigos ,  e  criados  de  D.  Jorge , 
que  com  elle  andavam  ,  que  eram  quafi  to- 
dos os  que  tinha  em  as  fabendo  ,  logo  lliQ 
requereram  que  fe  foiTe  pêra  Tcrnate  pê- 
ra acudirem  aquellas  coufas ,  o  que  Cachil 
Daroez  fez.  O  Alcaide  mór  em  chegando 
a  Armada  ajuntou  todos  os  amigos  da  obri- 
gação de  D. Jorge,  que  com  elle  andavam, 
que  feriam  quarenta  ,  determinou  de  o  ir 
foltar,  e  quando  o  não  pudeíTe  fazer,  paf- 
farem-fe  todos  pcra  os  Caílelhanos ,  que  fe 
gloriavam  deíle  fucceíTo.  Niílo  os  favorecia 
hum  irmão  d'ElRev ,  chamado  Cachil  Via- 
co  5  (hum  dos  fete  baílardos  que  Bolufe  te- 
ve,) que  era  grande  amigo  de  D.Jorge,  e 
inimigo  de  Daroez  ,  por  lhe  entender  fuás 
velhacarias.  A  primeira  coufa ,  que  o  Alcai- 
de mór  fez ,  foi  impedir  huma  devaíla  que 
D.  Garcia  tirava  de  D.  Jorge ,  em  que  tef- 
temunhavam  todos  os  da  conjuração  de  Dom 
Garcia ,  vindo  com  embargos  a  ella ,  pro- 
teílando  por  parte  de  D.  Jorge  de  lhe  não 
prejudicar.  Os  da  parte  de  D.  Garcia  tam- 
bém fe  ajuntaram  contra  aquelle  bando ,  de 

que 


a6ó   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

que  era  cabeça  o  Alcaide  mor ,  tratando  de 
o  matarem  ,  porque  os  outros  todos  fem  el- 
le  não  fariam  coula  alguma.  Aos  da  parte 
contraria  favorecia  ElRey  de  Bachao ,  e  fi- 
cava o  partido  muito  de  ventagem  ,  pelo 
que  o  Alcaide  mor  tratou  com  Cachil  Via- 
co  de  fe  irem  todos  os  de  feu  bando  pê- 
ra a  Serra ,  e  de  lá  requererem  a  juftiça  de 
D.Jorge,  e  quando  lha  não  quizeilem  fa- 
zer 5  paíTarem-fe  aos  Caítelhanos.  O  Viaco 
fe  foi  com  eiles  pêra  os  agazalhar  lá ,  pof- 
to  que  niílb  houve  algumas  diífcrenças  com 
os  da  terra,  por  não  levarem  licença  de  Ca- 
chil Daroez  ,  que  era  Regedor  do  Reyno. 
Da  Serra  começaram  a  fazer  feus  requeri- 
mentos ,  aíli  a  D.  Garcia  que  foltaíTe  Dom 
Jorge  ,  como  a  Pêro  Botelho  Capitão  do 
navio  3  em  que  D.  Jorge  foi  de  Malaca  a 
Maluco  5  pêra  que  fe  ajunraíTe  com  eiles , 
pêra  foltarem  D.Jorge,  ao  que  lhe  não  de- 
firiam ;  e  vendo  que  feus  proteílos  não  apro- 
veitavam ,  mandaram  hum  Embaixador  a 
ElRey  de  Tidore ,  e  a  Fernão  de  la  Tor- 
re ,  que  lhes  deo  conta  de  tudo  o  que  era 
paíTado  :  pedindo-lhe  da  parte  do  Alcaide 
mor,  e  dos  mais ,  mandaife  requerer  a  Dom 
Garcia  foltaíTe  logo  D.  Jorge ,  e  que  quan- 
do o  não  quizeíle  fazer  lhes  deíTem  licença 
pcra  fe  paíTarem  pêra  eiles.  ElRey  ,  e  o  Caf- 
teihauo   tomaram  muito  mal   as  coufas  que 

D. 


Deoada  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IV.  2Ó7 

D.  Garcia  tinha  feito  :  e  logo  lhe  manda- 
ram fazer  hum  grande  requerimento  íobre 
aquilio  ,  proteítando  de  dar  conta  a  ElRey 
de  Portugal  de  todas  as  perdas,  e  dainnos  , 
que  da  prizao  de  D.Jorge  fuccedelTem.  Com 
eíle  requerimento  ficou  D.  Garcia  atalhado , 
porque  bem  vio  que  fe  elles  infiíliam  em 
favorecer  D.  Jorge ,  que  lhe  dariam  traba- 
lho ,  e  lhe  fariam  guerra ,  e  receou  muito 
aquella  carga;  e  refpondeo  ao  requerimen- 
to ,  dando-lhe  muitas  razoes  Ibbre  a  prizao 
de  D.Jorge,  e  rogou  a  Cachil  Daroez  que 
logo  fe  folTe  com  o  Alcaide  mor  ,  e  com 
os  outros  á  Serra  ,  e  diííimuiadamente  fou- 
befíe  dos  que  lá  eílavam  fua  determinação  , 
efeviíTe  que  todavia  iníiíliam  a  fe  pafllirem 
a  Tidore  ,  os  feguraíTe.  Cachil  Daroez  o 
fez  aíli  ;  vendo-fe  com  elles  lhes  eílranhoii 
o  que  fizeram  ,  porque  D.  Garcia  era  feu 
amigo ,  e  nao  havia  de  bulir  com  elles ;  ao 
que  lhes  refpondêram  que  nao  queriam  cou- 
fa  alguma  delle  até  não  foítar  D.  Jorge ,  e 
que  foubeíTe  certo  fe  o  não  fazia  ,  que  fe 
haviam  de  paíTar  aos  Caílelhanos  ,  e  que 
D.  Garcia  daria  conta  a  Deos ,  e  a  ElRey 
dos  males  que  diíTo  faccedeíTem.  Edando 
neílas  praticas  chegaram  as  corocoras  de  Ti- 
dore ,  que  Fernão  de  la  Torre  mandava  em 
favor  do  Alcaide  mor  com  alguns  Caílelha- 
nos ,  e  Tidores ,  e  dâ  praia  lhes  mandaram 

di- 


268  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

dizer  que  efperavam  por  elles.   Eíle  recado 
lhes  deram  prefente  Cachil  Daroez  ,  com  o 
que    fe  alvoroçaram    fazendo-le  preíles   pe* 
ia  fe  irem  embarcar.    Viíla  por  Daroez  lua 
determinação ,   lhes  pedio  ,  que  fe  não  aba- 
laíTem  até  elle  ir  fallar    com  D.  Garcia  ,   e 
que   faria    com  clle   que   foItaíTe  D.  Jorge: 
elles    lhe  diíTeram  ,   que  efperariam  aqueiJe 
dia,  mas  que  fe  logo  o  não  foltava  ,  fe  ha- 
viam de  embarcar.  Daroez  fe  foi  mui  apref- 
fado  a  D.  Garcia  ,  a  quem  deo  conta  do  ne-í  i 
gocio  5  accrefcentando  ,  que  fe  paíTavam  a  Ti»  w 
dore  lhe  fíriam  todos  guerra  ,  a  que  elle  naò 
poderia   acudir  ,   aíli  pela   pouca  gente  que 
tinha  ,   como  pela  falta  de  mantimentos,  e 
que   fobre  tudo    fe  não   poderia  ir  daquclla 
fortaleza  ,  (porque  fua  determinação  era  em- 
barcar-fe  ,   e  levar  comíigo  D.  Jorge  ,  )  e 
defiftindo   de  fua  teima  tratou  de  fua  foltu-^ 
ra  5    mettendo-fe   em  meio  Cachil  Daroez  , 
que  foi  fallar  com  D.Jorge,  com  quem  de-» 
pois   de  galkr  com  elle  alguns  dias  em  ra-^- 
zóes  fobre  o  compor  com  D.  Garcia  ,  o  veio 
a  render  ,   aíTentando  com  elle ,  que  o  fol- 
taíTe  ,   e  o  tornaíTe  á  fua  poífe,   e  que  elle 
lhe  déíTe   o  navio   de  Pêro  Botelho  pêra  fe 
ir  pêra  a  índia ,   e  lhe  deixaria  levar  os  da 
fua  valia  com  fuás  fazendas ,  e  que  fe  rom- 
pcífem  todos  os  papeis  que  de  parte  a  par- 
te cftiveífem  feitos ,  o  que  tudo  fe  havia  de 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IV.  iGc) 

jurar  por  ambos  ,  e  que  depois  de  D.  Gar- 
cia ido  pêra  TaJangame  com  todos  os  feus , 
Simão  de  Vera  Alcaide  mór  foliaria  D.Jor- 
ge. AíTentado  ilto  com  D.  Garcia ,  mandou 
embarcar  fua  fazenda ,  eaíli  rodos  os  mais. 
Primeiro  que  fe  íahiíTe  da  fortaleza  ,  mandou 
encravar  a  artilheria  ,  porque  lhe  não  atiraf- 
íem  com  ella ,  e  partio-fe  pêra  Talangame , 
deixando  a  fortaleza  entregue  a  alguns  ca- 
fados.  Logo  íc  vieram  os  da  ferra ,  e  foltá- 
ramD. Jorge  com  grande  prazer  de  todos, 
mas  nenhum  feu ,  pelas  aíFrontas  que  lhe  ti- 
nham feito,  E  logo  mandou  de  novo  fazer 
autos  de  tudo  pelo  Ouvidor  ,  e  tirou  hum 
inílrumento  de  como  no  tempo  de  fua  pri- 
zão  fe  apoderaram  os  Caílelhanos  da  Ilha 
de  Maquufe ,  por  não  haver  quem  lha  de- 
fendeíTe  ,  no  que  ElRey  de  Portugal  rece- 
bera notável  perda ,  mandando  fazer  reque- 
rimentos a  Pêro  Botelho ,  que  fe  folTe  pêra 
a  fortaleza  ,  porque  tinha  muita  neceííidade 
do  feu  navio  por  caufa  da  guerra  dos  Caf- 
íelhanos  5  a  que  não  podemos  negar  o  pri- 
mor com  que  correram  com  ellas  couías , 
porque  bem  puderam  elies  atiçallas  cie  fei- 
ção ,  que  lhes  ficara  aquella  fortaleza  nas 
mãos.  Sobre,  eftes  requerimentos  de  D.Jor- 
ge tornou  a  haver  novas  revoltas  ,  e  por 
íim  de  tudo  D. , Garcia  íè  embarcou  no  na- 
vio de  Pêro  Botelho ,  e  de  tudo  tirou  Dom 
b  Jor- 


270  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Jorge  inílrumentos  ,  e  fez  fuás  reclamações , 
dizendo,  que  confentíra  em  tudo  por  remir 
fua  vexação  ,  fazendo  hum  auto  contra  Dom 
Garcia  ,  em  que  o  Jiavia  por  aievantado  a 
clie  ,  e  a  todos  os  que  com  elle  hiam  :  e  tu- 
do mandou  a  Malaca  por  humi  Vicente  da 
Fonfeca  ,  pêra  que  chegaíTè  juntamente  com 
D.  Garcia  ,  e  de  fuás  viagens  adiante  da- 
remos razáo  ,  e  concluiremos  agora  as  cou- 
fas  de  Maluco  com  a  jornada  de  Vafco 
Lourenço,  e  dos  outros,  que  D.Jorge  def- 
pedio  pêra  Borneo ,  como  atrás  temos  con- 
tado :  que  tomando  fua  derrota  ,  em  que 
paliaram  muitos  trabalhos  ,  e  perigos  ,  e 
cançados  ,  e  enfadados  da  viagem ,  foram 
tomar  a  Cidade  de  Borneo ,  onde  acharam 
hum  junco  ,  de  que  era  Capitão  hum  Af-  ; 
fonfo  Pires ,  que  hia  pêra  Maluco ,  que  era  i 
muito  conhecido  daquelle  Rey  ,  e  como  vio 
os  Portuguezes  lhos  levou  ,  e  elle  lhes  fez 
gazalhado  ,  dizendo-lhe  elles  ,  que  não  vi-^; 
iiham  a  mais  ,  que  a  viíitallo  da  parte  do 
Capitão  de  Maluco  ,  que  lhe  mandava  pe-i- 
dir  quizeíTe  ter  com  elle  paz  ,  e  amizade, 
e  que  correíTe  antre  ambos  trato  ,  e  com-r 
mercio ,  do  queElRey  folgou  muito,  dan-^ 
do  os  agradecimentos  a  D.  Jorge  daqueUà 
Vontade.  Vafco  Lourenço  lhe  aprefentou  áà 
peças  que  levava  ,  e  abrindo-íe  o  panno  d'ê 
íaz  3  em  que  eftava  afigurado  o  cafameritó 

d' 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IV.  271 

d'ElRey  de  Inglaterra  com  a  tia  do  Empe- 
rador  ,  (eílava  ElRey  muito  pelo  natural 
com  íbas  veíliduras  Reaes ,  Sceptro ,  e  Co- 
roa ,  e  outras  íiguras  á  roda  :  )  vendo  ElRey 
coufa  táo  defacoílumada  ,  perguntou  o  que 
era  aquillo  ,  e  dizendo-lho  ,  fuípeitou  fer 
engano  ,  e  que  os  noílbs  eram  feiticeiros , 
e  que  aquillo  eram  figuras  encantadas ,  que 
lhe  queriam  metter  em  ília  cafa  ,  pêra  de 
noite  o  matarem  5  e  lhe  tomarem  oReyno, 
e  muito  torvado  diíTe  ,  que  lhe  tiraílem  lo- 
go aquillo  &ãl\i ,  e  que  fe  foíTem  os  noíTos 
do  íbii  porto ,  que  níio  queria  em  fua  terra 
outro  Rey  íenao  elle  ,  e  que  fe  alli  eftiveí^ 
ícm  mais  ,  que  os  caftigaria.  Os  noíTos  fe 
viram  aíTombrados.  AfFonfo  Pires ,  e  alguns 
Mouros  quizerara  tirar  a  ElRey  aquella  ima- 
ginação 5  mas  nao  puderam .  e  Affonfo  Pi- 
res fe  tornou  pêra  Malaca  ,  indo  com  elle 
Vafco  Lourenço ,  e  os  mais  fe  tornaram  na 
corocora  pêra  Maluco  ,  aonde  chegaram  a 
falvamento.  Eftc  anno  indo  hum  Gomes  de 
Siqueira  por  mandado  de  D.  Jorge  bufcar 
mantimentos  pelas  Ilhas  de  Mindanao ,  def- 
garrando  com  o  tempo  ,  defcubrio  muitas 
Ilhas  juntas  em  nove  pêra  dez  gráos  do 
Norte  5  que  delle  fe  chamaram  as  Ilhas  de 
Gomes  de  Siqueira. 

CA- 


272  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

CAPITULO     V. 

Das  coufas  em  que  o  Governador  provêo  y 
em  quanto  ejieve  em  Cochim :  e  das  Ar^ 
madas  ,  que  defpachou  pêra  fora  :  e  da 
grande  vitoria  ,  que  D.  João  De  ca  houve 
de  huma  Armada  de  Calecut :  e  de  como 
Chrijlovão  de  Mendo  ca  foi  entrar  ita  for- 
taleza de  Ormuz ,  e  da  morte  do  Gua- 
zil  Rax  Ha  me  de. 


D 


Eixámos  o  Governador  em  Cochim, 
depois  de  deíbedir  as  náos  pêra  o  Rey- 
Jio  5  com  quem  he  ncceííario  continuemos. 
A  primeira  coufa  que  fez  foi  deípedirDom 
João  Deça  pêra  Capirao  mor  do  Malavar 
com  hum.a  galé ,  e  dezefeis  navios ,  com  re- 
gimento ,  que  como  fe  acabaíTe  o  Verão  j 
íbíTc  tomar  poíTe  da  capitania  de  Cananor, 
por  cumprir  feu  tempo  D.  Simão  de  Aíe- 
nezes.  E  por  fer  já  chegado  Francifco  de 
MeJlo  com  o  recado  do  fucceíTo  da  Sunda  ^ 
(que  EIRcy  encommendava  tanto  ,  que  iium 
dos  principaes  pontos  do  Regimento  do  Con- 
de Almirante ,  quando  veio  por  Vifo-Rey , 
era  ,  que  logo  mandaiTe  fazer  aquella  forta- 
leza , )  fabendo  o  modo  de  como  Francifco 
de  Sá  ficava  em  Malaca  com  a  mor  parte 
da  gente  morta ,  commetteo  a  Martim  Af- 
fonlò  de  Mello  Juzarte  ,  irmão  de  Garcia 

Ju- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  V.   273 

Juzarre  de  Évora  ,  Fidalgo  de  muitas  par- 
tes,  pêra  ir  a  Malaca  ajunrar-ie  com  Fran- 
cifco  de  Sá  pêra  irem  fazer  aquella  fortale-- 
za.  E  o  que  diz  Caílanheda  ,  que  o  Gover- 
nador mandava  a  Martim  AíFonfo  ir  fazer 
eíla  jornada ,  e  que  elle  que  fe  efcufára  por 
fer  aquella  empreza  deFrancifco  de  Sá  da- 
da por  ElRey  ,  e  mais  eílando  o  outro  lá 
em  caminho  ,  havemo-lo  porduvidofo  ,  por- 
que nem  o  Governador  havia  de  tirar  a  hum 
Fidalgo  táo  honrado  a  empreza ,  que  tinha 
nas  mãos  ,  pois  não  deixou  de  a  acabar, 
fcnão  por  falta  de  gente  ;  nem  Martim  Af- 
fonío  havia  de  acceitar  tal  jornada ,  porque 
nem  havia  de  ir  debaixo  da  bandeira  do  outro , 
nem  o  outro  havia  de  coníentir  igual  com  elle. 
Mas  o  que  diílo  podemos  alcançar  he,  que 
andando  o  Governador  ordenando  mandar 
gente  a  Francifco  de  Sá  ,  chegou  hum  Embai- 
xador d'EIRey  da  Cota  ,  vaíTallo  d'ElRe7 
de  Portugal ,  a  pedir  ao  Governador  da  par- 
te d'ElRey  lhe  foccorreíTe  ,  porque  o  Ma- 
dune  feu  irmão  lhe  queria  tomar  o  Reyno 
com  o  favor  ,  e  ajuda  do  Çamorim  ,  que 
lhe  tinha  mandado  huma  groíTa  Armada , 
com  que  o  tinha  em  miuito  aperto.  O  Go- 
vernador pondo  aquellas  coufiis  em  confe- 
Iho,  aíTentou-fe  que  fe  devia  foccorreráquel- 
le  Rey  com  muita  preíleza :  ao  que  o  Go- 
vernador defpedio  o  mefmo  Martim  AíFon- 
CoutQ,  Tom,  L  P.  L  S  ib 


274  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ío  de  MeJIo  com  onze  velas  ,  em  que  en- 
trava huma  galé  real  ,  e  huma  galeota ,  e 
os  mais  navios  de  remo  ,  de  cujos  Capi- 
tães náo  achámos  es  nomes  mais  que  a  rres  , 
1  home  Pires  5  Duarte  Mendes  de  Vafcon- 
cellos  ,  ejoáo  Coelho:  dando-lhe  o  Gover- 
nador por  regimento  ,  que  paílalTe  a  Ceiliío 
foccorrer  aquelle  Rey  ,  e  que  dalli  íe  foíTe 
invernar  á  coíla  de  Choramandei  ,  e  em 
Agoílo  foííe  a  Malaca ,  e  enrjcgaiTc  a  Ar- 
mada a  Francifco  de  Sá,  Lniçandofama  que 
jiavia  de  ir  no  verão  ás  prezas  á  coíla  de 
Pegú  ,  porque  eílava  a  viagem  da  Sunda 
tão  defacredirada  ,  que  não  havia  íbldado  , 
que  quizeíle  receber  foláo  pcra  lá  ;  e  defta 
maneira  ,  pela  fama  que  ih  lançou  ,  fe  embar- 
caram quatrocentos  homens.  Partido  Mar- 
tim  Affonfo  ,  defpedio  o  Governador  Pê- 
ro de  Faria  pêra  ir  entrar  na  capitania  de 
Malaca ,  porque  defejava  o  Governador  de 
tirar  Jorge  Cabral  ,  que  eílava  provido  por* 
Fero  Maícarenhas  ,  e  foi  em  hum  galeão , 
e  em  fua  companhia  mandou  o  Governador 
Simão  de  Soufa  Galvão  ,  filho  de  Duarte 
Galvão  5  pêra  ir  entrar  na  fortaleza  de  Ma- 
luco 5  e  tirar  D.  Jorge  de  Menezes  ,  que 
era  do  bando  de  Pêro  Maícarenhas ,  e  lhe 
deo  huma  galé  em  que  foi  com  fetenta  ho- 
mens 5  e  com  dlc  D.  António  de  Caflro , 
que  hia  provido   da  capitania  mór  daquelle 

Ar- 


I 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  V.  ij^ 

Archipelago  ,  e  da  Alcaidaria  mor  da  for- 
taleza. E  aíTi  mandou  o  Governador  outro 
galeão  entregue  a  Pêro  de  Faria  com  cen- 
to e  íincocnta  homens  ,  pêra  lá  o  dar  a  Fran- 
ciíco  de  Sá  pêra  a  jornada  da  Sunda ,  pêra 
que  com  a  gente ,  e  Armada ,  que  Martim 
AíFonfo  havia  de  levar,  foíTe  fazer  aquella 
fortaleza.  AíTi  defpachou  o  Governador  a 
Chriftovao  de  Mendoça  pêra  ir  entrar  na 
fortaleza  de  Ormuz ,  a  quem  deo  hum  ga- 
leão ,  huma  caravela  ,  e  dous  bargantis ,  em 
quê  mandou  muitos  provimentos  pêra  aquel- 
la fortaleza,  muita  fazenda  d'ElRey  pêra  fe 
lá  vender,  (porque  nefte  tempo  nao  trata- 
vam os  Governadores  ,  nem  tinham  o  di- 
nheiro d'ElRey  debaixo  de  fuás  camas,  an- 
tes o  meneavam  em  proveito  da  fazenda  d''El- 
Rey,  e  nao  no  feu.)  Efta  caravela  ,  e  bargan- 
tins  hiam  deputados  pêra  guardarem  aquel- 
Je  eftreito.  Córn  Chriftovao  deMendoca  foi 
embarcado  Rax  Xarrafo  Guazil  de  Ormuz  , 
que  Manoel  de  Macedo  trouxe  prezo ,  co- 
mo atrás  dilTemos  ,  que  hia  livre  de  todas 
as  culpas  que  lhe  puzeram  ;  e  porque  era 
mortaiillimo  inimigo  de  RaxHamede,  que 
ficou  em  feu  lugar  ,  chegando  a  Mafcate 
ordenou  ,  por  recado  que  diante  m.andou  , 
com  que  o  mataílem  ,  no  que  dizem  que 
fòi  culpado  ElRey ,  pelo  grande  medo  que 
tinha  do  Xarrafo.    Partidos  todos  eíles  Ca- 

S  ii  pi- 


276  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

pitaes  5  de  cujas  jornadas  adiante  daremos 
jrazão  ,  o  Governador  íe  foi  pêra  Goa ,  fi- 
cando D.  João  Deça  na  cofta  do  Malavar 
continuando  na  guerra  contra  os  Mouros ; 
ç  tendo  avifo  que  em  Mangalor  eilava  hu- 
nia  Armada  do  Carne  rim  ,  foi  áquelle  por- 
to 5  e  não  a  achando  deo  naquella  Cidade , 
ç  a  queimou  ,  e  abrazou  ;  c  voltando  pêra 
o  Malavar ,  encontrou  íeíTenta  paraos  ,  que 
era  a  Armada  de  Calecut ,  de  que  era  Ca- 
pitão hum  valente  Mouro  chamado  China- 
cotiale  5  que  vinha  de  propofito  bufcar  a 
noíTa  Armada  pêra  pelejar  com  ella.  D.João 
tanto  que  os  vio  chegou  os  navios  á  galé , 
tantos  de  huma  parte  como  da  outra  ,  e  en- 
cadeando-fe  ,  e  preparando-fe  pêra  pelejar 
com  os  inimigos  ,  que  a  foram  commetter 
com  muito  grande  deteiminação.  D.  João 
tinha  a  artilheria  dos  feus  navios  mui  bem 
carregada ,  e  deixando  chegar  perto  os  ini- 
inigos  deram-Ihe  aquella  primeira  furriada  , 
de  que  lhe  mettêram  alguns  no  fundo  ,  e 
baraihando-fe  todos  ,  começou-fe  huma  af- 
pera  batalha  ,  que  foi  da  nolfa  parte  mui 
bem  pelejada  ,  e  muito  arrifcada  por  ferem 
os  inimigos  tão  differentes  em  número  de  na- 
vios 5  e  gente  ,  que  havia  dez  para  hum.  Hum 
Capitão  de  hum  navio,  aquém  não  achámos 
o  nome ,  ferrou  com  Chinacotiale  ,  e  abor- 
dados ambos  pelejaram  com  muito  valor, 
-   .  ma- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  V.  277 

matando-lhe  muitos  dos  inimigos  ;  e  quiz 
Deos  c]ue  dcíTem  no  Mouro  duas  efpingar- 
dadas ,  de  que  cahio  ,  trazendo  já  duas  cu- 
tiladas mui  grandes.  Os  do  leu  navio  em 
o  vendo  cahir  loí^o  fe  lançaram  ao  mar. 
D.  João  Deça  fez  neíla  jornada  o  officio  de 
muito  bom  Capitão  ,  e  de  valente  foldado , 
pelejando,  e governando  com  muito  valor, 
e  prudência.  O  Capitão  que  rendeo  China- 
cotiale  ,  logo  lhe  tirou  a  fua  bandeira  da 
quadra  ,  e  a  abateo.  Correndo  a  nova  pela 
Armada  que  era  morto  ,  logo  íe  poz  em 
disbarato  ,  e  fugida  ,  ficando  todavia  em 
poder  dos  noíTos  quarenta  navios.  Foram 
mortos  dos  Mouros  mil  e  quinhentos  ,  e 
quaíi  outros  tantos  cativos.  Chinacotinle , 
que  ainda  cílava  vivo  ,  foi  levado  a  Dom 
João  Deça  ,  que  o  eílimou  muito  ,  e  fe  re- 
colheo  a  Cananor ,  com  perda  de  vinte  ho- 
mens ,  e  muitos  feridos  ,  que  mandou  curar 
mui  bem  ;  e  em  Chinacctiale  mandou  ter 
grande  refguardo  ,  por  fer  Mouro  muito 
principal.  É  porque  já  era  o  verão  gafia- 
do  ,  defarmou  os  navios ,  mandando  a  galé 
pêra  Cochim  ,  em  que  foi  D.  Simão  ,  que 
lhe  entregou  a  fortaleza.  Com  cfta  perda 
ficaram  os  Mouros  mui  quebrantados ,  por- 
que além  delia  ,  lhe  cuftáram  outros  vinte 
paraos ,  que  fe  lhe  tomaram  por  vezes  ,  em 
que  lhe  mataram  também  mais  de  mil  ho- 
mens. 


2jS  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

mens.  Chinacotiale  farou  de  fuás  fendas , 
e  tratou  de  feu  reígate  ,  que  fe  veio  a  con- 
cluir em  dar  doze  Porruguczcs  ,  dos  que 
ellavam  cativos  em  poder  do  Çamorim  ,  e 
quinhentos  cruzados  em  dinheiro  ,  de  que 
logo  fez  entrega ,  e  com  iíío  jurou  em  íua 
lei ,  e  deo  fiadores  Mouros  ricos  de  Cana- 
nor  ,  de  mais  não  fizer  guerra  aos  Portu- 
guezes  j  e  com  illo  fe  cerrou  eíle  Lr/crno. 

CAPITULO     VI. 

Do   que  acontecen   a  António  de  Miranda 
no  ejlreito  do  mar  Roxo  ,  e  das  pre- 
zas que  fez, 

Orque  ha  muito  que  deixámos  António 
de  Miranda  de  Azevedo  partido  do  mar 
Roxo  ,  fcrá  razão  que  continuemos  com  elle. 
Partido  de  Goa  (como  dilTemos)  foi  feguindo 
fua  derrota  até  o  Cabo  de  Guarda fii  ,  ten- 
do huma  grande  tormenta  no  caminho  ,  e 
chegando  a  monte  de  Félix ,  repartio  a  Ar- 
mada em  três  partes  ,  mandando  tomar  as 
paragens  ,  que  as  náos  coftumavam  ir  de- 
mandar pêra  bufcarem  o  eftreito.  AJli  fe 
deixaram  andar  ao  pairo  ,  por  não  pode- 
rem iurgir  j  por  fer  aquelle  mar  de  muito 
fundo.  E  andando  em  huma  das  paragens 
Henrique  de  Macedo  com  outros  dous  na- 
vios ,  hum  dia  pela  manhã  houve  viíla  de- 
hum 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VI.  279 

hum  galeão  mui  formoío  ,  c]i:e  vinha  mui 
proípero  de  gente  ,  e  arrilheria  ,  e  o  navio 
em  íi  iVÁÚto  grande  ,  e  poíTiime.  Os  Mou- 
ros que  hiam  confiados  na  força  do  navio  ,  e 
na  nvaira  gente,  vendo  os  no  lios ,  os  foram 
demandar.  Henrique  de  Macedo  deo  hum 
bolfo  de  véla  j  e  p;eparou-fe ,  pondo- fe  em 
armas  pêra  o  efperar  ,  o  galeão  o  foi  in- 
veílir.  A  efíe  tempo  eíbva  fó  Henrique  de 
Macedo,  porque  os  outros  navios  tinham- 
fe  apartado.  Invertidos  os  galeões  deitaram 
logo  dentro  feus  arpeos  começando-fe  a  tra-r 
var  huma  muito  cruel  batalha  ,  porque  os 
Mouros  eram  mais  -de  trezentos  brancos  ,  e  a 
mor  parte  delles  Rumes.  Os  noffos  trábcilha- 
vam  de  entrar  no  galeão  dos  inimigos  ,  e  elles 
o  mefmo  por  fe  baldearem  no  nofíb  ,  fobreo 
que  fizeram  grandes  cavallerias  ,  iançando-fe 
de  parte  aparte  muitas  panellas  de  pólvora, 
lanças  de  fogo  ,  e  outros  arremeíTos  mortaes. 
O  vento  acalmou  ,  ficando  as  velas  aos  pés 
dos  maílos  j  e  como  de  quando  em  quando 
dava  humas  lufadas  ,  com  que  fe  facudiam 
as  velas,  acertou  de  dar  huma  lança  de  fogo 
na  do  noíTo  galeão ,  ateando-fe  nella  o  fo- 
go ,  e  dando  a  lufada  de  vento  ,  quiz  Deos 
que  ao  levantar  da  véla  foífe  com  tanta  for- 
ja que  facudilTe  a  lança  de  fogo  no  galeão 
dos  inimigos  5  (que  ainda  eílava  ardendo,) 
e  dando  na  véla  grande  tomou  fogo  ,   que 

ate- 


28o  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ateou  tão  bravamente,  que  foi  forçado  aos 
noílbs  j  por  fe  náo  queimarem  ,  cortar  a 
balroa  ,  e  acudirem  ao  fogo  ,  que  andava 
nas  fuás  velas  ,  que  apagaram  com  muito 
trabalho.  Na  ndo  dos  Mouros  foi  o  feu 
crcfcendo  de  feição  ,  que  fc  apoderou  de  to- 
da ella  ,  com  tanta  braveza  ,  que  por  não 
terem  outro  remédio  fe  lançaram  ao  mar. 
Neíte  tempo  chegaram  os  dous  navios  da 
companhia  de  Henrique  de  Macedo  ,  que 
ao  tom  das  bombardadas  acudiram  ,  e  ven- 
do o  negocio  daquella  maneira  ,  lançando-fe 
aos  batéis  foram  a  pefcaria  dos  Mouros  , 
que  andavam  no  mar  ,  matando  nelles  á  fua 
vontade  ,  e  cativando  alguns  que  lhes  me- 
lhor pareceram.  Os  mais  galeões  que  an- 
davam pelas  outras  paragens  vieram-lhe  ca- 
hir  nas  mãos  per  vezes  vinte  velas ,  em  que 
entravam  oito  náos  groíTas  carregadas  de 
fazendas,  e  pofto  que  houve  alguma  defen- 
são ,  foram  logo  rendidas.  E  como  foi  tem- 
po de  fe  recolherem ,  foi-fe  o  Capitão  mor 
a  Caixem  efperar  por  toda  a  Armada  por 
lhe  ter  dado  regimento  que  alli  fe  ajuntaf- 
fem  com  elle  ,  como  fizeram  todos.  Eílan- 
do  alli  o  Capitão  mor ,  teve  avifo  que  ainda 
ie  efoerava  por  algumas  náos  do  Achem. 
Pelo  que  deixando  alli  parte  da  Armada, 
e  Ruy  Pereira  Quadrilheiro  mór  pêra  ven- 
der as  fazendas  das  lúos ,   elle  com  alguns 

na- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VI.  281 

navios  fefoi  a  monte  deFelix  a  cfperar  el-. 
tas  náos  ,  que  por  tardarem  muito  íe  tor- 
nou pêra  a  Armada  ,  e  foi  tomar  Adem  , 
onde  acliou  Ruy  Pereira  ,  que  alii  viera  a 
cliamado  dos  Regedores :  que  fabeiido  eftar 
a  noíla  Armada  em  Caixem  ,  como  corriam 
comnoíco  em  amizade  ,  maudáram-Ihe  pe- 
dir ioccorro  cojitra  os  Turcos  ,  que  anda- 
vam pela  terra  dentro  deftruindo-lhe  o  Iley- 
no  ,  e  ElRey  náo  eílava  enrao  na  Cidade. 
Chegando  António  de  Miranda  ao  porto , 
mandou  fazer  aos  Governadores  feus  ofrè^ 
recimentos  ,  que  eílava  prelles  pêra  fíivore- 
ccr,  e  ajudar  ElRey  contra  feuo  inimigos, 
o  que  elJes  eílimáram  muiío,  mandando-lhe 
agradecimentos ,  e  alguns  refrefcos.  E  por- 
que os  Turcos  fouberam  logo  fer  alIi  che- 
gada a  noffa  Armada  ,  recolhéram-fe  ,  e  deiC- 
aprelTáram  a  terra.  Eftes  eram  os  da  com- 
panhia de  Moílafá  ,  Ibbrinho  do  Soltáo  So- 
leimáo  y  que  (  como  diíTemos  )  fe  alevantou 
com  as  finco  galés  :  que  depois  que  foube 
íèr  a  Armada  recolliida  pêra  Sues  ,  i'c  foi 
pêra  Camarão  ,  ou  pêra  huma  enceada ,  que 
eftá  na  boca  do  eftreito  da  banda  de  Ará- 
bia,  donde  com  o  favor  d'ElRey  de  Xaéi 
pertcndeo  Moílafá  conquiílar  aquelle  Rey- 
110.  António  de  Miranda  foube  das  galés , 
que  eftavam  na  boca  do  eílreito ,  mas  náo 
•de  ferem  finco  ,  e  cuidou  que  era  toda   a 

Ar- 


282  ÁSIA  DE  DíoGo  DE  Couto 

Armada;  e  nao  tendo  alli  mais  que  fazer, 
deo  á  vela,  e  foi  tomar  Zeyla  com  tenção 
de  deílruir  aquella  Cidade,  que  achou  dcf- 
pejada  ,  e  Ih^  niandou  pôr  o  fogo ,  em  que 
toda  fe  confumio.  E  por  fer  tempo  de  íe 
recolher  a  invernar ,  o  fez  ,  e  foi  tomar  Maf- 
cate ,  onde  deixou  os  navios  groíTos ,  e  por 
Capitão  mor  iVntonio  da  Silva  ,  e  elle  com 
os  de  remo  fe  foi  invernar  a  Ormuz. 

CAPITULO    VIL 

De  como  Simão  de  Soufa  Gahão ,   que  hta 
-pêra  Maluco  ,  foi  com  tempo  fortuito  to- 
mar a  barra  do  /Ichem  :  e  da  grande  , 
e  efpantofa  batalha  que  teve  com 
hmna  Armada  fua  ,  em  que  foi 
morto ,  e  a  galé  tomada, 

3  Artido  Pêro  de  Faria  de  Cochim  com 
toda  a  mais  companhia  ,  de  que  atrás 
dêmos  razão  ,  apartou-íe  no  golfo  de  Ni- 
€ubar  a  ^:áè  de  Simão  de  Soula  com  hum 
tempo  que  \\\q  deo  muito  groíTo ,  com  que 
foi  correndo  com  vélas  pequenas  ,  abatendo 
toda  artilheria  ,  porque  o  comiam  os  ma-» 
res ,  vendo-fe  muitas  vezes  perdidos,  e  ala- 
gados ;  mas  como  Deos  os  tinha  guardados 
pêra  outra  morte  m.ais  gloriofa  ,  largou  o 
tempo  ,  eílando  já  fobre  a  barra  do  x\chem , 
onde   elle    os  levou  já  tão  canfados   todos 

do 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  Vlt.  28- 

do  trabalho  paíTado  ,  que  nao  podiam  com- 
figo.  E  íiibendo  onde  eílavam  ,  trabalha- 
ram por  fe  aíFaílarem  daquella  cofta  ,  por 
faberem  que  aquelles  Mouros  eram  os  mo- 
res inimigos  que  na  índia  tinhamos  ;  mas 
o  tempo  lho  nao  deixou  fazer  por  fer  o 
vento  travcílla.  Os  da  terra  tanto  que  vi- 
ram a  galé  ,  mandou  ElRey  viíitar  o  Ca- 
pitão delia  com  muito  refrefco ,  e  dizer-llie 
que  folgava  muito  de  o  ver  naquelle  feu 
porto  ,  porque  defejava  de  tratar  am.izades 
com  os  Portuguezes :  que  lhe  pedia  quizef- 
fe  entrar  pêra  dentro  ,  onde  eílaria  m.ais 
feguro  5  e  feria  melhor  provido  ,  porque 
defejava  de  fe  ver  com  elle ,  e  que  le  qui- 
zcíle  que  o  mandaria  pelas  íiias  lancharas 
metter  pêra  dentro.  Simão  de  Soufa  ,  que 
era  homem  precatado  ,  e  fabia  a  malicia 
daquella  gente  ,  mandou-ihe  agradecer  aquel- 
la  mercê ,  efcufando-fe  de  nao  acceitar  ièus 
oírerecimentos  ,  porque  hia  muito  apreíTa- 
do,  e  que  logo  havia  de  navegar.  ElRey 
como  fua  tenção  era  damnada,  quando  vio 
que  por  cumprim.enros  o  nao  podia  levar, 
mandou  de  noite  embarcar  mil  homens  em 
vinte  lancharas,  e  a  hum  feu  Capitão,  que 
lhe  trouxeíTe  aquella  galé  pêra  dentro  ,  (o 
que  teve  por  fácil ,  porque  já  fabia  o  mo- 
do de  como  eílava  deílroçada  ,  porque  o 
prefente ,  e  recado  foi  mais  pêra  efpiar ,  que 

por 


284   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

por  cuidar   que   acceiuíTem   os  noíTos   feus 
cumprimentos.)  Preftes  as  lancharas ,  m.andou 
EJRey  diante  hum  calaiuz ,  e  etlas  após  el- 
le ,  que  chegou  á  gale ,  e  diíTe  a  Simão  de 
Soufa  que  todavia  lhe  tornava  ElRey  a  pe- 
dir  quizeíTc  recolher-fe  dentro  ,    porque   o 
tempo  não  caíTava  ,    e  que  pêra   o  revoca- 
rem  lhe  m.andava  aqueilas  lancharas  (o  que 
fez  ElRey    por   le    os  noíTos  defcuidarem.) 
Simão  de  Soufa  tornou-le  a  efcufar,  e  vin- 
do-fe  as  lancharas  chegando  ,    vendo  nellas 
tanta  gente  ,   tomaram  depreíTa  armas.    Os 
Achens  ,  tanto  que  foram  perto ,  arremetté- 
ram  á  galé  com  grandes  gritas  ,  e  alaridos , 
e  acercaram  á  roda.  Hum  Fidalgo  que  alli 
hia  ,   chamado  Manoel  de  Soufi  ,    foi  tão 
acordado  ,  que  remetteo  a  hum  falcão  ,  que 
hia   em  cima  já  cevado  ,    e  o  apontou  nas 
lancharas   pondo-lhe   fogo  ,   e  foi   tão  bem 
encaminhado   o  pelouro  ,    e  liun;a  roca  de 
pedras    que    levava  ,    que   dando    em  meio 
delias  matou  muita  gente  ,    defaparelhando 
algumas  ,   as  mais  começaram   de  longe    a 
combater   os  noíTos  ,   dando-lhes   f3rmofas 
falvas  deefpingardaria;  algumas  delias,  em 
que  vinha   o  leu  Capitão  mor,   ferraram  a 
galé  por  pope  ,    por  onde  fe  lançou  dentro 
hum   mui   grande   número  delles  ,   a  pezar 
de  quantos  golpes  lhes  deram  os  noíTos  com 
que  lhes  derrubaram  niuitos.  Dentro  na  ga- 
lé 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VII.  iSj 

lê  fe  ateou  bravillimamente  a  briga  com  os 
daquella  parte;  porque  como  todos  os  mais 
eftavam  repartidos  por  partes  ,  nenhum  lar- 
gou a  Ília  ,  porque  por  todos  eflavam  bem 
apertados  dos  inimigos.  Simão  de  Soufa  ,  que 
com  poucos  ficou  de  fóra  pêra  foccorrer 
aonde  houveíTe  neceílidade  ,  acudio  á  po- 
pa 5  e  rem.etteo  com  os  inimigos  com  ta- 
manha fúria  ,  que  matando  alguns  os  levou 
de  arrancada  até  o  toldo  ,  aonde  apertou 
com  elles  de  feição  ,  que  os  fez  lançar  ao 
mar  com  grande  damno  feu.  A  batalha  por 
todas  as  partes  eftava  muito  arrifcada  ,  por- 
que os  inimigos  eram  muitos ,  e  muito  de- 
terminadamente commettiam  a  entrada  da 
^alé  com  muitos  ,  e  amiudados  tiros.  Os 
r.oííos  vendo  que  a  falvaçao  eftava  fó  eri> 
Deos  5  e  no  esforço  de  feus  braços  ,  fize- 
ram todos  tamanhas  maravilhas  ,  que  paf- 
máram  os  inimigos  ,  de  que  já  eram  mor- 
tos mais  de  trezentos.  Os  mais  defconfiados 
de  entrarem,  a  galé ,  e  admirados  da  valen- 
tia daquelies  homens  ,  que  paredam  leões 
famintos  ,  affaíláram-le  pêra  fóra  ,  e  reco- 
Ihêram-ie  deftroçados  ,  e  desbaratados ,  fi- 
cando dos  noíTos  dous  mortos  ,  e  mais  de 
yinte  e  finco  feridos  ,  fendo  por  todos  os 
gue  hiam  na  galé  fetenta.  Simão  de  Soufa 
mandou  curar  os  feridos  mui  depreíTa ,  por- 
que bem  cntendeo  que  havia  de  ter  maior 

tra- 


aSó  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

trabalho  ,  porque  o  tempo  pêra  nenhuma 
parte  o  deixava  caminhar ,  e  lobre  a  amar- 
ra eltava  foíFrendo  íua  importunação  ,  re- 
ceofo  também  de  dar  á  coíla.  As  lancharas 
entradas  dentro  ,  indo  o  Capiíao  a  ElRcy , 
lhe  perguntou  pela  galé,  e  clle  lhe  contou  o 
que  vio.  ElRey  apaixonado  cavalgou  em 
^lum  elefante ,  e  mandou  chamar  o  íeu  Ca- 
pitão miór  5  e  lhe  jurou  por  Mafamcde  que 
fe  lhe  nao  tTcVzia  aquclla  galé,  que  o  havia 
de  efpedacar  com  aquelle  elefante  ,  man^* 
dando  lançar  mais  lancharas  ao  m.ar ,  com 
que  prefez  fincoenta  ,  em  que  embarcou 
dous  mil  homens  ,  e  todos  foram  deman- 
dar a  galé.  O  Capitão  da  Armada  defpediô 
diante  huma  lanchara  com  hurna  bandeira 
de  paz  pêra  fegurar  os  noíTos ,  que  chegan- 
do a  borda  da  galé  ,  fallou  hum  homem 
em  Portuguez  ,  e  perguntou  pelo  Capitão, 
dizendo  que  ElPvey  eílava  mui  agaftado , 
fendo  tão  amigo  de  Portuguezes  ,  e  defe- 
jando  de  lhes  fazer  honras ,  e  gazalhados , 
não  CS  quererem  acceitar  delle :  que  lhe  fa- 
zia a  faber  ,  ^que  aquelle  Capitão  que  com 
elle  pelejou  eftava  prezo  ,  porque  o  agra- 
vou ,  e  offendeo  em  lugar  de  o  fervir ,  co- 
mo lhe  elle  tinha  mandado;  epera  que  viJP- 
fe  o  caftigo  que  por  ilTo  lhe  queria  darj 
lhe  pedia  entraíTe  pêra  dentro,  pois  não  ha- 
via  tempo  pêra  fazer  fua  viagem.   Alguns 

fo- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VII.  287 

foram  de  pr.recer  ,  que  deviam  acceitar  aqiiel- 
Jes  cumprimentos  ,  que  pola  ventura  feriam 
verdadeiros  ,  porque  clles  já  não  eílavam 
pêra  mais,  e  que  não  podia  haver  tamanha 
maldade  em  lium  homem  ,  que  tinha  nome 
d'ElRey ,  que  trataífe  mal  os  homens ,  que 
o  bufcavam  de  paz  ,  e  confiados  em  fua 
pahivra  entravam  em  feu  porto.  Simão  de 
Soufa  liies  diílb  que  fe  não  fiaílem  daquil- 
lo  que  diziam ,  porque  aquelle  bárbaro  era 
o  mais  cruel  ,  falfo ,  e  fementido  Mouro  ^ 
que  havia  em  toda  a  índia ,  e  que  entendef- 
fem  que  fe  os  acolhia  ,  os  havia  de  mar- 
tirizar :  que  muito  miclhor  lhes  era ,  pois 
haviam  de  morrer ,  fer  antes  com  as  arm.as 
nas  mãos  ,  vincando  bem  fuás  mortes  :  e 
que  quando  não  pudeíTem  falvar  as  vidas , 
o  fariam  as  almas  ,  que  Deos  por  fua  mi- 
fericordia  lhes  receberia  ,  pois  acabavam  pe- 
lejando por  fua  Santa  Fé.  Animados  todos 
com  eílas  palavras  ,  diíTeram  que  oieguiriam 
em  tudo ,  e  logo  fe  puzeram  em  armas.  O 
Capitão  mor  da  Armada  fez  aquella  diligen^ 
cia  ,  tanto  por  recear  acontecer-lhe  outro 
desbarate  ,  qual  o  paíTado ,  quanto  por  lhe 
encommendar  ElRcy  muito  que  lhe  levaííe 
'todos  aqueíles  Portuguezes  vivos  ,  do  que 
elle  hia  defconíiado  5  porque  bem  fabia  que 
tiles  não  fe  entregavam  a  ninguém  fenãò 
defpedaçados.    E  vendo   que   os  não  podia 

le- 


i22   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

levar  por  cumprimentos  ,  inveílio  a  galé  por 
todas  as  partes  com  tamanho  eílrondo  ,  que 
puderam  eípantar  muitos  homens ,  c  muitos 
navios,  dando  muitas ,  e  mui  apreíTadas  fal- 
vns  de  artiiheria ,  e  de  arcabuzaria  •  mas  os 
noíTos  como  eftavam  determinados  a  mor- 
rerem ,  poílos  em  feus  lugares  rebateram  os 
inimigos,  que  queriam  entrar  a  galé,  dan- 
do com  huma  Ibmma  delies  ao  mar  bem  es- 
candalizados ;  mas  como  as  lancharas  eram 
muitas  ,  e  os  inimigos  tantos  ,  que  no  lu- 
gar donde  cahiam  dez  le  punham  trinta , 
a  pezar  dos  golpes  dos  noíTos  entraram  huns 
poucos  na  galé ,  que  logo  foram  ataííalha- 
dos  ,  porque  nao  achavam  homens ,  fenao 
leões  5  que  remettiam  com  ellcs  aos  dentes 
pêra  os  comerem  ,  fazendo  aquelles  pou- 
cos ,  e  canfados  homens  tamanhas  cavalle- 
rias  5  que  de  cada  hum.  delies  fe  puderam 
encher  muitos  capítulos  ,  quanto  mais  de 
tantos  ,  que  nós  abbreviatnos  nelle  pequeno  , 
por  nos  faltarem  palavras  pêra  os  engran- 
decer.  como  merecem.  Os  que  eílavam  fe- 
ridos do  dia  dantes  ,  como  homens  eícan- 
dalizados  ,  não  davam  golpes  ,  que  nao  cor- 
taíTem  pernas  ,  braços ,  cabeças  pelo  meio  , 
não  lhes  dando  couía  alguma  de  fe  lhes  re- 
nov^arem  as  feridas  com  outras  de  novo, 
que  o  furor  lhes  não  deixava  fentir.  E  pof- 
to  que  (como  diflemos)  todos  fizeram  tan- 
to. 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VIL  289 

to  ,  Simão  de  Soula  ,  e  Manoel  de  Soufa 
andavam  raes  ,  e  ião  encarniçados  dos  inimi- 
gos  ,  fazendo  tão  eipantoías  façanhas ,  que 
deixavam  muitos  Mouros  de  pelejar  pelos 
olhar  ,  porque  não  podiam  crer ,  com  o  ve- 
rem que  cm  braços  humanos  havia  tantas 
forças  5  nem  em  homens  mortaes  tão  pouco 
receio  da  morte  ;  porque  onde  elles  viam 
mor  perigo  ,  alii  fe  arremeçavam  ,  cortan- 
do ,  ferindo ,  e  deftruindo  tudo  a  que  che- 
gavam. Durou  iílo  tempo  de  quaíi  três  ho- 
ras ,  em  que  os  nolTos  aíli  os  efcandalizá- 
ram, ,  que  fe  começaram  a  alargar  da  galé, 
ficando  todos  taes ,  que  fe  não  podiam  me- 
near 5  fendo  já  alguns  morros ,  e  todos  os 
mais  feridos  em  muitas  partes.  Indo-fe  já 
os  Mouros  aíFaílando ,  pafmados  do  que  vi- 
ram ,  permittio  Deos  que  fe  defaferrolhaíTe 
hum.  Mouro  ,  que  andava  a  banco  na  galé, 
que  fe  lançou  ao  mar  ,  e  foi  ferrar  huma  lan- 
chara ,  indo  já  aíFaílada ,  e  diíTe  aos  Achens 
que  porque  deixavam  aquella  galé ,  que  os 
mais  dos  Portuguezes  eram  mortos  ,  e  to- 
dos os  outros  tão  feridos,  que  não  efcapa- 
riam.  ElRey  ,  que  eílava  da  terra  vendo  a 
briga  5  não  fazia  fenao  cevar  os  feus  com 
mais  gente  j  e  vendo  aíFaftar  as  lancharas , 
lhes  mandou  outras  de  refrefco ,  com  o  que 
tornaram  a  voltar ,  e  inveftíram  a  galé ,  não 
íichando  os  noilos  no  eftado  em  que  o  Mou- 
Couto,  Tom.  l  P,  L  T  ro 


1^0  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ro  lhes  pintou  ,  fenao  tao  vivos  ,  e  cfpertos  , 
como  da  primeira  vez  ;  e  poftos  em  defen- 
são da  galé ,  pelejando  como  defeípcrados ,  |i| 
faziam  novas  façanhas  :  mas  como  o  parti- 
do era  tão  defígual ,  e  muitos  dos  inimigos 
que  vinham  de  rcfrefco  ,  apertaram  tanto 
que  entraram  ágalé,  não  fendo  mais  os  que 
pudeíTem  pelejar  que  Simão  deSoufa,  Ma- 
noel de  Soufa,  D.  António  de  Caílro  ,  An- 
tónio Caldeira  ,  e  Jorge  de  Abreu  ,  todos 
homens  Fidalgos  (que  tinham  feito  obras 
memoráveis  ,  e  dignas  de  fe  recitarem  por 
efpanto)  que  todos  tinham  mortaliílimas  fe- 
ridas. E  como  eftes  que  entraram  de  tropel 
eram  mais  de  trezentos ,  foram  levando  ef- 
tes Fidalgos  até  o  pé  domado,  fazendo  to- 
dos coulas  façanhofas.  Aqui  pregaram  as 
mãos  com  huma  frecha  a  D,  António  de 
Caílro  na  haftia  de  huma  chuffa  com  que 
pelejava  ,  que  tinha  eníbpada  nas  barrigas 
de  mais  de  quarenta  daquella  feita :  e  com 
as  mãos  encravadas  pelejou  hum  pouco  co- 
mo hum  leão ,  mas  com  as  forças  das  pan- 
cadas fe  lhe  foi  tanto  fangue  ,  que  cahío  mor- 
to. Os  outros  ficaram  tendo  o  Ímpeto  aos 
inimigos  ,  matando  nelles  como  fe  foram 
mofquitos :  e  tão  grande  medo  lhes  tinham 
todos  ,  que  não  oufando  chegar  a  elles ,  de 
longe  os  combatiam  com  lanças ,  e  dardos 
darremeíTo ,  de  que  hum  deo  pelos  peitos  a 

Si- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VIL  291 

Siir.áo  de  Soufa  ,  que  rompendo-llie  as  ar- 
mns  o  paíToii  de  parte  a  parte  ,  cahindo  logo 
morto.  Aqui  acabaram  de  morrer  em  fcrvi- 
ço  de  Deos  ,  e  d^ElRey  quatro  filhos  de 
Duarte  Galvão  ,  Jorge  Galvão  ,  Manoel  Gal- 
vão ,  Riiy  Galvão,  e  eíle  esforçado  Cavai- 
leiro  Simão  de  Soufa  Galvão  ,  que  veio  ter 
o  fim  tao  peculiar  a  clle.  Os  trcs  que  fica- 
ram eílavam  já  em  eílado ,  que  de  uao  po- 
derem menear  as  armas  fe  renderam  ,  fican- 
do os  inimigos  fenliores  da  galé  ,  em  que 
acharam  ainda  vinte  e  finco  dos  nofiTos  vi- 
vos ,  eílirados ,  e  cheios  todos  de  muitas  fe- 
ridas. Eíla  foi  a  maior ,  e  m.ais  bem  peleja- 
da briga  no  mar  (com  tão  grande  defigual- 
dade )  que  lemos  ,  nem  ouvimos  ,  e  certo 
que  fe  pudera  efte  fucceíTo  contar  entre  os' 
cafos  famofos  do  Mundo  ,  e  muito  mais  pê- 
ra louvar  5  e  engrandecer ,  que  o  daquelles 
Keroes  que  acompanharam  a  Jasão,  que  as 
fabulas  tanto  louvaram ,  e  alevantáram.  Os 
Mouros  magoados  de  verem  alli  tantos  pa- 
rentes, e  amigos  feus  mornos  das  mãos  dos 
nolTos  5  quizeram  vingar-fe  nos  que  ainda 
eftavam  palpitando  j  mas  acudio  a  ifib  o  íèu 
> Capitão,  que  lhos  tirou  das  mãos,  porque 
defejou  muito  de  os  levar  aíli  vivos.  ElRey 
lefteve  vendo  como  entrava  a  galé,  defem- 
barcando  o  Capitão  ,  mandando  levar  os 
nofiTos  ás  cofias  dos  feus  (porque  fe  não  po- 

T  ii  diam 


1<)^   ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

diam  bolir)  lhos  aprcfcntoií.  ElRey  pordif- 
íiinular  íua  maldade  moílrou  pezar-Jhe  de 
os  ver  tao  maltratados,  e  lentio  a  morte  de 
Simão  de  Soufa  :  e  mandando  recolher  os 
feridos  ,  pêra  que  os  curaílem ,  lhes  diíTe  , 
cjiie  como  faraíTcm  ,  elcgelTem  entre  fi  hum  , 
pêra  que  foíTe  a  Malaca  dizer  ao  Capitão , 
que  mandaíTe  bufcar  a  galé  ,  e  aos  mais  com- 
panheiros ,  porque  delejava  muito  de  ter 
paz ,  e  amizade  com  os  Portuguezes ,  man- 
dando ter  dellcs  muito  bom  cuidado ,  por- 
que queria  ver  fe  com  aqueiles  podia  cajar 
outros. 

CAPITULO     VIII. 

De  como  Gonçalo  Gomes  de  Azevedo  ,  que 

hia  pêra  Maluco  ,  chegou  a  Banda  ,  e  do 
.    que  alli  pafjòu  com  D.  Garcia  Henriques  : 

e  de  como  chegou  a  Tidore  Álvaro  de  Sa- 
.  yavedra  Ceron ,  que  partio  da  nova  Hef- 

panha  ,  e  do  que  aconteceo   a  Z).  Jorge 

com  elle, 

PArtido  de  Malaca  Gonçalo  Gomes  de 
Azevedo  com  o  foccorro  pêra  Maluco  , 
como  atrás  contámos ,  foi  com  bom  tempo 
tomar  a  Ilha  de  Banda  ,  onde  achou  ainda 
D.  Garcia  Henriques,  que  eftava  com  tran- 
queira ,  e  em  terra ,  que  o  recebeo  bem  ,  e 
íe  agazalhou  em  outra  tranqueira ,  que  man- 
dou 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VIII.  293 

dou  fazer,  pêra  onde  fe  paíTou  Manoel  Fal- 
cão ,  porque  defejava  de  fe  tornar  pêra  Ma- 
luco ,  e  íoldar-fe  com  D.  Jorge  ,  dando-lhe 
conta  de  tudo  o  que  era  paíTado  antre  aquel- 
les  dous  Fidalgos  ,  de  que  elle  ficou  mui  ef- 
candalizado  de  D.  Garcia.  Poucos  dias  de- 
pois chegou  Vicente  da  Foníeca  ,  que  liia 
pêra  Malaca  com  as  cartas  de  D.  Jorge , 
com  os  autos  ,  e  papeis  contra  D.  Garcia , 
e  foi  agazalhar-fe  com  Gonçalo  Gomes  ,  a 
que  também  contou  ao  que  hia  pêra  Mala- 
ca ,  requerendo-ihe  que  prendeiíe  D.  Gar- 
cia 5  do  que  íe  elle  efcufou  ;  mas  difle  que 
lhe  tombaria  o  navio  por  fer  da  obrigação 
da  fortaleza.  Ifto  fe  com.eçou  logo  a  rom- 
per ,  o  que  D.  Garcia  não  pode  crer.  Tan- 
to que  foi  tempo  de  ir  pêra  Maluco  ,  foi- 
fe  Gonçalo  Gomes  defpedir  de  D.  Garcia, 
que  foi  com  elle  até  a  praia ,  e  embarcado 
nos  batéis  chegou  ás  náos.  ,  e  prepaíTando 
pela  de  D.  Garcia  ,  lhe  mctteo  dentro  Ruy 
Figueira  com  alguns  Portuguezes ,  que  fez 
logo  levar  a  amarra  ,  e  deo  á  vela  junta- 
mente com  Gonçalo  Gomes.  D.  Garcia  ,  que 
andava  fobre  avifo  ,  e  tinha  já  enfaiado  o 
meftre  do  que  havia  de  fazer ,  e  eílava  pref- 
tes  com  alguns  batéis,  em  que  logo  fe  em- 
barcou ,  foi  demandar  a  náo  ,  que  ficava  de- 
trás por  artificio  do  mcílre  ,  que  deo  com 
iclla  por  davante.    Vendo  Ruy  Figueira  vir 

os 


294  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

os  batéis  5  entcndeo  o  negocio ,  e  capeou  a 
■Gonçalo  Gomes  que  hia  diante  ,  c]ue  vol- 
tou 5  e  vendo  ir  os  batéis ,  lhes  atirou  com 
hum  camelo  ,  que  foi  dar  em  hum  delles , 
em  que  hia  Manoel  Lobo  ,  e  lhe  matou  al- 
guns remeiros.  Ruy  Figueira  acudio  ás  ve- 
las 5  e  as  fez  preparar ,  e  tornou  a  náo  a  feu 
caminho  ,  com  o  que  D.  Garcia  fe  tornou 
muito  triík  ,  e  magoado ,  havendo  aquillo 
além  de  perda  ,  por  affronta  mui  grande.  As 
nács,./oram.  fua  derrota  ,  em  que  os  deixa- 
remos 5  por  continuar  com  D.  Jorge.  De- 
pois de  D.  Garcia  embarcado ,  ficou  conti- 
nuando na  puerra  contra  os  Caftelhanos ,  a 
quem  os  Reys  de  Tidore,  e  Geilolo  favo*- 
reciam  ,  e  ajudavam  ,  lançando  fuás  Arma- 
das no  mar,  com  que  defendiam  os  manti» 
mentos  5  que  hiam  pcra  a  noíTa  fortaleza , 
com  o  que  a  puzeram  em  mui^o  grande  aper- 
to. E  pêra  pòr  os  noíTos  em  mor  cuidado , 
chegou  a  l'idore  hum  navio  de  Cafteiha' 
nos  ,  de  que  era  Capitão  Álvaro  de  Saya- 
vedra  ,  que  tinha  partido  da  Nova  Hefpa- 
nha  por  mandado  de  Fernão  Cortês  ,  cujo 
parente  era ,  porque  íc  lhe  oíFereceo  a  def- 
cubrirdalli  Maluco.  Partio  dia  de  Todos  os  ^ 
Santos  do  anno  de  mil  quinhentos  e  vinte 
fete  com  três  navios  ,  de  que  defapparecê^ 
ram  dous ,  fem  fe  faber  onde ,  nem  como. 
Eílç  chegou  a  falvamento  pêra  dar  tantos 

tra- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VIII.  295' 

trabalhos  áquella  fortaleza  ,  e  foi  o  primei- 
ro navio  ,  que  da  nova  Hefpanha  navegou 
pêra  Maluco  ,  e  poz  no  caminho  três  mezes 
pelas  grandes  correntes  d'aguas ,  que  achou 
per  anrre  aquellas  Ilhas  em  feu  favor.  Foi 
eíle  foccorro  muito  feftejado  dos  feus  ,  e  ain- 
da mais  o  eílimáram  ,  por  faberem  a  nave- 
gação daquellas  Ilhas  pêra  a  nova  Hefpa- 
nha ,  porque  aíli  podiam  brevemente  ferfoc- 
coriidos  :  e  aííi  ficaram  tão  foberbos  ,  que 
houveram  que  tinham  pouco  que  fazer  em. 
tomarem  a  fortaleza.  E  logo  os  Rcys  de 
Geilolo,  e  Tidore  negociaram  fuás  Arma- 
das pêra  irem  tomar  a  Ilha  deMoutel,  que 
era  d'ElRey  deTernate,  do  que  foram  avi- 
fados  os  feus  fangajes  ,  e  moradores  ,  e  man- 
daram pedir  foccorro  a  Cachil  Daroez.  Dom 
Jorge  mandou  em  fua  companhia  Fernão 
Baldaya  por  Capitão  da  galeora  nova  ,  que 
já  eftava  acabada  ,  e  lhe  deo  trinta  e  íinco 
Portuguezes ,  e  regimento  a  Daroez  que  an- 
dafle  no  mar  da  Ilha  de  Moutei  pêra  a  de 
Maquiem  ,  e  que  fízeíTem  aos  inimigos  to- 
da a  guerra  oue  pudeíTera.  Dc9i3.  Armada 
foram  os  Caíl, 'lhanos  avifados  :  e  Fernão 
de  la  Torre  defpedio  logo  Álvaro  de  Saya- 
vedra  na  galeota  nova  que  também  fez , 
com  quarenta  Caílelhanos  ,  e  no  caminho 
de  Moutei  fe  encontrou  com  Fernão  Bal- 
xiaya,  que  hia  apartado  de  Cachil  Daroez^ 

ê   COr 


i^G  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

c  como  ambos  eram  esfor^^ados  Cavaliciros  , 
logo  fe  commettêram  deíparando  primeiro 
fua  furriada  de  bombardadas.  E  envcftiiido- 
fe  5  começaram  huma  mui  travada  batalJia  , 
e  nos  primeiros  encontros  mataram  Fernão 
Baldaya  com  oito  Portuguezes  ;  os  mais 
(que  era  gente  muito  coitada)  logo  íe  ren- 
deram aos  Caílelhanos ,  tanto  que  lê  viram 
fem  Capitão.  Sayavedra  fe  recoiheo  com  a 
galeota  ,  levando  íinco  mortos ,  e  rodos  os 
mais  feridos  5  eeniTidore  foi  recebido  com 
muita  fefia  ,  e  aííirmavam  os  homens  de 
Maluco  que  houveram  os  Cafrellianos  eíla 
vitoria  por  culpa  do  noflb  Condeílabre , 
porque  não  metteo  pelouro  no  camelo  da 
coxia  ,  ou  por  efquecim.ento  ,  ou  peitado. 
Eiie  ruim  fucceíío  fentio  muito  D.  Jorge , 
porque  lhe  nao  ficavam  na  fortaleza  mais 
de  fincoenta  Portuguezes.  Cachil  Daroez  ha- 
vendo-fe  por  tão  aitrontado  daquelle  cafo 
ílicceder  eftando  çWq  aufente  ,  de  anojado 
deixou  a  Armada  em  Moutel  ,  e  fe  foi  a 
Ternate.  Foi  iílo  aos  quatro  de  Maio  j  e 
aos  oito  ,  quando  os  noíTos  citavam  mais  <ò.t{'- 
confiados  ,  chegou  Vicente  da  Fonfeca  ,  (que 
fe  tornou  com  o  foccorro  que  achou  em 
Banda , )  e  deo  novas  ao  Capitão  da  vinda 
de  Gonçalo  Gomes  de  Azevedo  ,  c  do  que 
paíTára  com  D.  Garcia.  Fernão  de  la  Tor- 
re, tanto  que  foube  do  foccorro,  determi- 
nou 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VIIL  297 

nou  de  o  mandar  efperar  ao  caminho ,  e  ar- 
mou pêra  iílb  as  duas  galeotas  ,  e  liuni  bar- 
gantim ,  em  que  mandou  embarcar  Sayave- 
dra  com  cento  e  vinte  Jiomens.  Gonçalo  Go- 
mes vindo  íua  derrota  chegou  á  Ilha  deBa- 
chao  5  e  vio-fc  com  aquelle  Rey ,  de  quem 
foube  o  eílado  em  que  a  noíla  fortaleza  ef- 
tava  ;  e  deixando  alli  Manoel  Falcão  ,  até 
que  o  faneaíTe  com  D.  Jorge ,  foi  feguindo 
fua  jornada.  E  indo  na  volta  de  Tcrnate, 
houve  viíla  da  Armada  Caíleihana  ,  que  lo- 
go conheceo ,  e  mandou  embandeirar  o  íeii 
navio  5  por  lhe  moílrar  o  alvoroço,  que  ti- 
nha de  ie  encontrar  com  elles ,  porque  vit 
fem  o  pouco  que  os  receava  ;  e  pondo- fe 
cm  armas  com  ambos  os  navios  juntos  ,  to- 
cando feus  inílrumentos  de  guerra  ,  os  foi  de- 
mandar. Sayavedra  vendo  tanta  confiança , 
foi  paíTando  de  largo  ,  tocando  as  trombe- 
tas ,  como  que  o  íàlvava.  Gonçalo  Gomes 
iem  fazer  cafo  mais  delles  foi  furgir  em  Ter- 
nate  no  porto  deTalangame,  e  dalli  fepaf- 
jfou  á  fortaleza  ,  onde  foi  mui  bem  recebi- 
do de  D.  Jorge  ,  que  logo  lhe  entregou  a 
capitania  mor  do  mar ,  e  a  Alcaidaria  mor 
da  fortaleza  ;  e  fabendo  de  D.  Jorge  o  da- 
mno  que  tinha  recebido  dos  Caítelhanos , 
.pareceo-lhe  bem  tratarem  de  pazes  ,  e  aíli  o 
^coníelhou  a  D.  Jorge  ,  pelo  que  enviou 
iiura  Cavalleiro  honrado  a  Fernão  de  la  Tor- 
re, 


apS  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

re ,   mandrindo-lhe  dizer ,  que  fempre  defe- 
jára  de  ter  com  elle  paz  ,   e  amizade  ,   aííl 
por  ferem  Chriílãos ,  como  por  vaíTalIos  do 
Emperador  ,   tão  liado  em  parentefco  com 
ElRey  de  Portugal  ,   e  que  já  agora  podia 
cuidar   que  não   commettia  aquellas  amiza- 
des por  neceílidades  que  tiveíTe  ,    pois  cita- 
va  com  foccorro  freíco  ;    mas  porque   llie 
parecia  ferviço   de  Deos  ,   e  d^^ElRey  efta- 
rem  amjgos :  que  íe  quizelTe  acceitar  as  pa- 
zes  com   aquelles  apontamentos  ,    que   lha 
mandava  ,   eílava  preftes  pêra  as  fazer,  fe- 
não  que  de  todas  as  perdas  ,   males ,  e  da- 
mnos  5   que   da  guerra  fuccedeíTem  ,    daria 
conta   ao  Emperador.    Fernão  de  Ja  Torre 
rccebeo  bem  a  Jorge  Goterres ,  (que  aíli  fe 
chamava  aquelle  Cavalleiro  ,  )  e  vio  os  apon- 
tamentos 5  que  eram  os  feguintes.  »  Que  Dom 
)>  Jorge  era  contente  de  fazer  pazes  com  os 
))  Reys  de  Tidore ,  e  Geilolo  por  amor  de 
))  Fernão  delal^orre,  eque  daria  hum  Caí- 
O)  telhano  ,  que  Ja  cftava  cativo  do  tempo  de 
))  D.  Garcia  5  e  que  Fernão  de  la  Torre  ih^ 
)>  havia  de  dar  todos  osPortuguezes  ,  quefo- 
»  ram  cativos  na  gaiccta  ,  e  tornar-lhe  a  mc- 
»  lade  da  Ilha  de  Maquiem ,  e  que  não  aju- 
))  daria  aquelles  Reys  contra  elle:  e  que  os 
))  Pcnuguezes ,  eCaílelhínos  ,  que  fe  paíTaí^ 
)>  Jèm  de  huma  parte  pêra  outra ,  não  fendo 
»  por  cafo  crime  5  fe  entregaílem,  e  o  mef- 

))mo 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VIIÍ.  299 

))  mo  os  efcravos :  e  que  Cachil  Darocz  ,  e 
))  ElRey  de  Bachao  nao  íariam  mais  guerra 
»  aos  Reys  deTidore.  »  Fernão  de  Ia  Torre 
confentio  em  tudo  ,  fomente  na  reílituiçao 
:da  metade  da  Ilha  de  Maquiem  ,  porque 
dizia  que  era  já  do  Emperador ,  e  fem  lua 
licença  o  nao  podia  fazer.  Jorge  Goterrcs 
refpondeo  ,  que  pois  aíli  era ,  que  fícaífe  co- 
mo dantes ;  e  defpedindo-fe  delle  fe  foi  pê- 
ra Ternate ,  ficando  a  guerra  aberta.  Ven- 
do D.  Jorge  que  Fernão  de  la  Torre  eíla- 
va  alterado  ,  determinou  de  lhe  fazer  toda 
.a  que  pudeíFe  ,  em  que  fobre  eíleve  ,  por- 
que entendeo  em  Gonçalo  Gomes  de  Aze- 
vedo Capitão  mor  do  mar  ,  que  mais  fol- 
garia de  fazer  cravo  ,  que  guerra  :  e  que 
pelos  poderes  que  levava  ,  o  não  podia  obri- 
gar a  coufa  alguma.  E  por  fe  não  vir  de- 
pois a  achar  cm  faltas ,  defpedio  Simão  de 
Vera  em  hum  navio  com  as  cartas  ,  e  pa- 
peis contra  D.  Garcia  ,  que  eram  os  que 
Vicente  da  Fonfeca  tornou  a  trazer ,  pedin- 
do aííi  ao  Capitão  de  Malaca  ,  como  ao 
Governador  da  índia  ,  que  o  foccorreíTe  com 
gente  ,  navios ,  roupas ,  e  munições ,  dan- 
do-lhes  conta  do  eítado  em  que  aquella  for^ 
taleza  eftava.  Simão  de  Vera  fe  fez  á  véla , 
€  foi  tomar  a  Ilha  de  Mindanao  pêra  to- 
mar mantimentos,  ealli  foi  morto  pelos  da 
terra ;,  c  quantos  hiam  com  ellc.  Fernão  de 

la 


300  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

la  Torre   foi  logo  aviíado   do  navio  ,   que 
D.  Jorge  mandava  a  pedir  foccorro  ,    pelo 
que  também  defpedio  Sayavedra  na  fua  na- 
veta   pêra   a   nova   Hefpanlia  ,    efcrevendo 
aquelle  Vifo-Rey   o  eftado    em  que  ficava  , 
pedindo-lhe   foccorro.    E   pêra    teílemunhas 
das  vitorias ,    que  tinha  havido  dos  noíTos , 
mandou  embarcar  com  elle  alguns  dos  Por- 
tuguezes  ,  que  foram  cativos  na  galeota  ,  em 
que  entrava  hum  Fernão  Moreira  ,    patrão 
da  ribeira ,  hum  Comitre ,  e  hum  Efcrivao 
do  público  judicial   da  fortaleza  ,    e  ouiros 
dous  ,  que  por  fuás  vontades  quizeram  ir  na- 
quella  jornada  ,   Iium    chamado  Simão   de 
Brito  Patalim ,    e  outro  Bernardo  Cordeiro. 
Sayavedra   fe  fez  á  veia  a  quatorze  de  Ju- 
nho 5   e  fazendo   fua    derrota   foi  tomar    a 
Ilha  Hamei ,  cento  e  fetenta  léguas  de  Ti- 
dore  ,    onde  furgio  pêra  fizer  agua  ,   e  le- 
nha.   Os  noiTos  que  hiam  contra  fuás  von- 
tades,   determinaram  de  lhe  queimar  o  na- 
vio ,   porque  nao  pudeíTe  ir  á  nova  Hefpa- 
nha :    c  nao  podendo  achar  com'modo  pêra 
iíTo  ,  furtaram  huma  noite  o  batel ,  c  com 
quatro  efcravos  ,    que  tomaram  da  náo ,  fe 
foram  caminhando  pêra  Ternate  ,   de  Ilha 
em  Ilha  ,  foffirendo  tantas  fomes  ,  trabalhos  , 
e  infortúnios ,  que  de  can fados  fe  deixaram 
fícar   três  delles   em  huma  daquellas  Ilhas  : 
os  outros   três  foram   feguindo   fua  derrota 

até 


Década  IV.  Liv.  IV.  Ca?.  VIII.  301 

até  chegarem  á  IJha  Grandij  do  fenhorio  de 
Tidore  ,  onde  foram  conhecidos  ,  prezos  , 
e  mandados  a  Fernão  de  Ia  Torre ,  que  fa- 
bendo  quem  eram  ,  os  mandou  metter  a 
tormento  ,  e  confeílando  o  que  paíTava  , 
mandou  degollar  Simão  de  Brito  Patalim, 
e  enforcar  Fernão  Moreira  ,  o  outro  ficou 
cativo.  Deílas  coufas  teve  avifo  D.  Jorge, 
que  fentio  mxuito  ,  e  quiz  fazer  guerra  aos 
Caílelhanos  :  mas  Gonçalo  Gomes  de  Aze- 
vedo  fe  efcufou  diíTo  ,  porque  não  tratou 
mais  que  de  cravo  ,  e  largou  os  cargos , 
pêra  que  os  proveíTe  em  quem  quizeííe ,  fi- 
cando como  mercador  particular  ,  forrando- 
fe  de  todas  as  obrigações.  D.  Jorge  deo  os 
cargos  a  hum  Leonel  de  Lima  ,  que  fez 
também  tanto  como  o  outro  :  pelo  que  fi- 
cou pairando  até  lhe  vir  o  foccorro  que 
mandava  pedir.  Álvaro  de  Sayavedra  ven- 
do-fe  fem  batel  ,  efteve  a  rifco  de  fe  tor- 
nar ,  mas  com.metteo  a  jornada  até  tomar 
humas  Ilhas  ,  que  por  terem  muitas  arvo- 
res ,  e  ferem  frelcas  ,  lhe  poz  nome  Bel-jar- 
dim  ,  que  eílam  em  altura  de  dez  gráos  do 
Norte  ,  quafi  duzentas  e  fíncoenta  léguas 
donde  tinha  partido.  Os  naturaes  daqui  são 
homens  alvos ,  de  olhos  pequenos ,  poucas 
barbas  ;  parecem-fe  muito  com  os  Chins, 
cpreiume-fc  que  fe  perderia  alli  algum  jun- 
co feu  ,  e  que  a  gente  ficaria  na  terra,   de 

quQ 


302  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

que  fe  veio  a  povoar  muito  ,  (  porque  to- 
dos trazem  comfigo  íuas  mulheres  per  on- 
de vam  ;  )  e  como  ficaram  naquellas  Ilhas 
lem  converfajão  ,  fizeram-fe  os  que  delles 
procederam  tao  bárbaros  ,  que  pareciam  fal- 
vagens.  Não  havia  naqucJias  Ilhas  criação 
de  aves,  nem  de  gados;  veíliam  huns  pan- 
nos  que  faziam  de  hervas :  não  tinham  fer- 
ro ,  porque  em  feu  lugar  ufavam  de  cafcas 
de  amexas ,  e  de  oftras ,  com  que  cortavam 
as  coufas  que  queriam  :  pefcavam  em  hu- 
mas  aimadias  de  madeira  de  pinho  ,  de  que 
havia  muitas  nas  Ilhas:  o  feu  pão  eram  co- 
cos feccos  ao  Sol ,  a  que  na  índia  commum-, 
mente  chamão  copra.  Comião  hervas  piza- 
das  5  e  não  ufavam  fogo ,  porque  nunca  o 
viram  ,  fenão  depois  que  eílcs  da  compa- 
Tjhia  de  Sayavedra  lho  eníináram  a  fazer, 
e  comeram  até  então  o  peixe  crú.  Sayave- 
dra deixou-fe  ficar  alli  alguns  dias ,  em  que 
lhe  entraram  os  Ponentes ,  com  que  foi  for- 
çado arribar  a  Maluco ,  como  adiante  dire- 
mos. Certo  que  são  muito  pêra  confiderar 
eílas  couíàs  5^  parece  que  foi  permiísão  Di- 
vina o  mão  fim  que  tiveram  eílcs  dous  ho- 
mens que  hiam  pedir  foccorro  ,  o  Sayave- 
dra ,  e  o  Simão  de  Vera ,  hum  por  parte 
dos  Portuguezes ,  c  outro  da  dos  Caftelha- 
ros  :  no  que  moílrou  Deos  clariííimamente 
quão  defervido  era  daquellas  guerras  ,   que 

huns 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  VIII.  303 

huns  Chriílâos  faziam  a  outros  ,  entre  o  mais 
apartado  paganifrao  do  Oriente ,  e  onde  a 
lei  de  Mafamede  fe  começava  a  atear  ,  e 
que  depois  accendeo  tamanhas  labaredas  por 
aquellas  partes  :  mas  eíles  avifos  de  Deos 
não  deixa  entender  a  cubica  humana  ,  que 
fempre  mede  as  coufas  mais  por  íeu  appe- 
tite  ,  que  por  razão.  Deixando  eíla  matéria  , 
tornemos  a  D.  Garcia  Henriques  ,  que  efta- 
va  em  Banda.  Tanto  que  Gonçalo  Gomes 
de  Azevedo  fe  partio ,  elle  fc  embarcou  em 
hum  junco  ,  e  foi  fua  derrota  pêra  Malaca  : 
no  caminho  tomou  huma  embarcação  de 
Mouros  Jaós  com  alguma  fazenda  ,  e  che- 
gando a  Malaca  ,  antes  de  furgir ,  mandou 
pedir  feguro  a  Pêro  de  Faria  pêra  elle  ,  e 
pêra  todos  os  que  hiam  com  elle ,  pelo  ne- 
gocio de  D.  Jorge  que  lhe  elle  mandou ,  e 
defembarcando  em  terra ,  lhes  tomou  a  fa- 
zenda a  todos  ,  dizendo  que  elle  lhes  não 
fegurãra  mais  que  as  peflbas  ,  mas  depois 
lha  tornou  com  fiança  de  fe  aprefentar  em 
Goa  ,  o  que  lhe  concedeo  por  acudir  a  hu- 
ma briga  de  Amoucos  ,  que  em  Malaca 
houve  ,  que  elle  apazigou  com.  morte  de 
oito. 


CA- 


304  ASTA  DE  Diogo  de  Couto 

CAPITULO     IX. 

Do  que  aconteceo  a  António  de  Miranda  y 
que  invernou  em  Ormuz  :  e  de  como  Dio^ 
go  de  Mefquita  foi  cativo  da  Armada 
de  ( 'ambaya  ,  efoi  mettido  em  huma  bom- 
barda  ,  pêra  que  fe  fize/Jè  Mouro  ,  e  da 
grande  corift anciã  que  teve  :  e  de  corno 
ejla  Armada  pelejou  com  Henrique  de 
Macedo  ,  e  da  brava  batalha  que  tive^ 
ram. 

REcoIhido  5  como  atrás  diíTemos ,  An- 
tónio de  Miranda  de  Azevedo  pêra 
Ormuz  com  as  prezas  que  tinira  tomadas  , 
mandou  vender  toda  a  fazenda  das  náos 
que  tomou ,  cm  que  fe  f  zeram  feíTenta  mil 
cruzados  :  pagou  aos  foldados ,  e  deo-Iiies 
mezas.  Como  entrou  Agofto  foi-fe  a  Maf- 
cate ,  e  negociou  a  Armada  toda  ,  com  que 
íe  fez  á  véla  pêra  ir  efperar  as  náos  de 
Meca  {c{VLQ  haviam  de  ir  pêra  Cambaya) 
na  paragem  da  ponta  de  Dio  ,  onde  todas 
vam  demandar.  E  fazendo  fua  jornada  ,  tan- 
to que  deo  na  coíla  da  índia  ,  achou  o 
tempo  tão  groíTo  ,  que  não  fe  atreveo  an- 
dar ao  pairo ,  porque  o  comiam  os  mares. 
E  fazendo  fnial  á  frota  foi-fe  na  volta  de 
Chaui  ,  pêra  onde  todos  o  feguíram.  So- 
mente Henrique  de  Macedo ,  e  António  da 

Sil- 


Década  IV*.  Liv.  IV.  Cap.  IX.  3^5' 

Silva  5  que  fe  deixaram  ficar  na  paragem  de 
Dio  por  foíFrercm.,  melhor  o  pairo.  Os  da 
Armada  de  António  de  Miranda  hiam  tra- 
balhados :  o  Çamorim  pequeno  ,  de  que  era 
GapiLao  Lopo  de  Meíquita  ,  defviou-fe  da 
Armada,  e  os  ventos  ,  e  aguas  o  levaram  á 
enfeada  de  Cambaya  com  mares  que  os  co- 
miam ,  onde  quiz  a  Fortuna  que  cncontraf- 
fe  huma  náo  de  Mouros  m^ui  bem  artilha^ 
da ,  que  trazia  duzentos  homens  de  peleja ,. 
que  também  hia  correndo  com  tempo  ,  le- 
vando hum  bolfo  de  vela  ,  com  que  hia 
demandando  Surrate.  Lopo  de  Mefquita  ,■ 
pofto  que  não  tinha  mais  de  trinta  íblda- 
dos ,  armou-fe ,  e  dando  o  traquete  foi  de- 
mandar  a  náo ,  e  a  inveftio  ,  e  da  primeira 
pancada  que  lhe  deo  fe  lançaram  dentro- 
Lopo  de  Mefquira  ,  e  Diogo  de  Mefquita 
feu  irmão  com  alguns  vinte  foldados  ,  que 
foram  recebidos  dos  inim.igos  com  muito 
esforço,  travando-fe  dentro  hum.a  bem  for- 
mofa  batalha.  As  náos  como  eílavam  aíidas 
huma  da  outra  ,  davam  tam.anhas  pancadas 
com  os  mares  que  eram  banzeiros  ,  que 
abriram  por  algumas  partes ,  por  onde  co- 
meçaram a  fazer  muita  agua  :  e  fcmpre  fe 
desfizera  huma  com  a  outra  ,  fe  com  a  for- 
ça não  quebrara  a  balroa  com  que  eílavam 
prezas  ,  com  o  que  fe  apartaram  cada  hu- 
jna  pêra  fua  parte ,  ficando  Lopo  de  Mef- 
Coutg,  Tom.  L  P.L  V  qu  'ir 


3o6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

quita  com  os  feus  pelejando  na  náo  dos 
inimigos  com  muito  valor,  ferindo,  e  ma- 
tando nos  Mouros  cruelmente.  Os  do  ga- 
leão não  puderam  tornar  a  ferrar  a  náo  ,  e 
íbi-lhes  forçado  (pela  muita  agua  que  fa- 
liam )  dar  á  vela  pêra  Chaul.  Os  que  fíca- 
Tam  na  náo  vendo  que  fua  ílilvaçao  eftava 
em  feus  braços  depois  de  Deos  ,  determi- 
naram de  fe  livrar  por  elles ,  pelejando  co- 
ino  leões  famintos  ,  fazendo  tamanha  def- 
truiçáo  nos  Islouros  ,  que  depois  de  terem 
os  mais  delles  mortos ,  e  os  outros  feridos , 
entregáram-fe-lhe  ,  ficando  os  noílbs  tam- 
bém com  muitas  feridas.  A  náo  com  a  mui- 
ta agua  que  fazia  hia-fc  ao  fundo  ,  a  que 
os  noflos  acudiram  ,  huns  ás  bombas  ,  ou- 
tros a  tapar  os  buracos  ,  mas  a  coufa  hia 
em  crefcimento  :  pelo  que  Lopo  de  Mef- 
quita  mandou  a  feu  irmão  Diogo  de  Mef- 
quita ,  que  fe  metteíTe  no  batel  com  alguns 
Portuguezcs  com  clle  ,  e  mandou  metter 
muitos  caixões  de  ouro ,  e  prata  que  a  náo 
trazia  ;  porque  fe  fe  ella  foíTe  ao  fundo ,  fe 
falvaíTe  aquillo ,  e  náo  deixou  de  trabalhar 
por  vencer  a  agua.  Os  do  batel  havendo 
que  a  náo  náo  poderia  deixar  de  fe  ir  ao 
fundo  5  receando-fe  que  os  forveíTe  com  el- 
la, e  que  os  outros  fe  quizefiem  metter  no 
batel ,  que  era  pequeno ,  o  que  feria  caufa 
de  fe  perderem  todos ,  aíraíláram-fe  da  náo  , 

e  de- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IX.  -^oj 

e  deram  á  vela  ,  fem  Diogo  de  Mefquita 
(que  gritava  tal  não  fizcílem)  lhe  poder 
valer  ;  e  foram  governando  pêra  Chaul ,  fa- 
zendo-lhe  Diogo  de  Meiquita  íeus  requeri- 
mentos ,  e  pedindo-Ihe  que  o  puzeíTem  na 
náo  onde  ficava  ieu  irmão  ,  de  que  lhe  a 
elles  deo  muito  pouco.  Lopo  de  Mefquita 
que  ficou  na  náo  com  outros  tantos  como 
hiam  no  batel  ,  que  feriam  oito ,  ou  dez , 
tanto  trabalharam  ajudados  dos  Mouros  , 
que  tomaram  algumas  aguas  por  partes  , 
com  que  ficou  a  náo  pêra  poder  governar , 
e  deram  á  vela  pêra  Chaul ,  onde  ao  outra 
dia  furgio  ,  achando  já  alli  António  de  Mi- 
randa ,  que  foube  do  que  pafiliva ,  e  ficou 
muito  agaílado  pelos  do  batel ,  que  fe  não 
fabia  deiles.  A  fazenda  defía  náo  fe  tirou , 
e  vendeo ,  dando-fe  as  partes  aos  foldados , 
e  ficaram  a  ElRey  forros  mais  de  feíTenta 
mil  pardáos  ,  a  fór^a  o  ouro  ,  e  prata  que 
hia  no  batei  ,  que  montava  mais.  Os  do 
batel ,  que  tomaram  o  camJnho  de  Chaul , 
quiz  Deos  pagar-Ihes  fua  deshumanidade , 
(porque  não  cuidem  que  ha  quem  poíTa  fu- 
gir a  Icus  caíligos  ,  )  e  aífi  foram  dar  com 
a  Armada  deDio,  que  já  andava  fora,  que 
feriam  trinta  e  três  gaieotas  mui  bem  pe- 
trechadas  ,  de  que  era  Capitão  mor  hunri 
yalente  Mouro  chamado  Aíixá.  Efte  vendo 
o  batel  fe  foi  a  elle,  e  o  tornou^  recolhen- 

V  ii  do^ 


jo2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

do-fe  com  huina  preza  tao  folgada ,    e  que 
aos  noíTos    cliíIou   tanto  ;    e  fazendo-fe    na 
volta  de  Dio  ,   encontrou  com  o  galeão  de 
Henrique  de  Macedo,  (que  como  já  diíTe- 
inos   fe  deixou  ficar  com   o  de  António  da 
Silva  naquella  paragem  ,   de  quem  fe  tinha 
apartado  com  o  tempo.)  Alixá  vendo  o  ga- 
leão ,   o  rodeou  com  fua  Armada  ,   come- 
çando-o    a  bater   com  fua  artilheria   de  ca- 
melos ,  e   falcões  de  metal  ,   de  que  trazia 
muitos.  Henrique  de  Macedo  negociou  mui 
bem   o  feu  galeão  ,    repartindo    o  trabalho 
delle  pelas  peílbas  de  mais  confiança ,  e  re- 
cebeo  os  inimigos  com  muito  animo ,   dan- 
do-lhcs  fuás  falvas  com  a  artilheria  que  tra- 
zia léíles :  com  que  lhes  defapparelhou  mui- 
tas   das  fuftas   por  íima  ,   porque    como   o 
galeão   era  alterofo  ,   paílavain-lhe  os  mais 
dos  tiros    por  alto  ,    por  ferem  as  galeotas 
raíleiras ,  que  fe  mettiam  debaixo  da  fua  ar- 
tilheria 5  batendo  o  galeão  ao  lume  d'agua  , 
por  onde  lhe  abriram,  muitos  rombos ,  e  fe 
houvera  de  ir  ao  fundo ,  fe  não  fora  a  mui- 
ta diligencia  de  Henrique  de  Macedo ,  que 
acudia  a  tudo  com  muita  preíleza  ,  mandan- 
do tapar  os  buracos  com  colchas ,  colchões  , 
e   com  outras  coufas.    A  bateria  dos  inimi- 
gos era  cada  vez  maior,   e  o  galeão  elbva 
já  todo  deíapparelhado ,    os  maftos  quebra- 
dos j  as  obras  de  fmia  desfeitas  de  forte ,  que 

fi- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IX.  309 

ficava  razo  ,  e  os  noííbs  no  convés  defcu- 
berros  a  ícus  tiros  ,  fern  deixarem  feus  lu- 
gares ,  pelejando  todos  com  muito  vaior. 
Henrique  de  Macedo  corria  o  galeão  dd 
poppa  á  proa  ,  animando  ,  esforçando  os 
léus  ,  tendo  em  baixo  alguns  homens  de 
muito  recado  com  efcravos  ,  e  marinheiros 
pêra  acudirem  aos  buracos  que  fe  abriíTem. 
Todos  eíle  dia  mereceram  hum  grandiílimo 
louvor  ,  porque  com  andarem  feridos  de 
rachas ,  e  frechadas ,  por  huma  parte  pele- 
javam com  fuás  efpingardas  ,  com  que  ti- 
nham mortos  muitos  dos  inimigos  ;  e  por 
outra  ajudavam  a  bornear  as  peíTas  da  arti- 
Iheria ,  fazendo  os  mais  delles  o  officio  de 
bombardeiros  ,  carregando  as  peíTas ,  e  ati- 
rando com  ellas  como  fc  toda  a  vida  o 
ufiram  ,  foíFrendo,  e  pelejando  como  ho- 
mens que  fe  viam  tao  deílroçados  ,  c  per- 
didos 5  e  que  queriam  vender  mui  bem  íuas 
vidas.  Alixá  vendo  o  galeão  todo  arraza- 
do ,  determinou  de  o  abalroar ,  e  entrar ,  o 
que  accommetteo  com  grandes  gritas ;  m.as 
cuftou-lhe  caro  eíle  accommettimento  ,  por- 
que achou  nos  noíTos  tal  refiilencia  ,  que 
com  m.orte  de  muitos  o  fizeram  aífafiar  ,  e 
aíli  por  outras  algumas  vezes  que  os  torna- 
ram a  commetter.  Durou  efla  briga  quaíi 
oito  horas  ,  fendo  cada  vez  mais  cruel ,  e 
apertada  ,   eílando   os   inimigos   admirados 

do 


3IO  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

ào  trabalho  ,  que  os  noíTos  tinham  foíFrí- 
do,  e  do  novo  animo  com  que,  cada  vez 
que  os  accommettiam  ,  os  achavam.  Efían- 
do  neíle  riíco  ,  e  o  Alixá  determinado  de 
os  nao  hirííar  até    os  render  ,    foccorreo-os 

-O  ' 

Deos  com  a  chegada  do  galeão  Reys  Ma- 
gos ,  de  que  era  Capitão  António  da  Sil^ 
va  ,  que  acudio  ao  tom  das  bombardadas, 
c  vinha  com  as  velas  dadas  ,  e  portos  em 
armas  ;  e  vendo  o  noíTo  galeão  tão  piedo- 
ío ,  deo  graças  a  Deos  pela  mercê  que  lhe 
fizera  em  o  trazer  aqueile  tempo  ;  e  pêra 
alegrar  a  todos ,  mandou  com  muito  alvo- 
roço tocar  as  trombetas,  que  começaram  a 
tanger  :  Akgrai-vos  ,  alegrai-'vos  ,  que  aqui 
'vem  os  ires  Reys  Magos,  Chegando  ás  ga- 
leotas ,  metteo-fe  em  meio  delias ,  e  as  co- 
ineçou  a  varejar  com  fua  artiíheria  ,  em  que 
fez  mui  bom  emprego.  Alixá  tanto  que  vio 
o  foccorro  ,  tomando  o  remo  em  punho  , 
fe  foi  fahindo,  e  António  da  Silva  feguin- 
do-o  ás  bombardadas ,  fazendo-lhe  o  -Alixá 
fem.pre  rofto  com  algumas  galeotas,  e  ati- 
rando-lhe  tam.bem  muitos  tiros,  de  que  quiz 
a  dcfaventura  que  accrtaíTe  hum  António 
da  Silva  ,  de  que  cahio  morto  ,  nao  peri- 
irando  outrem  no  {qm  oraleao.  Os  feus  foi- 
dados  ficaram  muito  triftcs ,  e  voltaram  pe* 
ra  o  outro  galeão.  E  fabendo  Henrique  de 
Macedo  tamanho  defaílrC;  o  fentio  em  ex-^ 

tre- 


I 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  IX.  311 

tremo  ;  e  porque  o  feii  galeão  nao  tinha 
niaílos  ,  deo-lhe  os  Revs  Magos  hiima  toa , 
e  com  muito  trabalho  o  poz  em  Chaul  tâo 
deílrocado  ,  que  nao  apparecia  mais  que 
hum  pequeno  de  calco  ibbre  a  agua  ;  e  aíli 
apparece  ainda  hoje  das  varandas  da  Igreja 
das  Chagas  em  Goa ,  onde  eílá  eíla  batalha 
pintada  ,  e  cada  anno  fe  renova  por  memo- 
rável. OAlixá  fe  foi  recolhendo  pcra  Cam- 
baya  ,  onde  cliegou  ,  e  aprefentou  ao  Sul- 
tão Badur  os  cativos ,  com  que  elie  folgou 
iriuito.  E  como  era  fraco,  e  cruel,  (cou- 
fas  que  fempre  andam  juntas  , )  e  fobre  tu- 
do maliílimo  ,  mandando  levar  aos  Portu- 
guezes  diante  de  íi ,  os  perfuadio  a  fe  faze- 
rem Mouros,  apertando  multo  com  Diogo 
de  Meíquita ,  que  foubc  fer  homem  Fidal- 
go ,  e  grande  Cavalleiro  ,  do  que  eíle  fem- 
pre zombou  ,  com  Uv^  fazerem  muito  gran- 
des promeílas  ,  e  mimos.  E  vendo  que  por 
aqui  o  não  vencia  ,  o  quiz  fazer  por  tor- 
mentos que  lhe  mandou  dar  ,  de  quem  fe 
elie  movco  menos ;  o  que  viílc  pelo  tyran- 
no  ,  mandou  levar  huma  bombarda  muito 
groíTa  ,  e  o  mandou  metter  nella  ,  eílando 
elie  prefente  ,  a  quem  o  Cavalleiro  de  Chri- 
fto  com  grande  conílancia  diíTe  :  Faze  , 
cruel ,  o  que  quizeres ,  que  eu  por  nenhum 
temor  ãa  morte  hei  de  deixar  a  Fé  de  fueu 
Senhor  Jefus  Chrijlo ,  pela  falfa ,  e  raenti- 

rO' 


^^12  ÁSIA  DF,  Diogo  de  Couto 

rofa  lei  ãe  Mafameàe  :  matida  pôr  o  fogo  , 
^ue  a  morte  he  breve  ,  e  eu  gozarei  dos 
bens  eternos  ,  que  fe  não  acãbam.  Tomara 
que  o  tormento  fora  maior  ,  e  mais  cruel , 
€  comprido  ,  pêra  mojlrar  o  gojlo  com  que 
defejo  de  pajjar  todos  pela  honra  de  meu 
Deos,  Palmado  o  Badur  daquelle  animo  ,  e 
conílancia  ,  o  mandou  tirar  da  bombarda. 
Os  mais  companheiros  convencidos  daquel- 
la  firmeza  ,  não  houve  em  algum  deJles  ,  a 
quem  promeíTas  ,  e  ameaças  mudaíTcm.  ,  e 
foram  todos  m.ettldos  em^  huma  cruel  pri- 
zão  3  donde  depois  íahíram  com  honra , 
porque  Deos  não  defampara  os  feus  fervos. 
E  de  Diogo  de  Me í quita  fabcmos  que  lhe 
deo  ElRey  D.  João  lo  por  ifto  as  fortale- 
zas de  Çofala  5  e  Moçambique ,  como  em 
outro  lugar  fe  verá. 

CAPITULO     X. 

T)o   que   aconteceo   na  jornada   a  Martim 

Ajfonfo  de  Mello  Juzarte  :   e  de  como 

fe  per  deo  na  cofia  de  Bengala  :    e 

dos  grandes  trabalhos  que  paf- 

fou  até  fer  cativo, 

COm   todos    os  que   no  cabo  do  verão 
partiram  pêra  fora  ,  temos  continuado  , 
fomente   cora   Martim  AíFonlb   de  Mello, 
que  guardámos  pêra  efte  lugar  ,  por  não 
^  con- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  X.  313 

contannos  fuás  couíiis  por  pedaços.  Parti- 
do eíle  Capitão  de  Goa  ,  foi  tomar  a  Ilha 
de  Ceyláo  ,  como  levava  por  regimento  , 
pêra  foccorrer  áquelle  Rey  da  Cora  ,  que 
eflava  já  defapreílado  da  Armada  de  Cale- 
cut ;  porque  t^.nto  que  teve  rebate  da  noíTa , 
Jogo  fe  recoiheo  ,  e  o  Madune  levantou  o 
cerco  que  tinha  poílo  ao  irmão.  E  porque 
a  cauía  deíia  guerra  ,  e  a  origem  deftes 
Reys  adiante  em  principio  da  quinta  Déca- 
da damos  razão  ,  por  nos  parecer  alii  me- 
lhor lugar  ,  o  deixamos  agora.  Eilimou 
aquelle  Rey  da  Cota  eíie  íoccorro  m.uito , 
-e  ficou  mais  obrigado  ao  ferviço  d^ElRey 
de  Portugal ,  cujo  vaiTalio  era.  Martim  Aí- 
fonfo  náo  tendo  aili  mais  que  fazer ,  deo  á 
véla  ,  e  paíTou  os  baixos  á  outra  banda  ,  e 
foi  invernar  a  Paleacate ,  onde  mandou  def- 
armar  os  navios ,  e  concertallos ,  e  alim.pal- 
los  muito  bem ,  pêra  na  entrada  de  Agoílo 
feguir  fua  jornada  pêra  Aialaca.  O  fegredo 
delia  não  pode  eílar  tão  cuberto  ,  que  fe 
não  vieíTe  a  romper  pelos  foldados  ,  de  que 
•ficaram  tão  enfadados  ( cuidando  que  hiam 
-ás  prezas)  que  fe  amotinaram  ,  e  alteraram, 
chegando  a  coufa  a  tanto,  que  trataram  de 
■queimar  a  Armada  pelo  avorrecimento  que 
:tinham  todos  á  jornada  da  Sunda  :  e  aíli 
■lhe  puzeram  fogo  ,  a  que  Martim  Aífonfo 
acudio ;  e  quiz  Deos  que  o  apagalTem  ,  fem 

nun- 


314  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

nunca  fe  faber  donde  lhe  veio.  Vindo  Agoi- 
ro ,  embarcando-íe  Martini  Affonfo  ,  dei- 
xáram-íè  ficar  na  terra  muita  parte  dos  fcus 
íoldados  ,  e  elle  foi  íeguindo  fua  jornada. 
E  por  ter  novas  que  na  coíla  do  Pegu  an- 
davam algumas  fuftas  de  Rumes,  a  foi  de- 
mandar ,  e  furgio  na  ponta  de  Nagramale , 
onde  fe  deixou  eílar  por  ver  fe  vinham  as 
fuftas  dos  Rumes  dar  com  clle.  Aqui  lhe 
deo  tamanho  temporal ,  que  nao  podendo 
foífrer  a  amarra  ,  levantáram-fe  ,  e  foram 
correndo  com  os  traquetes  por  onde  cada 
hum  pode.  Ao  outro  dia  achou-fc  Martim 
AíFonío  fem  os  navios,  e  como  a  tormen- 
ta ceifou  ,  tornou  a  voltar  pêra  Negra male 
aos  efperar.  Ei  navegando  per  antie  humas 
Ilhas ,  deo  a  galé  em  hum  baixo  onde  logo 
adornou.  Caftanheda  diz  que  era  caravela ; 
mas  nos  livros  velhos  dos  provimentos  das 
Armadas  defle  tempo  achámos  nomeada 
galé ,  que  naquelle  tempo  eram  carraças  na 
grandeza  ,  e  no  pezo  ,  e  nao  fe  remavam 
mais  que  pêra  fe  revocarem.  Martim  Af- 
fonfo teve  tal  tento  ,  que  por  feniir  reboli- 
ço na  gente,  poz  cobro  na  bateira,  c  man- 
dou metter  nella  André  de  Souía ,  mandan- 
do-llie  que  fe  aífaftaíle  ,  e  nao  deixaíle  met- 
ter peííoa  alguiPia  dentro  ,  porque  tratou  de 
ver  fe  os  podia  falvar  em  jangadas  ,  que  lo- 
go mandou  ordenar  de  páos ;  tavoas ,  e  re*- 

mos. 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  X.  315' 

mos.  E  por  for  de  noite  cfciira  ,  e  medo- 
nha ,  com  as  pancadas  acnbou  a  galé  de  íe 
abrir  ,  ficando  alguns  pedaços  grandes  no 
íecco  5  em  que  os  Portuguezes  lè  deixaram 
cílar ,  fazendo-íe  preílcs  alguns  pêra  fe  lan- 
çarem ao  mar  5  ao  que  lhes  foi  á  mão  Ma r- 
tim  Affonlo  ,  esforcando-os  ,  e  animando- 
os  5  affirmando-Ihes  que  com  o  íav^or  Di- 
vino elle  trabalharia  por  faívar  todos.  E 
chamando  a  bateira ,  metteo-lè  nella  ,  e  re- 
colhco  hum  ^  e  hum  ,  os  que  clk  chamou  , 
e  depois  de  fe  encher,  ficando  fó  leis  Por- 
ruguezes  ,  e  os  efcravos  todos ,  fe  affaílou 
por  recear  que  fe  os  tomava  fe  perdeíFem , 
ficando  os  da  galé  pedindo  milericordia , 
com  palavras  piedoíiílimas  ,  que  cortaram 
bem  a  Martim  Affonfo  ;  mas  não  pode  fa- 
zer outra  coufa  ,  promettendo-lJies  ,  que 
tanto  que  lançaííe  aqueHa  gente  numa  terra 
que  apparecia  ,  tornaria  a  voltar  por  elles. 
E  foram  remando  com  muito  trabalho  até 
chegarem  a  huma  Ilha  ,  diftancia  de  huma 
■ 'gua  de  caminho.  E  por  fer  de  noite,  e  o 
mar  fazer  grandes  efcarceos  ,  temeo  chegar- 
Jé  a  terra  :  e  lançou  dous  marinheiros  a 
Jiado  ,  pêra  verem  fe  havia  alii  praia,  ou 
penedia  ,  que  não  tornaram  mais  ,  nem  fe 
foube  o  que  foi  delles  ,  pelo  que  tornou 
Martim  Affonfo  a  voltar  pêra  a  galé,  e  to- 
mou os  Portuguezes   que  nella  ficaram  ,  c 

tor- 


3i6  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

tornoií-fe  pcra  a  terra  ,   onde  tomou  coníc- 
lho  fobre   o  que  faria  ,   e  alTentou  de  fe  ir 
de  longo  delia  até  Arracao  ,    períuadindo  , 
c  esforçando    a  todos  a  foffrer  os  trabalhos 
da  fome  ,  e  fede  ,  porque  não  levavam  mais 
que    hum  pouco   de  bifcouto   que  puderam 
-lalvar  ,   fem  agua  alguma  ,    e  todo  aquelle 
dia  por  caufa  da  fede  não  quizeram  comer. 
E    indo    feu    caminho    houveram    vida    de 
huma  aldea  aíFaftada  da  praia.  Marrim  Af- 
fonfo  mandou  á  terra  hum  homem  Fidalgo 
chamado  Francifco  da  Cunha  ,    e  com  elie 
hum  João  Fialho  ,   pêra   irem    á  aldea  ver 
fe  lhe  queriam  dar  agua  ,  e  chegados  a  ter- 
ra foram  cativos  dos  naturaes  ,    que  á  vifta 
dos  noiTos    os  levaram    amarrados.    E  por- 
que o  vento  5   e  o  mar  crefcia ,  e  elles  eíla'- 
vam  fem  agua  ,  e  havia  dous  dias  que  não 
beberam  ,    requereram  todos  a  Martim  Af^ 
fonfo  5    que   os  lançaífe  em  terra  ,    porque 
antes  queriam  fer  cativos ,  que  morrerem  á 
fede.  Martim  Affonfo  trabalhou  de  os  tirar 
deíle  propofuo  ,   com  os  perfuadir  a  foíFre- 
rem   mais    hum  dia    de  trabalho  até  chega- 
rem a  Arracão  ,  (que  era  terra  onde  os  Por^- 
tuguezes    hiam   todos   os  annos  commutar , 
-c  vender  j)  mas  elles  fem  ter  refpeito  acour- 
fi  alguma  fe  puzeram  em  defembarcar  ,   o 
que  Martim  Affonfo    fentío    muito  ,   e   fez 
grandes  eflremos.  Viílo  eíle  cafo  por  alguns 

Fi- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  X.  317 

Fidalgos  Cavalleiros  ,  como  Simão  Ferrei- 
ra 5  André  de  Souía ,  Gonçalo  de  Mello, 
Nuno  Freire  ,  e  outros  dous  Cavalleiros , 
lançáram-fe  da  parte  de  Martim  Affonío  , 
e  fizeram  com  os  mais  ,  que  dcfiftifTem  de 
feu  propoíito  ,  e  que  íe  foíTem  até  Arracao  , 
e  que  permittiria  Deos  que  achaíTcm  al- 
guns dos  navios  de  fua  companhia  ,  e  aíll 
foram  correndo  a  cofta.  Os  dous  que  alli 
ficaram  foram,  depois  rcfgatados  com  Fran- 
cifco  da  Cunha  ,  que  viveo  depois  muitos 
annos  no  Algarve  cafado.  O  batel  foi  de 
longo  da  terra  até  darem  em  hum  ribeiro, 
que  fahia  ao  mar ,  de  agua  doce  ,  de  que 
mandou  Martim  Aífonfo  encher  huma  jar- 
ra ,  ao  que  foram  Diogo  Pires  Deça  ,  e 
Nuno  Fernandes  Freire  ,  com  outros  dous 
companheiros ,  porque  Martim  Aífonfo  fem- 
pre  fe  guardou  de  chegar  a  terra  porque 
le  não  fahiíTem  todos  pelo  riíco  a  que  fe 
poriam.  Alli  foi  ter  com  elles  hum  negra 
dos  naturaes  ,  com  huma  panella  pequena 
de  arroz  cozido  que  lhe  reigatáram  ,  com 
que  fc  recolheram  pêra  a  embarcação ,  aon- 
,  de  fe  repartio  por  todos  ;  e  como  eram 
rperto  de  leííenta  peiToas ,  coube  a  cada  hum 
leu  bocado ,  e  com  eíTe  pouco  de  bifcouto 
que  tinham  ,  com.o  tiveram  agua  ficaram 
fatisfeitos  ,  e  foram  feu  caminho  com  pro- 
yisão  na  jarra  ,   que  era  pequena  j   de  que 

íe 


3i8  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fe  não  dava  mais  ração ,  que  quanto  fe  po- 
dia molhar  o  pndar  três  vezes  ao  dia.  Com 
cftes  trabalhos  chegaram  a  Arracao  ,  e  toma- 
ram dous  Ilheos  que  eftavam  á  entrada , 
onde  acharam  logo  na  praia  dous  facos  de 
bifcouto  todo  molhado,  ehum  caixão  com 
alguns  guingÓcs  dentro ,  e  pareceo-lhes  que 
feria  de  algum,  dos  navios  de  fua  compa- 
nhia. Neítes  Ilheos  acharam  agua  roim ,  e 
falobra  ,  e  humas  favas  como  as  noíTas , 
humas  verdes  ,  e  outras  feccas ,  de  que  al- 
guns comeram  ,  e  no  mefmo  inílante  lhes 
deo  humas  deílnterias ,  a  que  na  índia  cha- 
mam corruptamente  mordexim,  havendo-fe 
de  chamar  morxis  ,  e  a  que  os  x\rabios 
chamam  f^chaiza ,  que  he  aquillo  que  Ra- 
fis  chama  la h ida  ,  que  he  hum  mal  ,  que  em 
vinte  c  quatro  horas  mata  ,  cujos  effeitos 
são  ficar  logo  o  pulfo  fubmerfo  ,  muito  del- 
gado, com  hum  fuor  frio,  com  grande  in- 
cêndio por  dentro  ,  c  fede  grandiilima ,  os 
olhos  mui  fumidos  ,  grandes  vómitos,  em 
fim  deixa  a  virtude  natural  tão  derribada  , 
que  parece  hum  homem  morto  ,  como  to- 
dos os  que  comeram  as  favas  ficaram.  Mar-- 
tim  AfFonfo  acudio  a  cite  negocio  ,  defen- 
dendo aos  outros  que  as  não  comeííem.  E. 
porque  não  havia  com  que  remediar  os  pa- 
cientes,  ficaram  deitados  porelTa  praia,  efc 
perando  pela  hora  em  que  elpiraíTem.  Mar^ 

tiíU 


Década  iV.  Liv.  IV.  Cap.  X.  31Í? 

rim  AíFonfo  anojado  de  ver  dez  ,  ou  doze 
companlieiros  naquclJe  eftado  fcm  lhes  po- 
der valer  ,  toda  a  noite  paíTeou  ,  e  o  meí^ 
mo  fizeram  os  sãos.  E  andando  Nuno  Fer- 
nandes Freire  ,  e  PVancifco  Mendes  de  lon- 
go da  praia  ,  porque  fazia  luar  ,  vigiando 
ie  viam  alguma  embarcação  ,  viram.  íahir 
d'agua  luima  grande  tartaruga  ,  e  baquean- 
do-íe  5  foram  mui  efccndidamente  apôs  el-* 
la  5  até  a  verem  recolher  em  hum.a  parte 
onde  tinha  os  ovos  ,  e  chegando  a  ella  a 
tomaram  com  trabalho  ,  e  acharam  duzen- 
tos ovos  ,  que  com  muito  alvoroço  leva- 
ram a  Martim  AíFonfo  que  os  cftimou  mui- 
to 5  e  logo  mandou  efcalfar  as  gemas  era 
huma  bacineta  de  latão,  que  por  acerto  hia 
no  batel  ,  e  elle  com  a  fua  mão  os  foi  dar 
aos  doentes  ,  que  eíiavam  taes  que  não  fen^ 
tiam  couía  alguma  ,   e  a  tartaruga  fazendo-a 

em   pedaços    a  mandou  cozer  em  hum   ca- 

^        ^j  j  '^  cr 

pacete  ,   de  que   todos   comeram    com  eiie 

pouco  bifcouto  que  tinham.  Com  iílo  co- 
braram os  doentes  algum  alento.  Ao  outra 
dia  tomaram  outra  tartarug"a  com  outra  fom- 
ji^a  de  ovos ,  que  fe  deram  aos  doentes  ,  e 
com  iílo  faráram  fem  perigar  algum  ;  no 
que  fe  cumprio  bem  aquelle  noíTo  adagio 
antigo  (que  a  quem  Deos  quer  dar  a  vida , 
a  agua  da  fonte  lhe  he  mezinha.)  Alli  eftí- 
^'er^iíD  três  dias.  e  Martim  AíFonfo  fe  cm- 

bar- 


320  ASIiV  DE  Diogo  de  Couto 

barcoLi  com  determinação  de  paíTar  a  Cha- 
íigao  ,  porque  Jiia  alli  hum  companheiro 
que  já  eíHvera  naqueJhi  Cidade  ,  e  navegan- 
do pêra  Já  ,  foram  tomar  a  praia  de  huma 
Cidade  chamada  Suquriá  ,  de  que  era  fenhor 
hum  Mouro  chamado  Codavaícan.  Aili  eí^ 
tiveram  três  dias  comando  palmitos  de  que 
lia  via  muitos.  Codavaican  foi  logo  avifado 
de  íua  chegada  ,  e  defejou  de  os  haver  ^ 
por  íe  cijudar  dclles  em  huma  guerra  que 
tinha  contra  hum  vizinho  :  e  mandou  a  if- 
fo  ]]um  Capitão  com  duzentos  hoiriCns  que 
os  tomaram  ,  fem  os  noíTos  lhes  poderem 
fugir  ,  Jevando-os  foltos  com  muitas  pro- 
incjras  de  honras ,  e  mercês.  Codavaícan  03 
reccbeo  mui  bem  ,  confoiando-os  de  feus 
trabalhos  ,  e  que  fizeíTcrn  conta  que  eftavam 
em  Portugal ,  porque  tudo  fe  lhes  daria  de 
<]ue  tivcliem  neceílidade  ,  e  que  dle  lhes 
promettia  de  os  mandar  pêra  a  índia ;  e  deo 
cuidado  a  peíToas  de  recado  que  os  agaza- 
Jhaílem  ,  mandando-os  logo  veíHr,  porque 
Liam  quaíi  niís.  Ao  outro  dia  que  iílo  paf* 
iou  'chegaram  áquella  barra  duas  fufcas  da 
companhia  de  Martim  Aífonfo  ,  de  que 
eram  Capitães  Duarte  Mendes  de  Vafcon- 
ceilos  ,  e  João  Coelho  ,  que  íouberam  de 
Iiuns  pefcadores  como  alli  tinham  chega- 
do hunb  poucos  de  Portuguezes  que  eíía-» 
vam  na  Cidade ;  pelo  que  lançaram  em  ter^ 

ra 


Década  IV.  Liv.  IV.  Càp.  X.  321 

ra  hum  Negro  em  trajo  dos  naturaes  pêra 
ir  laber  quem  eram  ,  que  fallou  com  Mar- 
tim  AíFonlò ,  e  fabendo  dos  feus  Capitães , 
ficou  muito  alvoroçado  ,  e  foi-fe  Jogo  a 
Codavafcan ,  e  lhe  pedio  licença  pêra  fe  ir, 
lembrando-Ihe  a  proineíla  que  lhe  fizera.  Co- 
davafcan lhe  diíTe  que  lhe  não  negaria  ir-fe 
pêra  a  índia  como  lhes  promettêra  ,  mas 
que  por  então  tinha  neceílidade  de  fua  aju- 
da pêra  contra  hum  vizinho  feu  ;  e  que 
mandafle  recado  aos  Capitães  dos  navios 
que  fe  deixaíTem  eílar,  que  elle  os  manda- 
ria prover  de  tudo.  Martim  Affonfo  os 
mandou  avifar  do  que  paílava  ,  pedindo-lhes 
fe  deixaíTem  ficar,  como  fizeram,  mandan- 
do-lhes  ElRey  dar  mantim.entos  ,  e  logo  fe 
partio  pêra  a  guerra  ,  dando  arrnas  aos  noí- 
íbs  ,  que  levou  pêra  guarda  de  fua  pcíToa. 
E  vindo  á  batalha  com  o  inimigo ,  fizeram 
Martim  AfFonfo ,  e  os  companheiros  tama- 
nhas cavallerias ,  que  elles  fòs  desbarataram 
os  inimigos  ,  e  Codavafcan  lhe  tomou  a 
fua  Cidade,  e  terras,  e  recolheo-fe  vitorio- 
fo.  Martim  Affonfo  lhe  pedio ,  que ,  pois  o- 
tiivha  fervido  no  que  queria  ,  o  deixaíte  env 
barcar  nos  feus  navios  ,    aue  os  cfceravam- 

^      ir 

por  feu  mandado ;  como  todos  os  Mouros 
não  amam  a  Chriílão  fenão  por  neceíTida- 
de  5  ou  intereíTe  ,  lhes  diííe ,  que  fe  refgataí^ 
fcm  ,  e  que  então  os  foltaria.  Martim  Af- 
Couto.  Tom.  L  P,  L  X  foii- 


322  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fonfo  ficou  muito  enfadado  ,  dizcndc-lhe  que 
€om  que  fe  havia  de  refgatar  le  eílava  alli 
perdido  como  elle  via  ?  que  puzeíTe  elle  o 
preço  ao  relgate  de  todos  ,  e  mandaíTe  com. 
elle  hum  homem  ,  que  no  primeiro  porto 
de  Portuguezes  lho  daria  íem  lhe  faltar 
hum  real.  Codavaícan  zombou  daquillo. 
Vendo  Martim  Aífonfo ,  e  os  mais  aquella 
tyrannia  ,  determinaram  de  fugir  ,  pêra  o 
que  miandárnm  recado  aos  Capitães  das  fuf- 
tas  peio  mefmo  Negro  que  lho  trouxe  dei- 
las  5  em  que  lhes  pedia ,  que  em  iium  certo 
dia  (que  lhes  limitaram  )  mandaíle  pelo  rio 
aííima  algumas  almadias  até  hum  certo  lu- 
gar pêra  os  recolher.  Vindo  a  noite  apra- 
zada fahíram  de  cafa  ,  porque  não  tinham 
guardas  ,  e  efpalhados  foram  demandar  o 
lugar  das  almadias ,  que  era  dalli  a  quatro 
léguas.  O  camiinho  era  mui  roim  ,  e  com- 
prido ,  em  que  fe  perderam  alguns  ,  que 
não  tiveram  outro  remédio  fenão  tornar-fe 
pêra  a  Cidade,  onde  entraram  ainda  de  noi- 
te ;  e  achando  que  nao  foram  fentidos  ,  fe 
deitaram  nas  fuás  cam>as  pêra  diílimulação , 
e  antre  eíles  era  Diogo  Pires  Deça  hum 
delles.  Martim  AíFonfo  com  os  mais  foram 
por  diante  ,  e  como  o  caminho  era  peílife- 
ro  ,  tardaram  tanto  ,  que  lhes  amanheceo 
nelle ,  e  foi-lhes  neceíTario  embrenharem-fe. 
Ao  outro   dia  foube-fe   de  fua  fugida  ,  e 

man- 


Década  IV.  Liv.  IV.  Cap.  X.  315 

mandou  Codavafcan  levar  perante-  íl  Diogo 
Pires  Deça  ,  e  os  mais  ,  a  que  perguntou 
pelos  companheiros  j  elle  lhe  dilTe  que  náo 
dera  fé  de  coufa  alguma  ,  nem  os  achara 
menos  ,  íenao  pela  manhã  quando  acorda- 
ra. Codavafcan  defpedio  logo  quatrocen- 
tos homens  apôs  Martim  Aííbnfo  ,  e  ap- 
pellidando  a  terra  foram  dar  com  os  nolTos 
embrenhados  ,  e  os  tomaram.  Martim  Af- 
fonfo  diíTe  ao  Capitão  (  cuidando  que  Co- 
davafcan lhes  mandaíTe  fazer  algum  mal) 
que  dÍQ  fó  tinha  a  culpa  daquelia  fugida, 
e  não  feus  companheiros ,  porque  como  feu 
Capitão  os  levava ,  que  fe  merecia  caíligo , 
que  a  clle  fó  fe  déíTe.  O  Mouro  lhe  diífe  , 
que  não  fe  perturbaíTe  ,  porque  não  havia 
culpa  em  pertender  fua  liberdade  :  que  Co- 
davafcan não  deixaria  de  lhe  fazer  muitos 
gazalhados  ,  e  de  cumprir  a  palavra  que 
lhe  tinha  dada.  Eftando  neílas  praticas ,  che- 
garam alguns  Bramenes  ,  e  peitaram  aquel- 
ies  Mouros  pêra  que  lhes  déíTem  hum  dos 
Portuguezes  pêra  o  facriíicarem  a  feus  ído- 
los ,  porque  lhe  tinham  feito  promettimen- 
to ,  que  fe  lhos  deparavam,  de  lhe  facrifí- 
carem  hum  delles.  Hum  Capitão  dos  Mou- 
ros lhe  entregou  hum  Gonçalo  Vaz  de  Mel- 
lo 5  que  nas  guerras  paíTadas  tivera  humas 
palavras ,  em  que  affrontára  o  Mouro  ,  por- 
que  fe  quiz  vingar  delle.    Martim  Affonfo 

X  ii   "  pro- 


3^4  ÁSIA  DE  Diogo  í)e  Couto 

prometreo  por  elle  grande  lefgate ,  mas  não 
pode  acabar  Gom  elles  couía  alguma ,  e  lo- 
go alli  á  vifta  de  todos  o  degoliáram  ,  mof- 
írando  grandes  ados  de  Chriílao  ,  e  muita 
firmeza  na  Fé  de  Chriílo.  Do  íangue  d  elle  ^ 
e  de  outros  muitos  Martyres  eftam  todas 
as  praias  do  Oriente  banhadas  ,  pelo  que 
ainda  ha  Deos  de  permittir ,  que  por  todas 
ellas  fe  vejam.  Templos  levantados  ,  onde 
elle  feja  venerado,  e  louvado.  Martim  Af- 
fonfo  ficou  muito  trifte  do  caio  ,  e  aííi  foi 
levado  com  os  mais  a  Codavaícan  ,  que  o 
tornou  a  mandar  pêra  íua  cafa ,  como  dan* 
tes  5  íem  mais  prizao  ,  dando-lhe  todo  o 
necefíario.  Vendo  Martim  x^ffonfo  que  eíle 
negocio  não  tinha  remédio  ,  efcreveo  aos 
Capitães  das  fuílas  tudo  o  que  lhe  tinha 
acontecido ,  mandando-lhes  huma  carta  pê- 
ra o  Governador  ^  em  que  lhe  pedia  os 
mandaíTe  relgatar ,  (com.o  depois  fez ,  man- 
dando a  iíTo  hum  Mouro  chamado  Coge 
Çabadim  ,  que  os  trouxe  a  Goa  já  em  tem- 
po de  Nuno  da  Cunha.  )  Dos  mais  navios 
da  Armada  de  Martim  Affonfo  não  achá- 
mos em  lembrança  o  que  foi  delles  ,  nem 
Caílanheda  o  diz  \  mas  quanto  a  nos  y  a 
mor  parte  delles  fe  perderam. 


DE- 


f]^  '^^^r^  ''^ijf^  '*~;ir^  "-'-^r^  -^~iíf '^^""iir^-  -^-jir^  '»"iir^  "^"^ir^  '»"^ir»^  «í 


DÉCADA  (QUARTA. 
LIVRO    V. 

Da  Hiftoria  da  índia. 

CAPITULO      I. 

De  como  ElRey  D,  João  mandou  por  Qo' 
.  vernador  da  Índia  Nuno  da  Cunha : 
e  do  que  aconteceo  na  jornada. 

Elas  náos  do  nnno  de  vinte  e  feís  ^ 
que  chegaram  da  índia  em  Agoílo  de 
vinte  e  kl^  ,  de  que  eram  Capitães 
T-riflao  Vaz  da  Veiga  ,  Francifco  de  Anhaya  , 
e  outros  ,  teve  ElRey  D.  João  novas  das  dif- 
ferenças  dantre  Pêro  Mafcarenhas  ,  e  Lopo 
Vaz  de  Sampaio  j  e  aííi  meímo  por  via  de 
Veneza  as  teve  da  Armada  que  o  Turco 
fazia ,  e  mandava  ordenar  pêra  paíTar  a  ín- 
dia. E  fendo-lhe  neceíTario  acudir  áquellas 
coufas  com  huma  groíía  Armada  ,  elegeo 
pêra  Governador  da  índia  Nuno  da  Cunha 
íeu  Veador  da  Fazenda  ,  pefíba  de  muita 
confiança  ,  e  em  quem  concorriam  as  par- 
tes ,   que  o  cargo  requeria ,   ordenando-lhe 

011- 


326  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

onze  náos  ,  e  quaíi ,  ou  mui  perto  de  qua- 
tro mil  liomens.  Correo  Jogo  a  fama  ,  e 
por  íer  Armada  contra  Turcos  ,  acudiram 
muitos  Fidalgos  ,  e  Cavalleiros  á  Corte  a 
fe  oíFerecerem  a  ElRey  ,  delpachandc-os , 
e  fazendo-lhes  mercês  a  todos  :  mandando 
dar  tanta  preíTa  á  Armada  ,  que  quando  foi 
em  Março  ,  eílava  toda  poíla  em  Belém  , 
onde  ElRey  foi  eílar  alguns  dias  pêra  def- 
pacliar  muitas  coufas.  Aili  deo  a  Nuno  da 
Cunha  grandes  regimentos  ,  cujos  princi- 
paes  pontos  eram  ,  que  logo  fizeíTc  hum.a 
fortaleza  na  Ilha  de  Dio  pêra  fegurança  da 
índia  5  pêra  os  Turcos  nao  virem  alli  ter 
receptáculo  ,  porque  dariam  grande  opprcf- 
são  ao  Eílado.  E  que  aíIi  melino  fizeíTe  ou- 
tra no  Reyno  do  Çamorim  ,  na  parte  que 
lhe  melhor  pareceíTe  ,  pêra  ter  enfreado 
aquelleRey,  e  pêra  credito  do  Eílado,  em 
lugar  da  outra  que  D.  Henrique  largou  em 
Calecut  ;  e  que  lhe  manda íTe  prezo  Lopo 
Vaz  de  Sampaio,  c  lhe  fizeíTe  inventario  de 
fua  fazenda  ,  que  foíTe  em  mãos  de  peíToas 
abonadas.  Que  fe  os  Turcos  paíTaífem  á  ín- 
dia 5  ajuntaíTe  todo  o  poder ,  e  fe  puzeíTe 
na  barra  de  Goa  ao  mar  ,  até  faber  aonde 
hiam  demandar ,  e  que  depois  de  faber  on- 
de os  tinha  feguros  ,  folTe  pelejar  com  el- 
les  ;  e  outros  da  fazenda  ,  e  juftiça  ,  que  não 
«ao  da  noíTa  hiíloria.  Embarcados  todos ,  e 

a  Ar- 


Década  I\^  Liv.  V.  Cap.  L  327 

a  Armada  preíles  pêra  dar  á  véla  ,  faltou- 
Ihes  o  tempo  ,  por  onde  nao  pode  fahir 
pêra  fora  ienlo  aos  dezoito  de  Abril  defte 
anno  de  vinte  e  oito  ,  em  que  Nuno  da 
Cunha  fe  fez  á  véla  com  onze  náos  ,  de 
que  eram  Capitães ;  elle ,  que  hia  embarca- 
do na  náo  Roía  ;  Simão  da  Cunha  Copei- 
ro mor  d^ElRej  em  Santa  Maria  do  Caf- 
tello;  e  Pêro  Vaz  da  Cunha  Eílribeiro  mor 
d'ElRey  irmãos  do  Governador  na  nàc  San- 
ta Catharina.  D.  Fernando  de  Lima  em 
Santa  Maria  do  Eipinhciro  ;  Francifco  de 
Mendoça  em  Santa  Maria  de  Monferrate ; 
António  de  Saldanha  em  Santa  Maria  da 
Ajuda  ;  Garcia  de  Sá  na  náo  Vitoria  ,  e 
hia  provido  da  capitania  de  Malaca  ;  e  Dom 
Francifco  Deça  ,  João  de  Freitas  ,  Bernar- 
dim da  Silveira  ,  AfFonfo  Vaz  Zambujo. 
Neílas  náos  mandou  ElRey  duzentos  mil 
.cruzados  em  Portuguezes ,  e  outras  moedas 
pêra  as  neceííidades  da  índia ,  e  pêra  a  car- 
ga ,  que  hiam  repartidos  por  todas  as  náos. 
Seguindo  fua  derrota  ,  indo  todas  em  con- 
ferva  na  volta  das  Canárias  ,  a  náo  de  Si- 
mão da  Cunha  ,  que  hia  por  poppa  da  de 
João  de  Freitas,  por  fe  nao  querer  defviar 
o  feu  Piloto  (que  nifto  são  todos  mui  tei- 
mofos  )  lhe  deo  duas  pancadas  tamanhas , 
que  logo  a  abrio  em  dous  pedaços  ,  e  por 
ievarem  o  efquife  em  Uma   fe  lanjou  com 

mui- 


328  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

muita  preíTa  ao  mar ,  onde  fe  merteo  João 
de  Freitas  com  alguns  que  puderam  ,  lobre 
o  que  houve  muiias  cutiladas,  e  mortes,  e 
lè  foram  pêra  a  náo  de  Simão  da  Cunha , 
que  logo  amainou  fentindo  bem  aquelle  def- 
aílre  ,  e  mandou  lançar  o  batei  fora  pcra 
recolher  a  gente  ,  que  andava  já  a  nado 
onde  pereceram  muitos  :  entre  eíles  foi  hum 
hom.cm  caílido  ,  que  iia  náo  hia  com  fua 
mulher  ,  e  três  filhas  moças,  que  vendo  a 
náo  aberta  ,  abraçando-fe  todos  íinco ,  com 
hum  pranto  piedofiílimo  ,  e  gritos  que  pe- 
netravam os  ares  ,  aíli  liados  todos  íe  fo- 
ram com  a  náo  ao  fundo  j  expecT:aculo , 
que  fez  arrebentar  a  todos  em  lagrimas , 
com  ter  cada  hum  bem  que  chorar  fua  def- 
aventura.  Succedeo  ifto  ás  dez  horas  do 
dia  5  e  foi  tao  fupito  ,  que  as  outras  náos 
que  hiam  á  viíia  náo  fouberam  de  coufa  al- 
guma fenáo  quando  viram  fubmergir-fe  a 
náo  debaixo  do  mar ,  e  acudindo  todos  com 
eíquifes  fora  falváram  ainda  muitos  ,  e  af- 
fogáram-fe  cento  e  íincoenta  peflbas.  Nuno 
da  Cunha  fentio  em  eílremo  efte  roim  fuc^ 
ceíTo  ,  e  feg;iindo  fua  viagem  foram  todas 
as  náos  (tirando  a  de  Bernardim  da  Sil- 
veira que  fe  apartou)  tomar  a  Ilha  de  Sant^ 
lago  ,  onde  fizeram,  aguada  ,  e  fe  prove- 
ram de  mantimentos  em  duas  caravelas  que 
hiam   carregadas   delles  pêra  iflb.    Dalli  as 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  I.  329 

defpcdio  Nuno  da  Cunha  com  cartas  pcra 
ElRey,  cm  que  dava  conta  do  fucceíTo  da 
viagem  até  li.  E  tomando  fua  derrota  de- 
ram na  coíla  de  Guiné  ,  onde  acharam  granr 
dcs  calmarias  :  e  por  a  náo  de  António  de 
Saldanha  ir  muito  zorreira  ,  c  andar  íao 
pouco  5  que  toda  a  viagem  foi  Nuno  da 
Cunha  fem  velas  de  gávea  por  efperar  por 
elle  ,  lhe  requereram  os  Pilotos  que  a  dei- 
xaiTem  ,  porque  melhor  era  perder  huma 
náo  viagem  ,  que  todas.  Nuno  da  Cunha 
mandou  diílo  recado  a  António  de  Salda- 
nha 5  e  que  trabaihaíTe  por  arrumar  a  náo , 
c  compaiíar-fe  ,  porque  lhe  era  neceííario 
adiantar-fe  por  nao  perder  viagem.  Antó- 
nio de  Saldanha  lhe  mandou  dizer  ,  que  íe 
foíTe  muito  embora  ,  que  eile  trabalharia 
tudo  o  que  pudeíTe  por  ver  íe  havia  remé- 
dio no  andar  da  náo.  Com  iílo  deo  Nuno 
da  Cunha  com  as  outras  náos  os  traquetes  , 
e  em  pouco  tempo  defapparecêram.  Antó- 
nio de  Saldanha  ficou  triíle ,  e  todos  os  da 
náo  por  fe  verem  alli  ficar  [ós,  Hia  com 
elle  embarcado  o  pai  de  Fernão  Lopes  de 
Caftanheda  ,  que  ElRey  mandava  á  índia 
pêra  efcrever  os  feitos  daquellas  partes  ,  por- 
-que  foi  Rey  que  fe  nao  contentou  de  pa^ 
gar  a  feus  VaíTallos  os  muitos  ferviços  que 
nellas  lhe  fizeram  ,  com  outras  muitas  hon- 
ras ,   e  mercês ,   mas  ainda  com  lhes  crder 

nar. 


330  ÁSIA  DE  DíOGo  de  Couto 

nar,  que  viveíiem  perpetuamente  por  fair.a 
na  cfcritura.  Eíle  homem  andou  na  índia 
cjuaíi  dez  annos ,  correndo  a  mòr  parte  del- 
ia 5  até  chegar  a  Maluco  ,  efcrevendo  as 
coufas  daquelle  tempo  mui  diligentemente , 
que  recopilou  em  dez  livros  ,  acabando  o 
ieu  decimo  com  o  Governador  D.  João  de 
Caftro.  Eík  volume  nos  diíTeram  algumas 
pelToas  dignas  de  fé  que  ElRey  D.  João 
mandara  recolher  a  requerimeiíto  de  alguns 
Fidalgos ,  que  fe  acharam  naquelle  raro ,  e 
elpantoío  cerco  ,  porque  fallava  nelle  ver- 
dades. A  eilcs ,  c  a  outros  rifcos  íc  põem  os 
■efcritores  ,  que  as  efcrevem  em  quanto  vi- 
vem os  homens  de  quem  o  fazem  ;  c  por 
iíTo  com  menos  receio  efcrevemos  as  cou- 
fas paliadas  (  coqio  ElRey  nos  mandou ) 
<^ue  as  prefcntcs ,  que  também  temos  efcri- 
tas  5  e  aíli  em  humas ,  como  em  outras  ,  nem 
por  refpeitos  ,  nem  por  temor  deixaremos  de 
as  fallar  :  e  poílo  que  também  em  algum 
tempo  fe  mande  recolher  algum  volume 
dos  iioiTos ,  outro  virá  em  que  fe  ellas  ma- 
nifeílem.  E  tornando  a  António  de  Salda- 
nha ,  os  OíTiciaes  da  fua  nao  andaram  ven- 
do donde  naícia  o  defeito  delia ,  mudando 
humas  vezes  a  carga  á  proa ,  outras  á  pop- 
pa ,  andando  com  os  maílos  ,  ora  a  ré ,  ora 
avante  ,  e  tantas  coufas  deílas  fizeram  até 
lhe  acertarem  o  compalTo  ^   e   começou  "% 

náo 


J 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  I.  331 

]ido  a  andar  dalli  por  diante  muito  diífercn- 
tciTicnte  j  c  ícguindo  lua  derrota  ,  encontrou 
com  a  náo  de  D.  Franciíco  Deça  ,  que  íe 
feílejáram  bem  ,  acompanhando-íe  Icmpre 
até  irem  na  volta  do  Cabo  de  Boa  Elperan- 
ca  ,  onde  encontraram  as  náos  de  Nuno  da 
Cunha  ,  de  Fero  Vaz  da  Cunha  ,  de  Dom 
Fernando  de  Lima  ,  e  a  de  Aífonío  Vaz 
Zambujo  ,  porque  todas  as  mais  eram  eí- 
palhadas  ,  indo  cada  liuma  ícguindo  fui 
derrota  ,  que  Jogo  contaremos.  Nuno  da 
Cunha  ,  tanto  que  conheceo  as  náos  ,  foi  o 
feu  alvoroço  mui  grande,  e chegados  á  fal- 
ia fouberam  o  que  lhes  tinha  acontecido, 
e  aíTi  todos  juntos  foram  demandar  o  Ca- 
bo. No  roíio  delle  ,  a  íeis  de  Julho  ,  lhes 
deo  tamanho  temporal  ,  que  nao  podendo 
fofrVer  o  pairo  por  ferem  os  mares  mui 
groíTos  ,  e  cruzados ,  foram  arribando  em 
poppa  com  pequenos  bolfos  de  véla  ,  falvo 
António  de  Saldanha ,  que  por  ter  náo  no- 
va 5  pode  foífrer  o  trabalho  ;  dos  mais  foi 
cada  lium  correndo  por  onde  melhor  pode. 
Ao  outro  dia  acahnou  o  vento  ,  e  Nuno 
da  Cunha  ,  e  D.  Fernando  de  Lima  vindo 
á  falia  fobre  o  que  fariam  ,  aíTentáram  que 
foíTem  por  fora  da  Ilha  de  S.  Lourenço , 
porque  era  já  tão  tarde  que  por  dentro  nao 
podiam  paliar  á  índia.  E  feguindo  leu  ca- 
minho ,  eílando  já   do  Cabo  pêra  dentro, 

fo- 


33^  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

foram  governando  a  Lefnordeíle  ,  pêra  fe 
deitarem  por  fora  da  liha  ,  onde  os  deixa- 
remos por  continuarmos  com  as  outras  náos. 
D,  Francifco  Deça  ,  Francifco  de  Mendo- 
ça  ,  AfFonío  Vaz  Zambujo  ,  depois  de  paíTa- 
da  a  tormenta  dobraram  o  Cabo  ,  e  toma- 
ram o  caminho  por  dentro  ,  e  foram  de- 
mandar Moçambique  ,  por  irem  faltos  de 
agua  5  e  mantimentos ;  e  chegando  áquclJe 
porto  ao  entrar  da  barra  ,  a  náo  de  AiTonr- 
ío  Vaz  Zambujo  deo  na  Ilha  de  S.  Jorge , 
onde  ficou  pêra  fempre ,  falvando-fe  toda  a 
gente  ,  e  por  fer  tarde  licáram  ai  li  inver^ 
nando.  Bernardim  da  Silveira,  que  ao  fahir 
do  Reyno  fe  apartou  logo  ,  foi  feguindo 
fua  derrota  ,  paliando  alguns  temporaes , 
que  lhe  deram  muito  trabalho ,  e  depois  da 
dobrar  o  Cabo  de  Boa  Efperança,  indo  de- 
mandar Moçambique  ,  foi  o  feu  Piloto  en- 
calhar no  parcel  de  Çofala  ,  onde  fe  per^ 
deo  ,  aíFogando-fe  rnuita  parte  da  gente ,  e 
a  outra .  mais  ,  que  fe  falvou  em  terra  y  foi 
niorta  pelos  Cafres ,  o  que  depois  fe  foube 
por  alguns  da  terra. 


CA- 


Década  IV.  Liv.  V.        533 

C  A  P  I  T  U  LO     II. 

Do  que  fuccedeo  as  mais  nãos  da  companhia 

do  Governador  Nuno  da  Cunha  :  e  de  como 

e  lie  fe  per  de  o  na  Ilha  de  S.  Lourenço  :  e 

do  que  acontece  o  agente  da  companhia 

de  Manoel  de  Lacerda. 

A  temos  dado  relação  do  fucceíTo  de  íln* 
CO  náos  ,  agora  continuaremos  com  as 
mais  ;  c  como  efta  viagem  foi  deíaílrada , 
e  teve  vários  fucceííos  ,  hc  neceffario  que 
relatemos  todos :  e  aíli  o  faremos  agora  do 
que  aconteceo  á  náo  de  Garcia  de  Sá .  e  á 
de  António  de  Saldanha  ,  que  de  toda  eíla 
Armada  ellas  fós  paíTáram  á  índia.  A  náo 
de  Garcia  de  Sá ,  depois  que  fez  fua  agua- 
da na  Ilha  de  Sant-Iago  ,  logo  fe  apartou 
da  con  ferva  ,  e  foi  fe  guindo  fua  derrota , 
achando  no  rofto  do  Cabo  o  mefmo  tem- 
po que  as  outras  ,  com  que  eíleve  de  todo 
perdida.  Paífado  o  Cabo  foi  tomando  o  ca- 
minho por  fora  padecendo  muitas  fóm.es , 
fedes  ,  e  infortúnios  ,  de  que  lhe  morreo 
muita  gente  ,  e  chegou  a  eftado ,  que  nao 
havia  na  náo  mais  de  huma  pipa  de  agua, 
mas  foi  em  paragem  que  ao  outro  dia  hou- 
ve viíla  da  cofta  do  Malavar,  como  adian- 
te diremos.  António  de  Saldanha  depois  de 
paíTada  a  tormenta  ,  que  elie   efperou  ao 

pai' 


334  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

pairo  ,  foi  feu  caminho  até  dobrar  o  Ca- 
bo ,  achando  muitos  temporaes ,  e  contraf- 
tes ,  que  lhe  deram  bem  de  trabalho.  E  paP- 
fando  á  viíla  da  Ilha  de  S.  Louienço  na 
paragem  do  rio  de  Sant-Iago ,  onde  eilava 
a  gente  das  náos  de  Manoel  de  Lacerda , 
e  de  Aleixo  de  Abreu  ,  que  fe  alli  perde- 
ram o  anno  paliado  ,  como  diiTem>os ,  onde 
Todos  tinham  padecido  graviílimas  fómes , 
e  trabalhos  ,  eíperando  que  Deos  os  foc- 
correlle  com  alguma  náo  que  por  aquella 
paragem  paíTaíle  ,  pêra  lhe  fazerem  linal , 
encommendando-fe  ao  meímo  Deos  em  feus 
corações  ,  pedindo-lhe  os  tiraíTe  daquella 
terra  :  e  como  fuás  efperanças  eftavam  em 
clle  trazer  por  alli  alguma  náo  ,  não  tira- 
vam os  olhos  do  mar ,  onde  de  continuo  os 
cftendiam  por  verem  fe  viam  velas ,  e  acer- 
tando de  verem  eíla  de  António  de  Salda- 
nha ,  em  todos  fez  grande  alvoroço,  pare- 
cendo-lhes  que  já  eftavam  remidos.  E  por- 
que hia  anoitecendo  fizeram  grandes  fogos 
em  cruzes ,  pêra  por  elles  moftrarcm  aos  da 
Tiáo ,  que  eííava  alli  gente  perdida  ,  que  fo- 
ram logo  viíios  de  todos  ,  e  bem  entende- 
ram que  eram  Portuguezes  os  que  lhe  fa- 
liam aquelle  final  ,  e  tomando  os  traque- 
tcs  ,  puzeram-fe  de  noite  a  trinca.  Como 
amanheceo  foram  na  volta  da  terra  a  que 
não  oufáram  de  chegar  por  não  fer  fabida, 
' -.  cf- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  IL  335- 

efpcrando  que  da  terra  lhes  vicíTe  algum 
em  alguma  aímadia  com  recado  do  que 
era  :  e  aíli  aíthílando-fe  de  noite  da  rena, 
e  tornando  a  ella  de  dia ,  andaram  alli  oi- 
to ,  fem  íe  determinarem  a  mandar  o  efqui- 
fe  a  faber  daquella  gente  ,  e  no  cabo  dos 
oito  dias  dando-lhes  hum  tempo  rijo  deiap-» 
pareceram.  Os  da  terra  ficaram  defconfola- 
diífimos  tanto  que  deixaram  de  ver  a  náo  , 
e  tomando  coníelho  íobre  o  que  fariam  , 
aíTentaram  que  fe  paflaílem  á  outra  banda, 
aíli  porque  lá  teriam  mais  mantimentos  ,  co- 
mo por  ferem  por  lá  as  náos  mais  conti- 
nuas ,  e  poderiam  fer  viftos  de  algumas  que 
fe  dilpuzeííem  a  tomailos ,  ou  pela  ventura 
achariam  alguma  embarcação  da  terra ,  em 
que  fe  pudeílem  paíTar  a  Cofala  ,  ou  a  Mo- 
çambique :  fazendo  dous  eiquadroes  em  que 
haveria  trezentas  peiToas ,  tomaram  o  cami- 
nho do  fertão  ,  ficando  alli  hum  manceba 
doente  por  náo  poder  feguillos.  Eíles  ho- 
mens rodos  defapparecêram  neíle  caminho , 
e  até  hoje  fe  não  foubc  delles  coufa  algu- 
ma ,  por  onde  parece  que  foram  mortos  pe- 
los da  terra ;  porque  aquelles  do  fertáo  sao 
barbariílimos  ,  fendo  o  remate  de  todos  feus 
trabalhos  outros  tanto  maiores  como  fo- 
ram os  que  lhes  cuíláram  as  vidas.  Vejam 
agora  os  Reys  fe  ha  na  vida  couía  com 
que  fe  fatisfaçam  tamanhos  trabalhos ,  como 

feus 


336  ÁSIA  t)E  Diogo  de  Couto 

fcus  vairallos  paíTam  neíla  Conquifta  da  In-* 
dia  :  e  que  preço  ha  com  que  fe  pague 
Iium  fó  rilco  da  inorte  ,  quanto  mais  tan- 
tos ,  quantos  sao  os  em  que  cada  dia  íe 
vem  ,  no  mar  tanta  tormenta  ,  e  perigos , 
nâ  terra  tanto  rilco  entre  pelouros  ,  e  fo- 
go :  comendo  mal  ,  dormindo  peior :  pe- 
lejando todas  as  horas  por  honra  de  leu 
Dcos ,  e  de  feu  Rcy.  Por  onde  haviam  de 
trabalhar  ,  que  os  homens  que  foliem  re- 
partidores dos  gahirdoes  ,  foíTem  aquelles 
que  tem  viílo ,  e  experimentado  os  mehnos 
rifcos ,  e  trabalhos ,  porque  dem  com  com-^ 
paixão  5  e  não  taxem  com  efcaceza  ,  tendo 
mais  refpeito  aos  merecimentos  dos  ho- 
mens, que  á  pretenção  que  muitos  tem  de 
quererem  valer  com  os  Reys  por  hum  mui- 
to mal  entendido  xmeio ,  como  o  de  quere- 
rem accreícentar  em  fua  fazenda  ,  porque 
r;unca  ella  creíce  mais  ,  que  quando  jufta- 
mcnte  fe  pagam  merecimentos.  António  de 
Saldanha  foi  feguindo  lua  derrota  com  tan- 
tos trabalhos  ,  fomes  ,  e  fedes  ,  que  lhe  mor- 
reram leííenta  homens  ,  e  lhe  adoeceram 
quafi  todos  ,  indo  mais  de  hum  mez  a 
quartilho  de  agua  por  dia  a  cada  pelToa.  E 
em  fim  de  todos  eíles  trabalhos  ,  havendo- 
fe  cada  dia  por  perdidos,  foram  a  ferrar  a 
coíla  da  índia  ,  com.o  adiante  diremos.  E 
tornando   a  Nuno  da  Cunha  ,  c  Fero  Va:5 

da 


Década  IV.  Lív.  V.  Cap.  IÍ.  337 

da  Cunha  ,  e  D.  Fernando  de  Lima  ,  de- 
pois de  paliada  a  tormenta  ,  foram  fempre 
cm  companhia  com  roins  tempos  ,  e  com 
calmarias  que  lhe  deram,  e  com  muito  tra- 
balho foram  ferrar  terra  na  Ilha  de  S.  Lou- 
renço ,  na  paragem  do  rio  de  Sant-Iago ,  já 
no  lim  de  Outubro ,  onde  lhes  foi  forcado 
furgirem  pêra  fazerem  aguada  ,  de  que  hiam 
muito  faltos.  O  Governador  Nuno  da  Cu-^ 
nha  mandou  o  efquife  a  terra  pêra  verem 
aonde  havia  agua  ,  e  fendo  na  praia  ,  acu- 
dio  a  qWq  aquelle  mancebo  que  atrás  dilTe- 
iríos  ficara  da  companhia  de  Manoel  de  La- 
cerda por  doente ,  (que  parece  que  ordenou 
Deos  ficar  ai  li  pêra  fe  faivar.)  Eíle  tanto 
que  vio  o  batel  em  terra ,  remetteo  aos  que 
hiam  nelle  como  doudo  abracando-fc  cora 
todos  5  chorando  com  prazer  de  os  ver ;  e 
elles  de  dó  de  o  verem  daquella  maneira 
•arrebentaram  todos  em  lagrimas  ,  e  folu- 
ços  ,  e  tomando-o  no  batel  o  levaram  a 
Nuno  da  Cunha  ,  a  cujos  pés  fe  lançou  , 
contando- lhe  fua  defa ventura  .  e  a  perdição 
daquellas  duas  náos  ;  e  como  havia  n\tz  j, 
e  meio  que  Manoel  de  Lacerda  ,  e  Aleixos 
de  Abreu  com  todos  os  da  fua  companhia 
iè  partiram  dalli  defefperados  de  poderem 
alli  vir  náos  táo  cedo.  Nuno  da  Cunha  fen- 
tio  muito  a  defa  ventura  daquella  gente  ,  e 
houve-fe  pormotino  em  não  chegar  a  tem- 
Couto,  Tom,  L  P.  L  Y  po 


33^  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

po  que  os  pudera  falvar  a  todos ,  mandan- 
do a  feus  criados  que  agazalhaííem  bem 
íiquelle  moço  ,  e  o  curaflem  ,  que  depois 
Viveo  muitos  annos  ca  fado  em  Goa  ,  e  foi 
Meirinho.  Nuno  da  Cunha  ,  e  os  mais  Ca- 
pitães mandaram  fazer  aguada  em  abaílan- 
ça.  E  havendo  quatro  dias  que  alii  efta- 
vam  5  deo-lhes  hum  temporal  travefsao  tão 
rijo  5  que  a  náo  de  Nuno  da  Cunha ,  que 
eftava  fobre  huma  fó  ancora  ,  começou  a 
eaíTar  pêra  a  terra  ,  e  hirgando  outra  que 
deo  fobre  pedra  ,  foi  logo  cortada  ,  e  o 
mefmo  fizeram  outras  até  féis  ,  que  todas 
foram  trincadas  do  rato  ,  (fallando  ao  mo- 
do marinheiro  , )  de  maneira  ,  que  foi  a  náo 
encalhar  em  terra  fobre  hum  areal  ,  aonde 
fe  encheo  de  agua  até  a  cuberta  debaixo 
da  ponte.  As  outras  duas  náos  quiz  Deos 
que  tiveram  amarras  de  cairo  ,  que  fe  nao 
cortaram  ,  e  puderam  ter ,  e  foífrer  o  tem- 
po ,  eílando  porém  muito  arrifcadas.  Eíla- 
vam  a  efte  tempo  os  batéis  em  terra  fazen- 
do aguada,  e  querendo  acudir  á  náo,  não 
puderam  fahir  pêra  fora  ,  porque  o  vento 
fazia  na  boca  do  rio  mui  grandes  efcarceos. 
A  gente  da  náo  ficou  toda  fobre  os  caftel- 
los ,  e  na  ponte ,  onde  eíliveram  até  o  ou-s 
tro  dia  ,  andando  Nuno  da  Cunha  toda  a 
noite  vigiando ,  e  mandando  tirar  aífima  o 
cofre   do  cabedal  ,  e  algumas  coufas ,  que 

mais 


Dec.  IV.  Liv.  V.  Cap.  II.  e  IIL  339 

mais  puderam  ,  porque  fc  não  perdeíTe  tu- 
do. Ao  outro  dia  acalmou  o  vento ,  e  vie- 
ram os  batéis ,  em  que  o  Governador  man- 
dou embarcar  o  cofre  ,  e  a  mais  fazenda 
que  pode ,  e  a  artilhcria  que  hia  por  fmia  : 
c  depois  de  ter  recolhido  o  que  havia ,  el- 
le  fe  pafibu  com  parte  da  gente  pêra  a  náo 
de  feu  irmão  Pêro  Vaz  da  Cunha  ,  e  a  ou- 
tra mandou  pêra  a  de  D.  Fernando  de  Li- 
ma. Dalli  fe  fizeram  á  vela  ,  com  tenção  de 
íe  irem  pôr  dentro  de  Moçambique  ,  to- 
mando aquella  derrota  ,  em  que  os  deixa- 
remos por  continuarmos  com  as  coufas  , 
que  nefte  tempo  fuccedêram  na  índia ,  por 
guardarmos  a  ordem  dos  tempos. 

CAPITULO     IIL 

De  huma  Armada  noffa ,  que  partio  de  Co^ 
chim  y  e  fe  per  de  o  no  rio  de  Chatuá :  e 
de  como  o  Govertuidor  Lopo  Vaz  de  Sam- 
paio partio  pêra  Cochim  ,  e  desbaratou 
huma  grande  Armada  do  Camorim, 

AFfonfo  Mexia  Veador  da  Fazenda , 
que  eílava  em  Cochim  ,  foi  avifado  • 
que  o  Camorim  fazia  algumas  nãos  preíles 
pêra  mandar  a  Aléca  carregadas  de  pimen- 
ta ,  que  tinha  a  carga  em  differentes  rios , 
e  querendo  impedir  que  não  fahiííem  pêra 
fdra  5   armou  com  multai  preíTa  treze  navios- 

Y  i.i  da 


340  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

de  remo ,  a  cujos  Capitães  não  achámos  es 
nomes ,  e  a  oito  de  Setembro  fe  fizeram  á 
vela  ,  e  indo  pcra  a  coíla  de  Calecut ,  dco- 
Ihes  huma  tormenta  ,  a  que  chamam  a  Va- 
ra de  Chorom.andel ,  tão  groiTa  ,  e  grande , 
que  deo  com  todos  os  navios  á  cofta  no 
rio  de  Chatua  ,  Tem  eícapar  hum  fó  j  afFo- 
gando-fe  a  mor  parte  dos  noíTos  ,  e  os  que 
le  fal varam  em  terra ,  delles  foram  mortos 
pela  gente  delia  ,  e  delles  cativos.  Camo- 
rim  ficou  foberbií]]mo  com  cíle  íiicccíTo ,  e 
mandou  com  muita  preífa  preparar  huma 
groíTa  Armada  ,  ajuntando  todos  os  fcus  na- 
vios de  feus  portos  ,  pcra  fahirem  a  dar 
guarda  ás  náos  que  havia  de  lançar  fora  em 
fim  de  Setembro.  Os  Mouros  de  Cananor 
que  eftavam  de  pazes  ,  com  efta  defaventu- 
ra  com.eçáram-fe  a  alterar.  De  tudo  foi  lo- 
go o  Governador  Lopo  Vaz  avifado  ,  e 
com  muita  prefteza  dcfpedio  Simão  de 
Mello  em  hum  galeão  ,  e  íeis  fuftas  pêra 
guarda  daquella  coíla  ,  c  elle  fe  ficou  pre- 
parando pêra  acudir  a  elía  em  peiToa ,  pri- 
ineiro  que  os  movimentos  dos  Mouros  de 
Cananor  foíTem  por  diante  ,  efperando  por 
António  de  Miranda ,  que  fabia  que  eftava 
em  Chaul  5  que  não  tardou  muito.  O  Go- 
vernador o  reccbeo  muito  bem  ,  pedindo- 
Ihe  fícaíTe  em  Goa  defcancando  dos  traba- 
lhos,  e  elle  fe  fez  á  vela  com  féis  galeões, 

in- 


Década  IV.  Liv.  Y.  Cap.  IIL  341 

indo  ellc  embarcado  em  S.  Diniz  ,  e  dos 
■outros  eram  Capitães  Heitor  da  Silveira , 
Fernão  Rodrigues  Barbas  ,  Lopo  de  Alef- 
xiuiía  ,  Henrique  de  Macedo ,  c  António  de 
Lemos  da  Trofa ,  a  que  deo  o  galeão  Ma- 
gos ,  que  foi  de  António  da  Silva ,  que  as 
^aleotas  de  Dio  mataram.  Levava  o  Go- 
vernador mais  fete  fuílas  ,  de  cujos  Capi- 
tães não  achámos  os  nomes  de  mais  que  de 
D.  Triíláo  de  Noronha.  E  fazendo  fua  jor- 
jiada  tanto  avante  como  monte  Deli,  achou 
Simáo  de  Mello  com  íua  Armada  ,  de  quem 
foube ,  como  D.  João  Deça  Capitão  de  Ca- 
nanor  lhe  mandá-ra  recado ,  que  em  Trema- 
patão  ellava  huma  frota  do  Çamorim  de 
a:ento  e  trinta  velas  ,  ferfeiíta  paraos  bem 
artilhados  ,  e  as  mais  n:-ios  ,  e  pagueis  de 
carga  ,  que  hiam  pêra  Meca  carregadas  de 
íd  rogas  ,  e  que  os  paraos  lhe  hiam  dando 
guarda.  Defta  frota  era  Capitão  lium  Mou- 
ro ,  natural  do  Reyno  de  Tanor,  chamado 
Cotiale  ,  havido  entre  elles  por  homem  fan- 
to  ,  que  aqueile  verão  paliado  tinha  vindo 
de  Meca  de  fe  oíFerecer  á  cafa  do  feu  San-  ■ 
carrão..  Tanto  que  o  Governador  foube  ef- 
ta  nova  ,  havendo  confelho  com  aquelles 
I Capitães  ,  aíTentou-fe  que  fe  lançaíTem  ao 
imar  defronte  de  Cananor,  que  alli  havia  a 
frota  de  ir  dar  com  elles ,  porque  fe  os  to 
Eiaffem  a  terra  haviam  todos  de  fugir  dei- 
la. 


34^  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

la.  O  Governador  mandou  as  fuftas  de  lon- 
go da  coita  vigiar  a  Armada  inimiga  ,  e 
tanto  que  foi  noite  ,  furgio  com  os  galeões  , 
e  mandou  Serqueira  o  Malavar  no  íeu  na- 
vio 5  que  era  muito  ligeiro  ,  efpiar  os  ini- 
migos ,  e  faber  que  derrota  tomavam.  Co- 
tiale  fabendo  que  Simão  de  Mello  eílava  a 
monte  Deli ,  não  tendo  ainda  novas  do  Go- 
vernador 5  determinou  de  ir  pelejar  com  el- 
le  ,  e  tomallo ,  e  voltar  íobre  a  fortaleza  de 
Cananor ,  e  commettella  ,  havendo  que  fe- 
ria facil  levalla  nas  mãos ,  e  vinha  com  to- 
da aquella  frota  ,  que  cubria  o  mar  á  vela. 
O  Serqueira  em  a  vendo  voltou  ao  Gover- 
nador ,  e  lhe  deo  de  noite  a  nova ,  e  logo 
fe  preparou  pêra  pelejar  com  eile  ,  maur- 
dando  recado  aos  galeões  pêra  que  fe  íi- 
;zeirem  preíies.  Cotiale  de  madrugada  houve 
vifta  da  Armada  do  Governador ,  e  cuidan^- 
do  que  era  Simão  de  Mello,  aíli  ã  vela  co- 
mo hia  a  foi  demandar.  Os  noífos  vendo 
tamanha  frota  ficaram  embaraçados  ,  porque 
tudo  o  que  viam  em  tanto  navio  era  mul- 
tidão de  gente  que  os  cubria  ,  muita  ,  e 
groíTa  artilheria,  que  por  fuás  proas  appare- 
cia  ,  c  muitas ,  e  bailas  armas  de  todas  as 
fortes  que  reluziam  ,  muitos  ,  e  miuito  difFe- 
rentes  inftrumentos  de  guerra  que  vinham 
tocando  :  em  fim  tantas  carrancas ,  e  amea- 
gos   de  morte  ^   que  pudera  efpantar  outra 

mui- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  III.  343 

muito  maior  Armada  que  aqiiella.  O  Go- 
vernador chamou  a  íi  os  Capitães  ,  e  lhes 
aiile,  que  ellc  havia  de  pelejar  com  os  ini- 
migos ,  que  fe  fizeííem  prcftes.  Alguns  dos 
Capitães  lhe  diíleram  que  pareceria  temeri- 
dade, que  o  bom  feria  ajuntarem-fe  os  ga- 
leões ,  e  encadearem-fe  ,  e  fazerem-le  fortes 
pêra  fe  defenderem ,  fe  os  inimigos  os  fof- 
Jem  commetter.  Outros  foram  de  parecer 
que  pelejalfem ,  porque  os  navios  inimigos 
eram  raiieiros  ,  e  que  forçado  haviam  de 
receber  muito  damno.  E  baralhando-fe  o 
negocio  em  porfias  ,  chegou  Serqueira  o 
Malavar  ,  e  como  era  muito  esforçado ,  e 
fabia  bem  da  guerra  daquella  cofta  ,  e  co- 
nhecia aquelles  Mouros  ,  diíTe  ao  Governa- 
dor :  ))  Senhor  5  queefperais,  que  vagar  he 
»  eíle  ?  Porque  ]ião  commetteis  aquelles  ini- 
))  migos  que  vem  chegando  ?  Porque  aíli  he 
»  muito  peior  ,  que  como  são  muitos ,  e  fe 
yt  vos  fentirem  ,  receio  hao-vos  de  fazer 
»  damno.  Commettei  os  inimigos ,  que  vem 
))  efpalhados  por  huma  ilharga  daquellas  çom 
))  as  fuílas  y  e  primeiro  que  os  outros  lhe 
))  acudam  ,  os  desbaratareis  ,  e  chegarão  os 
»  galeões  com  a  tormenta  de  fua  artilheria , 
» e  tudo  farão  franco.  »  Ao  Governador 
pareceo-lhe  bem  ,  e  levantando-fe  ,  diíTe  : 
))  Ora  fus  5  hei  de  pelejar  ,  a  elles  com  o 
))  nome  de  Jefus  j   e  quem  quizer  acompa- 

»  nhar 


344  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

^  nhar  o  íeu  Governador ,  e  a  bandeira  de 
-))  íeu  Rey ,  liga-me.  »  E  tomando  hurna  cí- 
-pingarda  ás  coftas  fahou  em  huma  fufia , 
de  que  era  Capitão  João  Fernandes  o  Ta- 
ful  ,  valente  Toldado ,  e  dos  do  Teu  galeão 
ip.Itáram  com  elle  Ruy  Vaz  Pereira  ,  Dom 
Sancho  Manoel  ,  João  Rodrigues  Pereira  , 
Braz  da  Silva  de  Azevedo  ,  Garcia  de  Mel- 
lo,  Oiuirte  Coelho,  Fernão  da  Silva,  Nu- 
no Pereira  ,  André  Cako  de  Évora  ,  Ma- 
noel de  Brito  Cabral  ,  Francifco  de  Bairros 
de  Paiva  ,  e  outros  Fidalgos ,  e  Cavaileiros. 
Embarcado  o  Governador  ,  achou-fe  com 
treze  fuílas  ,  porque  áqueila  hora  VhQ  che^ 
gáram  três  de  Cananor  ,  cheias  de  muita , 
e  boa  gente ,  cujos  Capitães  eram  Francis- 
co Mendes  de  Braga  >  Martim  da  Silva ,  e 
Jorge  Vaz  ,  que  D.  João  Deça  lhe  manda- 
va de  foccorro  ;  porque  tanto  que  teve  vií- 
•ta  da  Armada  do  Governador ,  e  vendo  ar- 
rancar a  do  inimigo  da  terra  ,  defpcdio  os 
navios.  De  todos  fez  o  Governador  duas 
batalhas,  ou  alas,  dando  huma  a  Simão  de 
Mello  ,  a  quem  encommendou  a  dianteira  ,  e 
comclle  Lopo  de  Mcíquita  ,  e  Fernão  Ro- 
drigues Barbas  nos  batéis  de  feus  galeões  , 
e  neíla  ordem  foram  demandar  os  inimi- 
gos ,  que  vinham  efpalhados  ,  e  os  com- 
ntettêram  por  huma  ponta  ,  dando-lhes  a 
primeira  falva  de  bombardadas ,  de  que  def- 

tro- 


I 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  III.  345' 

(rocánim  alguns  ,  e  fem  quererem  inveílix-, 
:ornáram  a  metter  cargas  nos  falcões  ,  c  de- 
ram outra  furriada  ,  com  que  tanibetii  met- 
íêram  alguns  no  fundo.  Sere  navios  noílbs 
inveu/ram  logo  com  outros  tantos  dos  ini- 
migos ;  fendo  os  primeiros  que  ferraram , 
Serqueira  rvlalavar  ,  Francifco  Mendes  de 
i^raga  ,  e  Martim  da  Silva  todos  de  Cana- 
nor.  E  deitando  logo  nos  inimigos  huraa 
fom.ma  de  panellas  de  pólvora ,  os  abrazá- 
ram  de  todo.  O  Governador  com  o  ièu 
terço  chegou  também  dquelía  quadra,  e  deo 
fua  falva,  de  que  desbaratou  muitos  ^  e  fer- 
rou com  outros  com  muito  animo  ,  fendo 
qUq  dos  primeiros  que  os  inveílíram  ,  c  tal 
preííii  lhes  deo  ,  que  rendeo  toda  aquella 
quadra  ,  primeiro  que  Cotiale  lhe  foccor- 
rcíTe.  Os  galeões  hiam  em  meio  da  Arma- 
da ,  ficando-lhe  toda  a  inimiga  defcubcrta  , 
com  que  tiveram  lugar  pêra  jogarem  com 
fua  artilheria  ;  e  como  a  Armada  vinha 
muito  eílendida ,  e  a  noíla  pelejava  em  Im- 
ma  das  quadras ,  empregaram  ieus  tiros  de 
maneira  ,  que  mettêram.  muitas  nãos  no  fun- 
do. Os  noílbs  tinham  já  axorados  mais  de 
vmte  navios  ;  e  vendo  os  mais  tamanho 
damno  ,  começáram-fe  a  defmandar ,  e  re- 
colher pêra  a  terra.  Andava  já  neíte  temipo 
o  mar  coalhado  de  corpos  mortos  ,  e  os 
galeões  já.  baralhados  com  as  iiáos  inimi- 
gas. 


346  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

«ras.    Durou  ifto  até   o  meio  dia  que   a  vi- 
ração  começou  a  ventar  ,   com  que  os  ini- 
migos deram   á  véla  ,    e   íe  foram  fugindo 
pêra    a  terra.    O  Governador   os  não    quiz 
leguir  j    porque  eflava  com  alguns  feridos , 
e  todos  caníiidos ,  e  contentou-fe  com  a  vi- 
toria que  lhe  Deos  tinha  dado  ,  que  era  ta- 
manha ,    que  ficáram  dos  navios  dos  inimi- 
gos 5  antre  mettidos  no  fundo ,  e  tomados , 
trinta   e  linco  ,   e  foram  tomadas  fincocnta 
peílas   de  artilheria  ;    e  Mouros  antre  cati- 
vos ,    e  mortos   foram  dous  mil  ,    fcm   da 
noíTa  parte  haver  mais  que  alguns  feridos : 
o  que   pareceo   milagre   pela  muhidao    das 
frechas ,   e  pelouros  groíFos  ,  e  miúdos  ,  de 
que   os  navios    todos   eftavam    encravados , 
e   o  mar  parecia  de  cor  de  langue.    A  Ar- 
mada   inimiga   que  hia  fugindo    hia  tal,   e 
com  tam.anho  medo ,  que  alguns  navios  va- 
raram na  primeira  terra  que  adiaram  ,    fem 
irem  bufcar  rios ,  ou  barras.  Foi  eíla  gran- 
de vitoria  defronte  de  Cananor ,   cuja  praia 
ellava  cuberta  de  Mouros ,  efperando  ver  o 
desbarato   dos   noíTos  j   e  vendo   a  prcfteza 
com  que  os  feus  com  tamanha  Armada  fo- 
ram desbaratados  ,  ficaram  pafmados ,  e  em 
todo    o  Malavar  fe  fez  hum  geral  pranto, 
porque  poucas  cafas  houve  em  que  não  fal- 
taííe  marido  ,  filho  ,  ou  irir.ao.  IÍÍo'quebran- 
tou  tanto  a  iodos  ,  e  atemorizou  o  Çamo- 

rim 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  III.  347 

rim  de  feição,  que  receando  queElRey  de 
Cochim  ,  com  o  favor  do  Gov  ernador  Lo- 
po Vaz  lhe  tonialTc  Cranganor,  defpedio 
com  muita  preíTa  o  Principc  herdeiro  pêra 
ir  íl^gurar  aquella  fortaleza.  O  Governador 
pareccndo-Iiie  que  Cotiale  fc  quizcílc  def- 
affrontar  ,  e  que  ajuntafle  pêra  iíTo  mais 
^Armada ,  como  cftava  com  a  mão  Jevc  da 
vitoria  ,  deixou-fe  eílar  dous  dias  efperando 
por  elle ,  e  vendo  que  não  vinha ,  determi- 
nou de  ir  por  todos  os  rios  em  que  os  feus 
navios  haviam  de  eítar  recolhidos,  pêra  os 
acabar  de  abrazar  ,  e  aíTolar  ,  mandando 
diante  Simão  de  Mello ,  que  levou  comíigo 
o  Serqueira  por  efpia  ,  porque  íiibia  todos 
aquelles  rios  ;  e  achando  em  hum  delles 
doze  paraos  varados  ,  entraram  de  m^adru- 
gada  de  fupito  ,  e  puzeram-lhe  fogo,  em 
que  todos  arderam.  E  defembarcando  Si- 
mão de  Alello  em  terra  ,  cortaram  todos  os 
pahnares  que  havia  ao  derredor  da  povoa- 
ção ,  a  que  também  fe  deo  fogo.  Dalli  fe 
paíTou  ao  rio  de  Chatua ,  onde  a  noíTa  Ar- 
mada fe  perdeo  ,  pêra  dar  hum  caíligo  a 
feus  moradores  peia  morte  que  deram  aos 
noíTos  ,  e  entrando  nelle  de  madrugada 
queimaram  quatorze  paraos  ,  que  eílavam 
varados  ,  e  a  povoação  ,  com  morte  de 
m.uitos  Mouros  :  e  aíii  foram  deítruindo 
outros  lugares  até  cJiegarem  a  Cranganor, 

cn- 


34^  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

onde  acJiáram  huns  navios  noíTos  em  guar- 
da daqueile  rio  ,  que  AíFonlb  Mexia  tinha 
mandado  ,  depois  que  foube  que  o  Princi- 
pe  de  Calecut  era  chegado  ,  pêra  defende- 
rem a  pagaílein  daqueile  rio  aos  íeus. 

CAPITULO     IV. 

De  CQino  o  Governador  l.opo  Vaz  de  Sarn* 

paio   dcfiruio  o  Arei  de  Porca  :    e  da 

Armada  que  do  Reyno  partio :   e  do 

que  lhes  aconteceo  f2a  jornada 

até  chegar  a  Cochira, 

CHegando  o  Governador  a  Cranganor, 
lembrou-lhe  que  tinha  adiante  o  Arei 
de  Porca  ,  que  havia  vinte  annos  vivia  a 
defpcico  do  Eílado  ,  recolhendo  muitos  la- 
droes ,  e  lançando  outros  de  íeus  portos , 
X}ue  faziam  muita  guerra  aos  Portuguezes  , 
€.  lhe  linha  dado  muitos  trabalhos  ,  ícm 
Governador  algum  o  poder  caftigar ,  tendo 
por  iílo  cobrado  tamanho  bico  ,  que  publi- 
camen:e  deitava  Armadas  fóra ,  oue  corren- 
do  a  coíia  até  a  de  Chorom.andel  rouba- 
vam os  Portuguezes  ,  com  o  que  fe  tinha 
feito  poderofo  ,  e  rico.  E  pelos  defcuidos 
dos  Governadores  ,  de  pobre  pefcador  fe 
fez  fenhor  de  terras ,  e  Eílados ,  e  inimigo 
declarado  da  índia  ,  o  que  fe  lhe  diffim.u- 
lou    pelo   muito  perigo  ,    e  pouca    honra 

que 


Década  ÍV.  Liv.  V.  Cap.  IV.  349 

que  fe  ganhava  com  o  quererem  deílruir: 
e  tinha  feitos  tantos  damnos  por  eílar  ban- 
deado com  o  Cnmorim  ,  que  quando  o 
Governador  D.  Henrique  eílava  em  concer- 
to de  pazes  com  elle ,  a  primeira  coufa  que 
lhe  p-edio  foi  que  lhe  entregaíTe  eftc  Arei. 
E  iíio  nao  foi  fó  agora  ,  porque  ainda  de- 
pois noíTos  dcfcuidos  deixaram  crefcer  de 
pada  inimigos  ,  que  deram  bem  de  traba- 
lhos ao  Eílado,  como  pelo  decurfo  da  hií^ 
toria  apontaremos :  o  que  nafceo  dos  Go- 
vernadores da  índia  cílarem  com  o  olho 
em  feus  refpeiros  particulares  ,  e  cem  o 
tento  em  fe  lhes  virá  fucceííbr ,  ou  não,  a 
quem  como  chegava  lhe  lançavam  (  como 
lá  dizem  )  o  gato  nas  barbas  :  e  diílo  tem 
nafcido  todas  as  miferias  da  índia.  E  certo 
que  parece  hum  jogo  de  dochelo  vivo  ,  que 
de  máo  em  mão  fe  vai  apagando  hum  pou- 
co,  e  praza  a  Deos  que  o  não  faça  de  to- 
do. E  deixando  eíla  matéria  ,  Lopo  Vas 
de  Sampaio  como  hia  vitoriofb  ,  não  quiz 
deixar  arrefecer  fua  Fortuna ,  e  determinou 
de  dar  hum  caftigo  a  eíie  Arei  y  porque  nãa 
viveíTe  tão  folgado.  E  dando  rebate  aos 
Capitães  pêra  que  fe  fizeíTem  preíles,  man- 
dou a  Simão  de  Mello  ,  que  com  a  gente 
dos  navios  de  remo  levalíe  a  dianteira  ,  e 
elle  com  toda  a  mais  dos  galeões  a  reta- 
guarda.  E  chegando   de  madrugada  fobre 

aquel- 


35'o  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

aquella  barra ,  defcmbarcáram  todos  em  ter- 
ra em  deus  batalhões  de  quatrocentos  ho- 
mens cada  hum  :  e  Sim  ao  de  Mello  fem  fer 
ientido  entrou  a  povoação  ,  e  deo  nas  ca- 
ías do  Arei  ,  que  eram  de  madeira  ,  pon- 
do-lhe  logo  o  fogo  por  muitas  partes,  que 
começaram  a  arder  com  grande  braveza.  O 
Arei  efcapou  por  defaírre  ,  c  qucimou-íe-lhe 
a  mulher  ,  e  mais  familia  ,  e  a  povoação 
foi  mettida  a  ferro  ,  e  a  fogo  ,  e  lhe  toma-  \ 
ram  trezentos  paraos  mui  bem  feitos  ,  e 
muitas  peíTas  de  artilheria  de  bronzo  ,  fal- 
cões ,  berços ,  e  dous  camelos ,  hum  de  me- 
tal,  e  o  outro  de  ferro ,  e  lhe  cortaram  to- 
dos os  palmares  que  puderam  ,  de  ibrte 
que  ficou  deflruido  de  todo.  Feito  eíle  ne- 
gocio ,  que  foi  muito  honrofo  ,  embarcáram- 
ie  os  noíTos  a  feu  falvo  ,  c  a  outro  dia  en- 
traram em  Cochim  ,  onde  o  Governador 
foi  muito  bem  recebido.  Foi  iíto  aos  deze- 
feis  de  Outubro  ,  e  aos  dezefete  chegaram 
as  náos  de  Garcia  de  Sá  ,  e  de  António  de 
Saldanha  com  muita  gente  merros ,  e  todos 
os  mais  doentes  ,  que  o  Governador  man- 
dou defemíbarcar ,  e  curar  m.iiito  bem,  efef- 
tcjou  aquelles  Fidalgos  muito.  Deiles  íoube 
como  Nuno  da  Cunha  era  partido  por  Go- 
vernador com  huma  groíTa  Armada  ,  e  que 
não  fabiam  delle  ,  mas  que  conforme  ao* 
tempo  que  fe  tinham  apartado ;,  pois  o  não 

acha- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  IV.  35'! 

achavam  na  índia  ,  que  nao  poderia  já 
nquelle  anno  vir  a  ella.  O  Governador  le 
deixou  ficar  até  quinze  de  Novembro  efpe- 
rando  por  elle  pcra  fe  embarcar  pêra  o 
Reyno  ,  le  eJIc  vieíle  :  e  vendo  que  tarda- 
va ,  affirmando-lhe  que  eílaria  em  Moçam- 
bique ,  defpedio  cm  bufca  delle  hum  BaC- 
tião  Freire  em  huma  naveta  com  regimen- 
to 5  que  tomaíTe  a  cofta  de  Melinde  ,  o 
mais  aíTima  que  pudeíTe  pêra  Guardafú  ,  e 
que  dalii  folTe  difcorrendo  por  ella  abaixo 
até  Moçambique  ,  pêra  ver  fe  havia  algu- 
mas novas  do  Governador  Nuno  da  Cu- 
nha. Baftiáo  Freire  fe  fez  á  vela  a  vinte  de 
Novembro ;  e  de  fua  viagem  adiante  dare- 
mos razão.  O  Governador  ficou  defpachan- 
do  as  náos  pêra  o  Reyno  ,  e  depois  de  to- 
marem a  carga  as  fez  á  vela  entrada  de  Ja- 
neiro de  vinte  e  nove  ,  em  que  com  o  fa- 
vor Divino  entrámos ,  e  nao  achámos  lem- 
brança alguma  ,  de  quem  foi  por  Capitão 
delias  5  porque  os  que  trouxeram  ficaram  na 
índia.  Partidas  as  náos  ,  o  Governador  fe 
embarcou  ,  e  foi  correndo  a  cofta  do  Ma- 
lavar ,  na  ordem  que  levou  quando  foi  pê- 
ra Cochim  5  mandando  diante  Simão  de 
Mello  com  a  fuftalha  ,  e  o  Serqueira  por 
efpia  ,  que  entrava  todos  os  rios ,  e  toma- 
va falia  donde  havia  paraos  j  e  fabendo  que 
em  Marabia   (que  he  hum  rio   do  Reyno 

de 


3)2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

de  Cananor)  eílavam  recolhidos  quatorze 
navios  de  CaJecut  ,  dando  rebate  a  Simão  de 
Mello  ,  (  que  de  madrugada  entrou  áquelle 
rio  )  poz  fogo  a  todos  ,  por  fc  nao  emba- 
raçar em  os  tirar ,  tendo  liuma  muita  arre- 
zoada  briga  com  os  da  terra  ,  que  acudi- 
ram aos  defender,  (por  eílarem  a  mòr  par- 
te delles  abicados  em  terra  , )  em  que  os 
noíTos  faltaram  pêra  os  queimarem  d  fua 
vontade  ;  e  depois  de  feitos  em  cinza  ,  fe 
embarccáram  a  feu  falvo  ,  c  fe  foram  pêra 
o  Governador  que  chegou  a  Goa  ,  e  man- 
dou ordenar  luuna  Armada  grande  ,  em  que 
mandou  António  de  Miranda  pêra  o  Ma- 
]avar  ,  de  cujos  Capitães  não  acham.os  no- 
nics,  fomente  Chriílovao  de  Mello  que  hia 
em  liuma  galé  ,  e  Francifco  de  Mello  em 
huma  galeoía  ;  e  do  que  lhes  aconteceo, 
adiante  daremos  razão. 

CAPITULO     V. 

De  como  o  Governador  Lopo  Vãz  de  Sayn- 
paio  foi  avifado  de  hmna  Armada  de  Cam- 
bada que  ajidava  fora  :    e   de  como  a 
foi  bífcar  ,   e  pelejou  com  ella ,  e  a 
desbaratou  de  todo. 

T  T  Avendo  poucos  dias  que  o  Governa- 
Xx  dor  era  chegado  a  Goa  ,  lhe  veio 
hum  recado  apreíTado   de  Francifco  Pereira 

de 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  V.  35^5 

de  Berrcdo  Capitão  de  Chaul  ,  cm  que  o' 
aviíava  como  ficava  a  Armada  de  Cambaya 
fobre  aquelle  porto  ,  e  que  receava  o  qui- 
zeíTem  commettcr  ,  e  que  Jhe  podia  acon- 
tecer hum  deíaílre  pela  pouca  gente  com 
que  eílava.  O  Governador  como  tinha  aia^ 
da  os  galeões  no  mar ,  mandou-lhes  metter 
m^intimentos  ,  e  munições  ,  e  negociar  as 
fuílas  que  havia  com  muita  brevidade  ;  e 
começou-fe  a  embarcar  contra  parecer  de 
todos  os  Fidalgos,  e  Capitães  por  dizerem 
que  era  defcredito  do  Eílado  ir  a  peíToa 
do  Governador  da  índia  bufcar  hum  Capi- 
;!  táo  d'ElRe7  de  Camba}^a  ,  o  que  podia 
i  fazer  outro  Capitão  com  o  mefmo  poder 
(!  que  levava  ,  e  deixar-fe  ficar  em  Goa  por 
íj  opinião  do  Eíbdo  j  porque  fempre  fe  ha- 
f;  via  de  cuidar  antre  os  inimigos  ,  que  íican- 
i-  do  elle  ,  ficava  mais  cabedal.  O  Governa- 
)j  dor  por  fima  de  todas  as  razoes  fe  em  bar- 
)|  cou ,  e  fe  fez  á  vela  entrada  de  Fevereiro , 
levando  íinco  galeões  ,  duas  galés ,  e  qua- 
renta e  quatro  navios  de  remo.  Os  Capi- 
tães que  foram,  nefta  jornada  nos  galeões , 
e  galés  foram :  António  de  Saldanha ,  Gar- 
cia de  Sá  5  António  de  Lemos  ,  Lopo  de 
Mefquita  ,  Heitor  da  Silveira  ,  Simão  de 
Mello  ,  Henrique  de  Macedo  ;  e  os  Capi- 
tães das  fuílas  adiante  nomsaremiOs  os  maig 
deiles.  Dando  á  véla  defpedio  Heitor  da 
Cauto,  Tom.  L  P.  /.  Z  §11- 


35'4  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Silveira  com  todos  os  navios  de  remo ,  pê- 
ra que  fclTem  cingindo  a  ribeira  ,  e  elle  com 
os  galeões ,  e  galés  íe  foi  ao  mar.  Chegan- 
do a  Chaul  não  achou  os  inimigos  ,  pelo 
que  defpedio  hum  navio  ligeiro  a  eípialios : 
e  dlc  com  toda  a  Armada  furgio  a  hum 
Ilheo  5  que  eílá  huma  légua  ao  Norte  da- 
quella  barra.  Alixa  Capitão  mor  da  Arma- 
da de  Cambava  eílava  com  toda  ella  (que 
eram  feíTenta  e  quatro  galeotas)  mettido  no 
rio  de  Bombaim  ,  e  íabendo  da  Armada  do 
Governador  defpedio  treze  fuílas ,  pêra  que 
foííbm  haver  viíla  delia.  E  o  dia  que  o  Go- 
vernador furgio  no  Ilheo  ,  lhe  appareccram 
a  balravento  ,  cílando  Heitor  da  Silveira  a 
terra  comi  as  fuílas  furtas.  Os  inimigos  de- 
pois de  notarem  tudo  ,  chcgáram-fe  ao  Go- 
vernador a  tiro  de  falcão ,  e  lhe  deram  hu- 
ma boa  falva.  Heitor  da  Silveira  tanto  que 
os  vio  5  arrancou  donde  eftava  apôs  elles, 
que  como  o  viram  fe  foram  recolhendo.  O 
catur  ,  que  o  Governador  tinha  mandado  a 
efpiar  os  inimigos  ,•  chegou  o  m.efmo  dia  , 
e  lhe  diíTe  ,  como  todos  eílavam  mettidos 
em  huma  enceada  na  boca  do  rio  de  Bom- 
baim 5  o  que  fabido  pelo  Governador  cha- 
mou todos  os  Fidalgos ,  e  Capitães  a  con- 
felho  5  e  lhes  diííe  que  llie  parecia  bem  fa- 
zerem-fc  na  volta  de  Dio  ,  porque  havia 
de  eftar  fraca  aquella  fortaleza,  e  fem  gen- 
te. 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  V.  35'5' 

te ,  porque  toda  andava  na  Armada ,  e  que 
feria  muito  fácil  tomarem-na ;  e  que  os  da 
dentro  quando  o  viíTem  fobre  aquella  bar- 
ra haviam  de  cuidar  que  deixava  a  fua 
Armada  desbaratada  ,  e  que  fem  dúvida 
o  não  cfperariam  ,  e  lhe  largariam  a  forta- 
leza 5  e  que  depois  fe  bufcariam  os  inimi- 
gos. António  de  Saldanha ,  e  Garcia  de  Sá 
que  votaram  primeiro ,  diíferam  que  lhes 
não  parecia  bem  aquillo  ,  que  muito  me- 
lhor feria  ir  bufcar  aquella  Armada  ,  e  pe- 
lejar com.  elía  ,  e  que  depois  de  desbarata- 
da fe  poderia  fizer  o  que  elle  dizia  ;  mas 
que  aíu,  vendo  Alixá  que  defapparecia ,  cui- 
daria que  lhe  fogiam ,  e  cobraria  animo,  e 
voltaria  fobre  Chaul  ,  que  lho  feria  tão  fá- 
cil de  tomar  ,  como  elle  o  fazia  a  Dio ,  e 
que  feria  muito  grande  perda  ,  e  aíFronta ; 
que  fe  não  podia  fufpeitar  que  cftiveíre  Dio 
tão  defapercebido  ,  que  fe  pudeíTe  tomar 
com  a  facilidade  que  dizia :  e  que  também 
lhes  não  parecia  bem  ir  fua  peíToa  bufcar 
as  fuílas  de  Cambaya  ;  que  íe  deixaíle  alli 
ficar  ,  e  mandaíTe  hum  daquelles  Fidalgos 
áquelle  negocio  ,  e  que  todos  o  acompa- 
nhariam ,  e  que  iífo  bailava  pêra  os  inimi- 
gos; e  feria  maior  credito,  e  reputação  di- 
zer-fe ,  que  hum  Capitão  desbaratara  tama- 
nha Armada ,  que  não  que  a  peíToa  do  Go- 
vernador fe  achara  niíTo.    Com  eíle  parecer 

Z  ii  fe 


35^  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

fe  foram  todos  os  mais  Capitães.  O  que 
vifto  pelo  Governador  ,  deo-lhe  a  defcon- 
íiança  de  cuidar  ,  que  cada  hum  pertendia 
aquella  lioiira  pêra  íi  ,  e  tomar-lha  a  elle , 
e  diíle  5  que  eJle  havia  de  ir  pelejar  com  os 
inimigos  5  e  que  quem  o  quizeílb  acompa- 
nhar "O  fizefle  :  e  dcfpcdio  dalli  Heitor  da 
Silveira  ,  que  foíTe  com  as  fuflas  todas  dian- 
te a  pôr-fe  na  barra  ,  e  o  Governador  á 
fua  viíla  hum  pouco  ao  mar  foi  demandar 
o  rio  de  Bombaim.  Eíla  noite  fe  vio  liuma 
coufa  no  Ceo  maravilhofa ,  que  foi  hum  fi- 
nal branco  ,  e  luzente ,  comprido  á  feiçáa 
de  cfpada  larga ,  que  corria  do  Noroeíle  a 
Suefte  ,  e  ficava  com  a  ponta  pêra  a  parte 
em  que  eílava  Dio.  Os  Mouros  notaram 
ifto  a  roim  final.  A  eftes  cometas  chamam 
os  Gregos  Xip]iia  ,  porque  xiphos  he  o 
mefmo  que  efpada :  e  os  que  efcrevem  def- 
tes  cometas  dizem  que  sao  de  cor  luzente , 
e  que  acabam  em  ponta  ,  como  efte  tinha , 
que  era  aquella  que  cahia  fobre  Dio.  O  Go- 
vernador amanheceo  fobre  Bombaim  aos 
féis  de  Fevereiro ,  que  foi  ao  outro  dia  lo- 
go ,  em  que  cahio  dia  de  Cinza ,  e  houve- 
ram viíla  da  Armada  do  inimigo  ,  que  ef- 
tava  na  ponta  daquella  barra.  O  Governa- 
dor metteo-fe  em  hum  navio  ligeiro  ,  e  foi 
correr  as  noíTas  fuftas ,  e  fez  a  todos  huma 
muito  breve  falia  ,  pondo-Ihes  diante  fuás 

obri- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  V.  35*7 

obrigações,  fácil itando-lhes  a  vitoria,  affir- 
mando-lhes  que  eílava  íò  no  commetd men- 
to :  que  lhes  mandava  da  parte  d'ElRey  , 
que  nenlium  navio  tiraiTe  bombardada ,  fob 
pena  do  cafo  maior  ,  ao  tempo  do  commet- 
timento ,  porque  íe  nao  eftorvafTem  os  ma- 
rinJieiros  ,  que  os  aíFerraíTem  primeiro  ,  e 
que  ganhalTem  aquella  honra  á  efpada  ,  por- 
que aíli  ficaria  a  vitoria  mais  formofa ,  e  ao 
primeiro  que  inveftiíTe  navio  lhe  prometteo 
cem  cruzados  ,  e  o  navio  ,  tirando  artilhe- 
ria  ,   encommendando   a  dianteira  a  Heitor 

-  da  Silveira  ,  que  poz  todos  os  feus  navios 
em  ordem.  O  Governador  receando  que  os 
inimigos  lhe  fugiíTem  pêra  o  rio  de  Bando- 
ra ,  que  eílava  diante  meia  legua  ,  mandou 
a  hum  Capitão ,  que  tanto  que  a  batalha  fe 
travaíTe  ,  foífe  com  oito  navios ,  ( que  lhe 
norneou  ,  e  a  quem  mandou  recado  , )  e  to- 
maífe  a  boca  daquelle  rio.  Heitor  da  Sil- 
veira efcolheo  os  melhores  navios  pêra  a 
dianteira  ,  de  que  eram  Capitães  Diogo 
Coelho  5    Gafpar  Paes ,  Francifco  Alvares  , 

■  João  Rodrigues  o  Chatim  ,  Pedralvares  de 
Mefquita  ,  António  Corrêa ,  Lourenço  Bo- 
telho ,  Chriftovão  Lourenço  Carracão  ,  o 
dalafate  de  Chaul  ,  Diogo  Qiiarefma  de 
alcunha  o  Malu  ,  Fero  Barriga  ,  António 
-Colaço  ,  Chriftovão  Corrêa  ,  Jorge  Dias  ,  e 
António  Fernandes  j  com  efte  hiam  embar- 
ca- 


35'^  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 
cados    eíles   Fidal8:os   CJiriílovao   de  Mel^ 

o 

lo  de  Sampaio  ,  íbbrinho  do  Governador, 
D.  Francilco  de  Caftro  ,  João  Pereira  ,  Ma- 
noel Rodrigues  Coutinho  ,  André  Calco  , 
Francilco  de  Barros  de  Paiva  ,  Luiz  Couti- 
nho ,  Duarte  Coelho  ,  João  de  Mello,  An- 
tónio Barbudo  ,  Joáo  da  Silveira  ,  Maneei 
do  Carvalhal ,  Nuno  Pereira  ,  Lançarote  de 
Alpoem.  De  todos  os  navios  de  remo  fez 
o  Governador  três  batalhas  ,  e  nas  duas 
hiam  as  duas  galés ,  e  pêra  as  fufras  le  paí^ 
íliram  todos  os  Fidalgos  ,  e  Capitães  da  Ar- 
mada ;  e  aíli  neíla  ordem  foram  demandar 
o  rio.  Alixá  vendo  ir  os  noíTos  navios  os 
fahio  a  receber  com  grande  determinação  , 
e  chegando  a  tiro  de  bombarda ,  deram  fua 
íalva  Icm  os  noííos  fazerem  cafo  delia  ,  com 
choverem  fobre  todos  os  navios  nuvens  de 
pelouros  ,  e  paíTando  os  no  (Tos  pelo  meio 
de  rodos  eíles  perigos,  e  bombardadas ,  os 
foram  aíFerrar  ,  dando-Ihes  ao  mefmo  tempo 
a  fua  ilirriada  ,  de  que  lhes  mataram  mui- 
tos ,  inveílÍ!ído-os  logo.  E  o  prinieiro  que 
poz  a  proa  cm  huína  galcota  muito  formo- 
fa  foi  António  Fernandes ,  com  quem  hiam 
.embarcados  os  Fidalgos  ,  que  aíllma  no- 
meámos ,  onde  fe  baldeou  Jogo  Francifco 
de  Barros  de  Paiva  ,  que  hia  no  cfporam  , 
e  da  pancada  que  a  fufta  deo ,  tornou  a  re- 
cuar pêra  fora  ,  ficando  elle  fó  dentro  fo- 
bre 


I 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  V.  35-9 

bre  a  poíliça  ,  que  cra  de  apj3cllaçao  ,  onde 
íedefendeo  com  muito  valor  de  muitos  que 
o  commetteraQi.  A  fuíla  tornou  logo  a  fer- 
rar a  galeota  ,  e  os  noflbs  trabalharam  pe- 
ja entrar  ;  nuns  foi-lhes  mui  bem  defendi- 
da ,  ficando  Francifco  de  Barros  em  gran- 
de aperto  ,  porque  carregavam  fobre  elle 
muitos  tiros,  c  golpes,  de  que  fe  defendia 
com  m.uiro  trabalho.  O5  noííos  trabalha- 
vam pelo  foccorrer ,  commettcndo  a  entrada  , 
fobre  o  que  ie  fazia  huma  muito  afpcra  ba- 
taiha  ,  porque  os  inimigos  eram  muitos. 
Eftando  a  coufa  mui  baralhada  ,  acertou  de 
cahir  da  meia  gavia  da  galeota  dos  AIou- 
ros  huma  panella  de  pólvora  na  mefma  ga- 
leota do  maíto  á  poppa  ,  que  quiz  Deos 
délTe  em  outras  ,  que  todas  tomaram  fogo  , 
com  que  a  fuila  arrebentou  ,  deitando  por 
eíTesares  a  todos  quantos  nella  havia.  Fran- 
cifco de  Barros  quiz  fua  ventura  que  cahif- 
fe  dentro  na  nolTa  fuíla  ferido  de  huma 
zargunchada.  Ficaram  mais  fendos  João  Pe- 
reira de  huma  frechada  no  roílo ,  D.  Fran- 
cifco de  Caíiro  de  huma  pedrada  na  cabe- 
ça. Heitor  da  Silveira,  que  foi  dos  primei- 
ros que  abalroaram  ,  trabalhou  por  chegar 
á  galeota  do  Alixá ,  mas  por  eftar  na  reta- 
guarda afferrou  em  outra  que  logo  axorou  , 
e  o  mefmo  fizeram  os  mais  Capitães  cada 
hum  á  fua,  apertando  tanto  com  os  inimi- 
gos. 


3^0  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

gos  ,  que  os  fizeram  Innçar  ao  mar  depois 
de  mui  bem  eícalavrados.  Aiixá  vendo  o 
eftrago  dos  íeus  mudou-fe  a  hum  navio  pe- 
<]ucno  5  e  tomando  o  remo  foi-fe  acoliien- 
do.  Os  mais  da  ília  companhia  vendo-o  ir , 
trabaliiáram  por  íc  falvar  ,  e  feguindo-os 
os  noíTos  5  03  foram  alcançando  ,  e  axoran- 
do  y  ficando-lhes  dcfta  feira  nas  mãos  qua^ 
renta  ,  e  féis  galeotas ,  cm  que  íe  tomaram 
oitenta  bombardas  groíías  ,  e  outras  miú- 
das 5  e  das  outras  foram  queim.adas  três. 
Das  quinze  que  efcapáram  re^oiheo  Alixá 
fete  ,  com  que  fe  foi  pelo  rio  dentro  até 
Taná  ,  as  outras  fe  mettéram  pelo  rio  de 
Nagotana  ,  onde  foram  tomadas  pela  gente 
do  Meiique  Rey  de  Chaul.  Venceo-fe  eíla 
batalha  ícm  cuíiar  da  noíTa  parte  mais  que 
hum  homem  que  cahio  ao  mar.  Perderam^ 
fe  dos  inimigos  antre  m.ortos  ,  e  cativos  oi^- 
tocentos  homens  brancos  Turcos  Rumes , 
e  mais  de  duzentos  bombardeiros  ,  e  da 
gente  da  terra  mais  de  dous  mil.  Foi  cou- 
fa  milagrofa  ,  que  o  cometa  ,  com  fer  dia 
claro  5  fempre  appareceo  no  Ceo  até  aquella 
Jiora  que  fe  a  batalha  venceo  ,  que  fe  eC- 
condeo.  O  Governador  Lopo  Vaz  de  Sam- 
paio deo  muitas  graças  a  Deos  por  tama- 
nha m.ercê ,  e  armou  muitos  Cavalleiros ;  e 
pondo  em  confelho  dos  Capitães  fe  volta- 
ria pêra  Dio  com  tamanha  vitoria ,  cuja  fa- 
ma 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  V.  3Ór 

ma  hnvia  de  ter  os  inimigos  erpantados ,  e 
atemorizados ,  foram  muitos  de  parecer  que 
ílm  ;  mas  Garcia  de  Sá  ,  e  António  de  Sal- 
danha foram  do  contrario ,  antes  lhe  reque- 
reram da  parte  d^ElRey  que  não  roubai^ 
fcm  a  honra  a  Nuno  da  Cunha  ,  que  vi- 
nlia  fó  áquelle  negocio ,  pedindo  ao  Secre- 
tario que  lhe  déíTe  inftrumento  daquillo ,  e 
o  Governador  também  lhe  pedio  outro ,  de 
como  quizera  comm.etter  aquella  jornada, 
e  que  os  feus  Capitães  lha  eílorvárani.  E 
certo  que  fe  entendeo  que  fe  voltara  a  Dio , 
tomara  aquella  fortaleza ,  fegundo  todos  fi- 
caram quebrantados  com  a  perda  de  tama- 
nha Armada  ,  em  que  elles  tinham  toda  íua 
força  ,  e  cabedal.  Vendo-fe  o  Governador 
contrariado  ,  determinou  de  ir  dar  em  Ta- 
vÁ  ,  e  deílruir  aquella  Cidade  ,  pêra  dar 
hum  íacco  grande  á  fua  gente  ,  por  irem 
cheios  de  honra  ,  e  de  proveito  ;  e  cami- 
jihando  com  todas  as  fuílas  pelo  rio  den- 
tro ,  lá  nos  paíTos  que  são  perigofos ,  deo 
cm  fecco  toda  a  Armada  ,  onde  ficou  aquel- 
la maré  a  riíco  de  fe  perder  ,  trabalhando 
todos  até  lhes  rebentar  o  fangue  das  mãos, 
A  alguns  Capitães  que  ficaram  em  nado , 
deo-fe-lhes  pouco  do  trabalho  em  que  o 
Governador  eílava  ,  porque  como  efpera- 
vam  por  outro  novo  ,  já  lhes  não  tinham 
muito  reípeito.  Como  a  maré  tornou  a  cur 

cher , 


3Ó2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

cher ,  alevantáram-fe  os  navios  do  íccco ,  e 
fahíram-le  pcra  fóra.  O  Governador  por 
não  experimentar  outra  deíobediencia  ,  e 
por  fer  já  fim  do  verão  ,  determinou  de  fe 
ir  pêra  Goa  ,  deixando  Heitor  da  Silveira 
com  vinte  e  lete  navios  de  remo  pcra  fi- 
car na  cofta  de  Cambaya  ,  fazendo  toda  a 
guerra  que  pudeífe  ,  e  eIJe  fe  recolheo  a 
Chaul  5  e  daíli  a  Goa. 

CAPITULO     VI. 

J)a  guerra  que  Heitor  da  Silveira  fez  na 
cofia  de  Cambaya  :  e  de  como  defiruhto 
a  Cidade  de  Bacaim  ,  e  as  Vi i las  de 
Tand  ,  Bombaim  ,  e  outras :  e  do  que  o 
Governador  Lopo  Vaz  de  Sampaio  fez 
em  Goa  ,  e  do  que  aconteceo  no  Ma  lavar. 

Artido  o  Governador  Lopo  Vaz  de 
__  Sampaio  pêra  Goa  ,  determinou  Heitor 
da  Silveira  de  ir  tomar  huma  fortaleza  af- 
faítada  da  agua  duas  léguas  por  aquelle  rio 
de  Nagotana  dentro  ,  em  que  cftava  hum 
Capitão  d'ElRey  de  Cambaya  com  feiscen- 
los  homens  de  cavallo  ,  e  dous  mil  de  pé , 
.€  indo  demandalla  não  pode  chegar  a  ci- 
la ,  porque  o  eílreito  que  entrava  até  lá  era 
baixo ,  e  de  pouca  agua  ;  mas  defembarcan- 
do  onde  pode  chegar  a  Armada  ,  queim.ou 
•féis  povoações  muito  grandes  que  havia  na- 
^  quel- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  VI.   363 

quclla  parte  cm  que  dcfcmbarcou.  O  Capi- 
tão que  eílava  na  fortaleza  foube  de  como 
os  noíTos  andavam  em  terra  ,  acudindo  com 
toda  a  gente  que  tinha ,  foi  a  tempo  ,  que 
os  noíTos  tinham  já  tudo  feito ,  e  fe  come- 
çavam a  embarcar.  Os  de  cavallo  que  hiam 
diante  remettêram  a  elles  com  grandes  gri- 
tas ,  e  apupadas  ,  chamaudo-lhes  nomes. 
Heitor  da  Silveira,  que  ainda  eftava  em  ter- 
ra ,  foi-ihe  forçado  fazer  roílo  aos  ir.imi- 
gos  ,  pêra  terem  os  feus  tempo  de  fe  em- 
barcarem ;  e  tomando  cem  cfpingardas,  te- 
ve-ihes  o  encontro  ,  derribando-ihes  alguns  , 
com  que  os  fizeram  parar.  Hum  foldado 
dos  noíTos ,  homem  não  conhecido ,  e  fem 
nome ,  (a  que  muito  defejámos  de  o  faber , 
•pêra  lho  darmos  muito  honrado  neíla  hif- 
toria  5  )  adiantando-fe  hum  pouco  com  hu- 
ma  lança  ,  e  rodela,  efperou  hum  Mouro 
de  cavallo  a  pé  ,  que  des  que  vio  nelle 
romper  feu  encontro  com  a  lança  alta  ,  o 
foldado  correo  a  fua  ,  e  o  tomou  por  de- 
baixo do  braço  da  lança ,  e  paílando-o  to- 
do, deo  comelle  no  chão;  e  ainda  não  eí^ 
tava  bem  nelle ,  quando  já  o  foldado  (  que 
lhe  levou  logo  as  rédeas  do  cavallo  na 
mão)  faltou  em  fima  com  muita  ligeireza , 
e  ar ;  e  enreftando  a  lança  ,  voltou  a  outro 
de  cavallo  que  remettia  com  elle  ,  e  o  le^- 
vou  pelos  peitos  ^  dando  com  eile  de  per- 
nas 


364  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

nas  aíUma  muito  mal  ferido ,  a  que  os  nof- 
fos  deram  huma  grande  apupada  ,  e  logo 
furriada  da  eípingardaria.  O  foldado  em 
derribando  o  Mouro  ,  rcmctteo  ao  cavallo  , 
■e  o  tomou  pelas  rédeas  ,  e  com  muita  con- 
fiança fe  veio  recolhendo  pêra  Heitor  da 
Silveira  5  cavalgado  em  hum,  e  com  outro 
a  deftro ;  e  chegando  a  elle  lhe  pedio  o  ar- 
maíTe  Cavalleiro  ,  o  que  elle  logo  eftava. 
Louve  agora  Livio  o  ícu  Marco  Corvino , 
por  matar  hum  Francez  em  defafio  ,  por 
■cujo  feito  lhe  mandou  Oftaviano  Augufto 
alevantar  eítatua  em  meio  de  feus  apofen- 
tos.  Engrandeça  o  feu  Torquato  pelo  co- 
lar que  tomou  a  outro  ,  que  cu  não  farei 
mais  que  contar  íingclamente  efles  ,  e  ou- 
tros feitos  fem.elhantes  ,  mais  dignos  de  eí^ 
tatuas  ,  que  os  dos  feus  Romanos.  Mas  o 
tempo  que  deixo  de  gaitar  em  íeus  louvo- 
res 5  gaílarei  em  eftranhar  o  defcuido  dos 
Rcys  nefta  parte ,  que  a  eítes  taes  nem  com 
eílatuas  ,  nem  com  pão  fatisfízeram  nunca 
feus  feitos  :  pelo  que  muitos ,  e  muito  va- 
Jerofos  Cavalleiros  ,  que  obraram  façanhas 
dignas  de  memoria  eterna  ,  eftam  hoje  tão 
poílos  em  efquecimento  ,  que  até  os  nomes 
ie  lhes  não  fabem  ,  como  a  eíle  noíTo  Ca- 
valleiro ,  que  por  eíle  feito  não  teve  mór 
galardão  ,  que  em  quanto  Lopo  Vaz  go- 
vernou depois  diílo  chamar-lhe  o  feu  Ca- 
vai- 


DECá.©A  IV.  Liv.  V.  Cap.  VI.  ^6^ 

valleiro  ,  e  tello  na  Igreja  apar  de  íi  em  pé ; 
e  depois  que  acabou  ,  pode  bem  fer  que  o 
acabaíTe  também  a  fome.  E  tornando  a  Hei- 
tor da  Silveira  ,  com  aquella  boa  ventura 
do  Toldado  carregou  fobre  os  inimigos  ,  e 
os  fez  affaftar ,  e  elle ,  e  todos  fe  embarca- 
ram a  feu  falvo  ,  e  fe  tornaram  a  fahir  do 
rio.  Dalli  foram  pela  cofta  aílima  até  a  Ci- 
dade de  Baçaim  do  Reyno  de  Cambava ,  c 
chegando  áquella  barra ,  mandou  Heitor  da 
Silveira  fondalla  ,  e  reconhecer  o  fitio  da 
Cidade  por  Chriílovao  Corrêa  Capitão  de 
humBargantim ,  que  foi  entrando  pelo  rio, 
e  notou  que  antes  de  chegar  á  Cidade  ef- 
tava  huma  tranqueira  de  madeira  de  duas 
faces  entulhada  com  três  baluartes  grandes, 
e  fortes  ,  em  que  havia  feíTenta  peíTas  de 
artilheria ;  e  por  huma  almadia  que  tomou 
foube  eftarAlixá  Capitão  das  galeotas ,  que 
depois  de  desbaratado  fe  recolheo  áquella 
Cidade  ,  e  a  fortificou  ,  com  receio  que  o 
Governador  foíTe  dar  nella  ,  e  ajuntou  três 
mil  homens  de  pé  ,  e  quinhentos  de  cavai- 
lo  que  comíigo  tinha.  Informado  Heitor  da 
Silveira  de  tudo ,  poz  em  parecer  dos  Ca- 
pitães fe  daria  na  tranqueira  ,  emi  quanto  o 
confelho  durou  ,  os  foldados  da  Armada 
todos  bradavam  que  deííem  na  Cidade  ,  e 
concluio-fe  que  fe  déíTe  ,  e  negociando-fe 
pêra  de  madrugada  defembarcarem  ,  tanto 

que 


366  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

que  rompco  a  alva ,  entraram  os  noíTos  pe- 
lo rio  dentro  ,  e  chegando  á  tranqueira , 
que  eftava  eftcndida  de  longo  da  praia ,  em 
que  haviam  de  deíembarcar  pêra  commet- 
terem  a  Cidade  ,  puzeram  os  proizcs  em 
terra  por  meio  de  muitas  ,  e  mui  amiuda- 
das bombardadas  ,  que  lhes  atiravam  dos 
baluartes  :  e  os  primeiros  que  faltaram  em 
Terra  ,  foram  duzentos  Canarins ,  que  fica- 
ram na  Armada,  de  que  era  Capitão  Malu  , 
Mocadao  mor  dos  marinheiros  ,  que  Hei- 
tor da  Silveira  lançou  diante  pêra  quebra- 
rem nelles  aquella  primeira  furriada  dos  ini- 
migos ,  que  deo  por  antre  elles  fem  IheS' 
fazer  damno.  Heitor  da  Silveira  defembar- 
cou  muito  á  fua  vontade,  mandando  dian- 
te hum  Capitão  com  huma  companhia  pê- 
ra comm.etter  as  tranqueiras ,  e  dle  com  a 
bandeira  de  Chriílo  ,  e  toda  a  mais  gente 
foi  na  retaguarda.  Chegados  os  noílos  á 
tranqueira ,  a  commettêram  com  muito  ani- 
mo ,  achando  os  de  dentro  poftos  em  de- 
fensão ,  antre  quem  fe  ateou  hum.a  muito 
crefpa  briga  ,  de  que  os  de  dentro  ficaram 
de  ventagem ,  porque  de  fima  lançavam  fo- 
bre  os  noíTos  toda  a  coufa  que  achavam  de 
páos  5  pedras ,  fogo ,  pólvora  ,  e  todos  os 
mais  inílrumentos  mortaes  ;  os  noíTos  fem 
temerem  coufa  alguma  ás  efpingardadas  ,  fi- 
zeram aíFaflar  os  Mouros  de  alguns  lugares 

com 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  VI.  367 

com  morte  de  alguns  ,  com  o  que  outros 
muitos  ajudados  huns  dos  outros  cavalga- 
ram pelos  lugares  vaíios  a  tranqueira,  e  de 
fíma  appellidáram  Portugal  ^  Portugal,  Os 
Mouros  vendo  os  nolTos  em  íima  largaram 
tudo  ,  e  fe  recolheram  á  Cidade  até  onde 
os  noíTos  os  feguíram  ,  entrando  de  volta 
com  ellcs.  Alixá  não  eílava  na  tranqueira , 
porque  entendendo  ,  que  fe  os  noíTos  def- 
embarcaííem  a  haviam  de  cavalgar ,  foi-fe 
pôr  em  íilada  fora  da  Cidade  ,  porque  quan- 
do os  noíTos  accommetteíTem  lhes  fahiflem, 
e  os  desbarataíTem.  E  aííi  foi,  que  indo  os 
noíTos  no  alcance  dos  feus  até  a  Cidade , 
arrebentou  da  íilada  com  a  gente  de  ca- 
vallo ,  e  detrás  toda  a  de  pé ,  e  foi  deman- 
dar os  que  entravam  na  Cidade.  Heitor  da 
Silveira  que  eílava  fora  ,  vendo  os  inimi- 
gos tocou  a  recolher  ,  e  ordenou  hum  eír 
quadráo  com  toda  efpingardaria  á  roda , 
ajuntando  todos  a  íí  ,  que  logo  voltaram, 
tanto  que  fentiram  os  inimigos  ,  e  aíli  fe 
poz  com  propcfito  de  pelejar  com  qWq*  Ali- 
xá cuidou  que  os  noíTos  fugiam  ,  vendo-os 
recolher  ao  efquadrao  ,  e  os  foi  feguindo 
até  chegar  a  Heitor  da  Silveira ,  que  os  de 
cavallo  foram  commetter  com  grande  de- 
terminação ,  cuidando  que  rompeíTem  o  ef- 
quadrao ;  os  noíTos  defparando  fua  arcabu- 
zaria ,  derribando  muitos ,  fizeram  voltar  os 

maisj 


368  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

mais  ;  porque  os  cavallos  com  o  eílrondo- 
efpantados  voltavam  pêra  trás  rompendo  os 
feus  de  pé  ,  que  vinham,  chegando  ,  e  aíli 
huns  5  e  outros  fe  desbarataram  deitando  a 
fugir  ,  e  ícm  pararem  na  Cidade  fe  foram 
recolhendo  huns  pêra  a  ferra  ,  outros  pêra 
outras  partes.  Os  noííos  não  os  quizeram^ 
fcguir  por  eftarem  can fados  ,  e  m^andando- 
os  efpiar  5  fabendo  que  defamparáram  a  Ci- 
dade, a  entraram,  e  faqueáram ,  roubando 
muita  fizenda  ,  ouro ,  e  prata  ,  porque  ef- 
tava  rica  ,  e  profpera ;  e  depois  de  fe  far- 
tarem bem  5  lhe  puzeram  fogo  em  que  toda 
ardeo.  Heitor  da  Silveira  efteve  fempre  á 
porta  com  a  bandeira  de  Chrillo  ,  e  tocan- 
do a  recolher  foi-fe  a  tranqueira  ,  e  man-- 
ííou  embarcar  toda  a  artilheria  delia  ,  e  pu- 
deram fogo  a  tudo  ,  que  ardeo  até  os  ali- 
ceíTes.  No  rio  tomaram  três  Taurins  carre- 
gados de  madeira  mui  formofa  ,  que  logo 
mandou  pêra  Goa  ,  que  o  Governador  efti- 
m.ou  pêra  o  concerto  das  Arn^iadas.  Os  Ta- 
jiadares  vizinho?  ficaram  difto  tão  amedron- 
tados ,  que  o  de  Taná  mandou  oíferecer  a 
Heitor  da  Silveira  quatro  mil  pardaos  de 
páreas  cada  anno  ,  que  lhe  dle  acceitou ,  de 
c[ue  fe  fizeram  papeis,  que  não  apparecem, 
nem  são  neccííarios  ,  porque  o  direito  fe- 
nhorio  deílas  terras  ficou  depois  melhor  pe- 
la doajão  j   que  o   Sokao  Badur  Rey   de 

Cam- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  VI.  369 

CcUiibaya  fez  delias  aos  Reys  de  Portugal V 
coií.o  adiante  diremos.  Heitor  da  Silveira 
deo  outra  volta  pela  eiiceada  de  Cambaya  , 
e  deieinbarcou  em  alguns  lugares  que  def- 
truio,  e  abrazou  5  e  como  foi  tempo  fe  re- 
colheo  a  invernar  a  Chaul.  O  Governador , 
tanto  que  chegou  a  Goa ,  defp^chou  Garcia 
Deca  pêra  ir  entrar  na  capitania  de  Mala- 
ca ,  mandando  provimentos  pêra  Maluco ; 
c  pêra  Ormuz  mandou  três  galeões  carre- 
gados de  fazenda  d'ElRey  y  de  que  eram 
Capitães  D.  Francifco  Deca  ,  António  de 
Lemos  ,  e  Lopo  de  Mefquita.  António  de 
Miranda  fabendo  no  Malavar,-  onde  anda- 
va 5  que  no  rio  de  Chael  cila v a  luima  náo 
carregada  de  pimenta  ,  entrou  dentro  ,  e  a 
tomou  5  e  tirou  pêra  fora  ,  e  a  maqdou  a 
Cochim  5  e  queimou  aquella  povoação  ,  e 
quatro  paraos  que  eftavam  varados  ,  e  to- 
mou outros  quatro  que  eRavam  no  rio  ;  e 
depois  deíle  fucccíTo  ,  andando  correndo  a 
coíla ,  fuccedeo  andar  Chriftovão  de  Mello 
ao  longo  da  terra  com  a  ília  galé  ,  e  féis 
navios  mais  ,e  António  de  Miranda  ao  mar 
dclle ,  não  fabendo  os  Mouros  do  Capitão 
inór  ,  e  vendo  aquella  g^lé  ,  e  poucos  na- 
vios de  longo  da  terra ,  armaram  fincoenta 
paraos  ,  e  o  foram  demandar.  Chriftovao 
úe  Mello  tanto  que  liouve  viíla  delles ,  foi- 
íe  remando  pêra  o  mar  ,  alli  pelos  aíFaftar 
Couto,Tom,LF,L  Aa  da^- 


370  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

da  terra ,  como  pêra  clicgar  ao  Capitão  mor; 
Os  inimigos  cuidavam  que  lhes  fugia  ,  e 
foram-no  fcguindo  até  haverem  viíla  do 
Capiráo  mor  ,  que  vendo  aquella  Armada 
ir  apôs  a  noíla  ,  como  tinha  o  balra ven- 
to ,  dando  á  véla  defcarregou  fobre  eWes ., 
é  o  meímo  fez  Chriftovao  de  Mello.  Os 
inimigos  vendo  o  Capitão  mor  ficaram  em- 
baraçados ,  e  voltaram  pêra  a  terra  ;  Chri- 
ílovao  de  Mello  5  que  lhes  ficou  mais  perto  , 
lhes  chegou  com  léus  navios ,  e  pondo-lhes 
as  proas  os  foi  axorando  ,  ficando-lhes  nas 
mãos  quatorze  navios  ,  e  os  mais  por  ligei- 
ros efcapáram.  Eíla  vitoria  foi  a  derradeira 
defte  verão  ,  e  Chrifrovâo  de  Mello  fe  re- 
colheo  a  Goa  ,  e  António  de  Miranda  a 
Cociíim. 

CAPITULO     VIL 

De  como  ChrifÍGvão  de  Islendoça  CâpitãQ 
de  Orynu%  majídou  António  Tenreyro  por 
ierí^a  ao  B.eyno  com  as  no'xias  das  chalés , 
e  da  jornada  que  efte  homem  fez  pelo 
deferi  o  de  Arábia  :  e  de  como  chegou  ao 
Reyjio  ^  e  ElRey  viandou  Manoel.de  Ma- 
cedo   a  Onnuz  a  prender  Rax  Xarrafa, 

A  Trás    temos    dito     como    Chriílováó 
de  Mendoça    foi   entrar   na   capitania 
'de Ormuz,  levando- em  fua  companhia  Rax 


f 


Década  IV.  Lrv.  V.  Cap.  VII.  371 

Xarrafo  ,  que  como  era  homem  alterado , 
e  foberbo  ,  tornou  logo  a  uíiir  de  lua  na- 
tureza ,  e  a  le  levantar  contra  Ellley,  re- 
volvendo aquella  Cidade  ,  e  tyrannizando-a  , 
pelo  que  deixavam  as  Cáfilas  de  vir  a  ella, 
e  a  Alfandega  a  render  menos.  E  porque 
no  meímo  tempo  em  que  chegou  a  Ormuz 
luccedco  o  caio  de  Rax  Soleimao ,  porque 
fe  desfez  a  Armada ,  que  era  fahida  contra 
a  índia  ,  pareceo-llie  a  Chriílovao  de  Men- 
doça  obrigação  avifar  ElRey  de  tudo  ,  ef- 
crevendo-Ihe  aíli  ifto  ,  como  as  coufas  de 
Rax  Xarrafo  ;  e  elegeo  pêra  efta  jornada 
hum  António  Tenreyro,  natural  de  Coim- 
bra ,  homem  nobre  ,  que  já  fora  com  Bal- 
thazar  PeiToa  ao  Xeque  límael ,  donde  to- 
mou o  caminho  pêra  Jeru falem ,  e  foi  pre^- 
zo  pelos  Turcos  ,  cuidando  fer  efpia  ,  e  le- 
vado ao  Cairo  ,  onde  foi  depois  folto  ,  e 
dalli  pníTou  a  Chipro  5  e  por  hum  cafo  que 
lhe  naquella  Ilha  aconteceo  ,  fe  tornou  pê- 
ra a  índia  ;  e  deíbrabarcando  em  Trypolí 
atraveíTou  o  deferto  ,  e  foi  ter  a  Baílbrá , 
e  dahi  a  Ormuz  ,  onde  havia  pouco  que 
era  chegado  deíla  jornada.  Eíle  homem  lá- 
bia bem  a  lingua  Turquefca  ,  c  Perfica ,  e 
pelo  muito  que  importava  Icvar-fe  recado 
a  ElRey  ,  acceitou  a  jornada  ,  e  a  vinte  deC* 
te  Setembro  paflado  partio  de  Orm.uz  pêra 
.BafTorá  ^   até  onde  poz  quarenta  dias ,   por 

Aa  ii  cau- 


'372-  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

caula  dos  ventos  qne  achou  contrários.  Nef- 
ra  Cidade  íe  deteve  vi;;te  dias,  porque  níío 
achou  já  a  Cáfila  que  hia  pcra  Damaíco  , 
,e  o  Xeque  que  era  nolTo  amigo  o  não  que- 
lia  deixar  atraveíTar  o  delerto  fó,  nem  dar- 
]he  pêra  iíTo  guia  ;  e  foi  tão  importunado 
delle  ,  que  lha  houve  de  conceder.  E  com- 
prando duas  camelas  de  leite  ,  huma  pêra 
clle  5  outra  pêra  o  Piloto  ,  provendo-fe  de 
mantimentos  ,  de  tâmaras ,  bifcouto  ,  fari- 
nha 3  alguma  carne  de  fumo  ,  e  odres  de 
agua  5  partiram  entrada  de  Novembro  deíle 
anno  de  vinte  e  nove ,  depois  de  meia  noi- 
te ,  porqiie  não  foííe  viílo.  Caminhando  o 
que  reíiava  delia  ,  ao  outro  dia  íe  mettêram 
por  aquelle  efpantofo  deferto ,  por  onde  tu- 
do o  que  alcançavam  com  os  olhos  eram 
4iuvens ,  e  ferras  de  aréas  foltas ,  e  movedi- 
:ças  ,  que  com  qualquer  vento  eram  levadas 
de  huirja  parte  pcra  a  outra  ,  como  fazem 
as, ondas  do  mar  com  grandes  tempeíladcs, 
"não  encontrando  por  todo  o  caminho  fe- 
não  urfos  ,  tygres  ,  Icóes ,  lobos ,  e  alimárias 
iravas  ,  de  que  Deos  fempre  os  guardou, 
governando-fe  o  Piloto  pela  ellrella  do  Nor- 
te de  noite,  e  de  dia  por  algumas  balizas 
'que  os  caminhantes  tinham  poílas  em  para- 
gens que  os  ventos  as  não  pudeíTcm.  arran- 
.car^  e  aíli  caminhavam  vinte  c  iinco  léguas 
,por  dia  ^  dormindo   em  íima  das  cameíasf, 

"..,-/j  .  011- 


Década  TV.  Liv.  V.  Cap.  VIL  373 

onde  também  comiam  ,    fem   fe  defcerem  , 
alli  par  amor  das  alimárias  bravas ,  e  feras, 
eomo    por   fe  não    enterrarem  ,    e  fiur.irem 
naquelle  mar   de  áreas  ;   dando   a  cada  ca- 
mela Jiuma  quarta   de  farinha  hiima  vez  aO' 
dia  ,  e  alguma  pouca  de  agua  ,  e  cada  qua- 
tro ,   finco  dias  as  fartavam  delia  em  char- 
cos,  que  a  paragens  havia  em  partes  duras, 
e  feccas  ,  em  que  as  aguas  do  inverno  fe  re- 
colhiam.   E  em  certas  paragens  como  cilas 
fe  acham  alarves  ,  grandiílimos  ladroes ,  que 
vivem    de   faltear  as  Caiilas.    Ao   derredor 
deíles    charcos    fe  criam  alguns  cardos  bra- 
vos   de    que    as  camelas   comiam.    António 
Tenreyro    foi    commettido    duas  vezes    das 
alimárias  ,   de  que  Dcos  ,  e  a  ligeireza  das 
camelas   o    livraram.    E    huma    madrugada 
fugindo  á  rédea  folta  de  dous  leões ,  corre- 
ram  daquella  feira  duas  léguas  ,    ficando    a 
camela  de  António  Tenre}^ro  manca  de  hum 
pé  dum  eftrepe  que  fe  lhe  metteo  ,  e  foi-lhe 
forçado  deter-fe  ,  defcer-fe  ,    e  tirar-lho ,  c 
curallo  como  pode  ,  e  deíla  feira  efreve  três 
dias  fem  caminhar,  e  no  cabo  delles  torna- 
ram á  fua  jornada  ,    padecendo  grandes  fó- 
ines  ,   fedes  •   e  medos;  e  a  cada  oito  dias 
achavam  aquellas   partes  feccas  ,    em  que  fe 
refaziam   de  agua   ainda  que  roim  ,    e   em 
cada    huma    delias    fe  detinham    hiUm    d;a, 
por  dar  folga   ás  camelas.    Em  duas  partes 

def- 


/ 


374  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

<ieftas  achdram  dous  CapLoIios  arruinados , 
onde  já  íc  agazalháram  Alarves ;  e  a  cabo 
de  vinte  e  dons  dias  de  camiiiho  chega- 
ram a  huma  pequena  Villa  acaftellada ,  cer- 
cada de  muro  ,  e  taipas  groíTas ,  c  povoa- 
da de  Alarves ,  na  entrada -delia  eílava  hu- 
ma fonnoía  fonte  ,  de  que  regavam  íuas 
fementeiras  ,  e  por  derredor  havia  alguns 
palmares  de  tâmaras.  Aqui  acharam  huma 
Cáfila  já  de  caminho  pêra  Damafco  ,  em 
que  fe  mettco  António  Tenreyro  ,  defpe- 
dindo  dalli  o  Piloto  ,  tendo-lhc  bem  pago 
leu  caminho.  Eíle  dia  qu^  partio  a  Cáfila , 
foram  dormir  a  outra  fortaleza  perto  ,  e 
deíla  a  quarenta  léguas  fahíram  do  deferto  , 
e  entraram  peias  terras  de  Alepo  Cidade 
grande  de  Soria  ,  cercada  de  muros ,  proC- 
pêra  de  tudo  ,  povoada  de  muitos  ,  e  mui 
ricos  mercadores  ,  que  alguns  prcfumem  que 
foíTe  edificada  das  relíquias  da  muito  antiga 
Hierapoiy  de  Alepio  Prefeito  do  Empera- 
dor  Juliano  ,  c  que  dclle  tomou  o  nome. 
Mas  o  Bifpo  D.  Ambroílo  ,  PenitcPjciario 
que  foi  do  Papa  Júlio  Terceiro  ,  que  veio 
á  índia  por  l\nx]uia  ,  e  Arábia  ,  e  eíieve 
jieíta  Cidade  de  Goa  no  Convento  de  S. 
Domingos  ,  de  cuja  Ordem  era  ,  homem 
douto  nas  letras  Divinas  ,  e  nas  línguas 
Chaldea .  e  Arábia  ,  diíle  que  quando  Deos 
livrara  Abrahao  de  Ur   Cidade  dos  Chal- 

de-  ■ 


D-ECADA  IV.  Liv.  V.  Cap.  vil  37J 

deos ,  fora  ter  a  Alepo  Cidade  cabeça  de  So- 
ria  ;  e  como  trazia  muitos  gados,  eera  ho- 
mem de  grande  caridade,  eílando  aqui  apo- 
feiuado  dava  cada  dia  aos  pobres  do  Jeitç 
de  íciis  gados  ,  e  tinham  já  eik  ração  por 
ordinária  ,  que  acudiam  pela  manhã  aos 
criados  de  Abrahao  ,  e  lhe  perguntavam  , 
Je/ep  ,  que  na  língua  Chaidca  quer  dizer, 
ordinhajle  jd  ?  e  que  daqui  íicou  eíle  no-r 
me  a  ella  Cidade  ;  e  que  os  melmos  Ará- 
bios doutos  de  Alepo  ,  que  aíli  o  tinham  em 
fuás  efcricuras  ,  e  que  lem  dúvida  cila  Ci^» 
dade  fora  habitada  ,  e  fenhoreada  de  Abra- 
hao. lílo  contava  clle  aos  Padres  de  S.  Do- 
mingos 5  de  quem  o  nós  foubemos.  Eftc 
Biipo  morreo  em  Cochim  ,  indo-fe  embar- 
car pêra  o  Reyno  ,  e  fegundo  a  noíía  lem- 
brança em  tempo  do  Conde  do  Redondo. 
Aqui  nefta  Cidade  fe  deixou  ficar  António 
Tenreyro  pêra  cfperar  por  hum  Venezea- 
no  chamado  Micer  Andreas  pêra  quem  le- 
vava cartas  ,  e  lerras  pcra  JJie  dar  dinhei- 
ro ,  e  aviamento  pêra  paílar  á  Europa  ,  que 
era  ido  a  Gonttantinopla ,  e  ficou  efperando 
por  elle  ;  e  também  porque  o  inverno  era 
grande,  e  de  grandes  neves  eíleve  aqui  trin- 
ta ciias  ,  até  vir  Micer  Andreas  ,  que  o 
aviou  ,  e  fe  raetteo  em  huma  Cáfila  que  hia 
pêra  Tripoli  de  Soria  ,  onde  fe  embarcou  , 
e  foi  ter  a  Chipro ,  e  dalli  fe  pafibu  a  Ve- 

ne- 


37^  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

«eza  5  paíTando  muito  grandes  rrabailios ,  e 
tormentas  ^  e  tomando  o  caminho  por  ter- 
ra 5  chegou  a  Portugal  pouco  depojs  de  ier 
partido  Nuno  da  Cunha  pêra  a  índia.  Ei- 
Rey  eítimou  muito  as  cartas  de  Chriftovao 
de  Mendoça  ,  e  as  novas  das  galés  ferem 
defarmadas  ;  e  por  faber  que  por  terra ,  e 
em  eípaço  de  três  mezes  podia  ter  recado 
de  Ormuz  ,  porque  nao  poz  eile  homem  no 
caminho  ordinário  mais ,  que  todo  o  outro 
tempo  foram  detenças  por  impedimentos 
que  Jhe  fuccedéram.  Eíla  viagem  ,  e  che- 
gada de  António  Tenreyro  poz  grande  es- 
panto no  Reyno  ,  por  íer  o  primeiro  que 
a  commctteo  fó  com  hum  Piloto.  Succe- 
■deo-lhe  no  cabo  de  todos  ePres  trabalhos , 
que  o  primeiro  dia  que  chegou  ao  Reyno, 
que  eíleve  com  EIRey  até  bem  de  noite , 
dando-Ihe  novas  da  índia  ,  fahindo  dos  Ef- 
taos  onde  Eillcy  pouíava  pêra  ir  defcan- 
çar  ,  indo  Tcílido  em  hum  alberiioz  ,  que 
todo  o  caminho  levou  ,  íaltáram  com  elÍQ 
no  Rocio  5  c  lhe  deram  dczeíere  ,  ou  dezoi* 
to  cutiladas  ,  e  eílocadas ,  de  que  o  deixa- 
ram por  morto  ,  e  foi  dalli  levado  ,  e  cu- 
rado. Soube-o  lo^o  EiRev  ,  mandou  ao 
feu  Surgião  mor  que  o  curaíie  como  fua 
pefToa  5  e  que  fe  inquiriíTe  aquelle  negocio , 
fobre  que  as  Juftiças  fizeram  mui  grandes 
.diligencias  ^  lem  fe  alcançar  coufa  alguma , 

nem 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  VIL  377 

nctii  elle  íiifpeitou  nunca  donde  lhe  aquilla 
podia  vir.  Viveo  eíle  homem  depois  ;  mas 
íicáram-Ihe  algumas  fontes  que  lhe  purga- 
vam, em  que  trazia  canudos  de  prata.  Apo* 
fentou-fe  em  Coimbra  onde  calou  ,  e  vi- 
veo  de  tenças  ,  e  comedias ,  que  lhe  ElRey 
deo.  Ellley  pelas  novas  que  teve  das  in- 
quietações do  Guazil  ,  vio  que  lhe  era  ne-^ 
ceíTario  acudir  ás  coufas  de  Ormuz  primeiro 
que  Rax  Xarrafo  acabaíTe  de  as  damnar; 
pêra  o  que  mandou  ordenar  huma  náo  pê- 
ra partir  em  Outubro  pêra  a  índia  ,  porque 
determinou  de  mandar  prender  Rax  Xarra- 
fo j  e  levallo  pêra  o  Reyno  ;  e  eíle  nego- 
cio encarregou  a  Manoel  de  Macedo ,  que 
chegou  da  índia  nas  náos  da  viagem  ,  de- 
pois do  Tenreyro  chegar ,  pelo  ter  por  ho- 
mem determinado  pêra  todo  o  negocio  ,  e 
lhe  deo  por  regimento  que  foíTe  tomar  Or- 
muz ,  e  como  entralTe  do  eílrcito  da  Perfía 
pêra  dentro  abriíTe  hum  regimento  que  le- 
vava ,  e  que  fizeíTe  o  que  lhe  nelle  manda- 
va 5  porque  nem  delle  quiz  fiar  aquelle  ne- 
gocio por  fe  não  vir  a  romper.  Eíla  pref- 
fa  ,  e  fcgredo  metteo  em  confusão  Triílao 
da  Cunha  ,  pai  de  Nuno  da  Cunha,  por- 
que fez  todas  as  diligencias  poíliveis  por 
faber  ao  que  hia  Manoel  de  Macedo  ,  fem 
nunca  o  poder  alcançar.  Pelo  que  efereveo 
Jiuma  carta  por  elle  ao  filho  ^  que  continha 

eC- 


378  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

eftas  palavras  :  »  Filho  Nuno ,  lá  vai  huni 
»  mancebo  em  huma  náo  mui  apreíTado  por 
y>  mandado  d'ElRey  ,  nunca  pude  íaber  ao 
»  que  vai  ,  deixa-lhe  fazer  tudo  o  que  lhe 
»  ElRev  manda  ,  íem  lhe  ires  á  mao  a  cou- 
))  fa  alguma  ,  manda  pimenta ,  e  deita-te  a 
))  dorm.ir.  »  Ha-fe  de  íaber ,  que  Triftao  da 
Cunha  a  todos  os  Icus  iilhos  nomeava  pe- 
los nomes  ,  e  fobrenomes ,  e  llies  faliava 
por  vós  ;  lo  a  Nuno  da  Cunha  com  íer 
o  mais  velho  Veado r  da  Fazenda  d'  El- 
Rey  5  do  íeu  Conlelho ,  e  Governador  da 
índia  ,  nunca  o  nomeou  fenao  por  Nu- 
no,  e  não  lhe  fallou  fenao  por  tu.  Manoel 
de  Macedo  deo  a  vela  em  Outubro ,  e  de 
fua  viagem  adiante  daremos  razão. 

CAPITULO     VIII. 

Das  coufas   que   aconteceram  em  Malaca 
.  até  chegar  Garcia  de  Sâ :    dos  ardis  de 

que  o  Acheyn  tifou  com  Fero  dic  Faria , 
'  :  por  ^cer  fe  podia  colher  em  Jeu  porto 
algum  navio :  e  de  outras  coufas 
que  mais  paffãram, 

COm  a  tomada  da  galé  de  Simão  de 
Soufa ,  como  atrás  temos  contado  ,  fi- 
cou o  Achem  muito  foberbo ;  e  como  era 
maliífmio ,  e  falfo ,  parcceo-lhe  que  podia  á 

con- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  VIII.  379 

conta  daqiiclles  Portuguczcs  que  tinha  ca- 
tivos ,  colher  naquclle  porto  algum  navio 
noílb  pcra  o  tomar.  Pêra  ilTo  determinou 
de  ufar  de  ardis  ,  e  manhas  com  o  Capitão 
de  Mahica  ,  como  logo  diremos.  Andava 
elle  ncPce  tempo  cm  guerra  com  ElRfy  de 
Aru  5  que  era*  noíTo  amigo,  e  como  eííe  ti- 
nha mandado  a  Malaca  a  pedir  íbccorro  ao 
Capitão  ,  do  que  logo  o  Achem  foi  avifa- 
do  5  e  receou  que  com  o  noíTo,  íoccorro 
lhe  déiTe  aquelle  Rey  grandes  trabalhos  , 
pelo  que  determinou  de  ataliiar ,  e  eítorvar 
o  foccorro  que  mandava  pedir.  E  toman- 
do hum  dos  Portuguezes  cativos  da  galé 
de  Simão  de  Soufa ,  chamado  António  Cal- 
deira 5  com  outro  companheiro  ,  liies  deo 
hum  bantim  ,  mandando-lhes  que  foíTem  a 
Malaca  ,  e  diíTeflem  da  fua  parte  ao  Capi- 
tão 5  que  elle  defejava  miuito  de  ter  com  elle 
paz  ,  e  amizade ,  e  que  pêra  princípio  del- 
ia lhe  queria  dar  todos  os  cativos  Portu- 
guezes ,  e  a  galé  com  toda  a  fua  artilheria , 
e  a  que  tomara  na  fortaleza  de  Pacem  ,  e 
a  de  huraa  náo  noffa  que  dera  á  cofta  ,  e 
que  bem  podia  mandar  logo  por  tudo.  Che- 
gado efte  homem  a  Malaca  ,  ( ellando  na- 
quella  Cidade  o  Embaixador  d'ElRey  de 
Aru  5  com  prom.ettimentos  da  ajuda  que  pe- 
dia 5 )  e  dando  recado  ao  Capitão  Pêro  de 
Faria  ,   que  o  grangeou  muito ,  parecendo- 

Ihe 


380  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

íhe  que  Deos  lhe  abria  o  caminho  pêra  ha- 
ver aquellas   coufas   cm  que    ganhava  mais 
que  no  íbccorro  d'EIRey  de  Aru  ,    que  já 
negociava  ,  rendo  commcttida  aquella  jorna- 
da   a  Diogo   de  Macedo  Capitão    mor   do 
mar  fle  Malaca ,  que  eftava  com  toda  a  Ar- 
mada que  tinha  no  mar ,  peio  que  determi- 
nou  de    a  recolher  ,   e  fazer  pazes  com    o 
Achem.    Ifto    níio    pareceo    bem    a  Martiin 
Corrêa  ,    que  conhecia   a  maldade  daquelle 
Rev  5  e  dilíe  a  Pêro  de  Faria  que  tanto  of- 
fereciraento   parecia  invenção  ,    que  aquilio 
era  mais  elpiar  a  fortaleza  ,  que  commctter 
pazes  ,    e  ver   fe  dava  foccorro  ao  Rey  de 
Aru  3  pêra  o  fazer  ibbreeílar  nclle ;    porque 
bem    fabia    ellc    a  grande    caufii    que  havia 
pêra    eílarem    cfcandalizados   delle   pela  to^ 
mada    da  galé  ^    e  que  forçado  fe  havia  de 
tratar   de  latisfaÇvío  ,   e  vingança  por  todas 
as  vias  :    que  eile  havia  de  temer  ,    e  arre- 
cear  que  a  mor  ,    que   por  então    fe  podia 
tom.ar  delle  ,    era  dar-fe  ajuda   a  Elllcy  de 
Aru  pêra  o  poder  desbaratar ,  e  que  enten- 
deiTcm  que  Mouros  nao  commertiam  nunca 
pazes  5  fenao  por  intereflc  ,   ou  neceííidade , 
e  que   edn    nao    tinha  elle  agora    por  parte 
dos  Portugueses  ,  mas  que  receava  tella ,  fe 
mandalTe  Armada  contra  cWe  ao  Aru  ;  e  que 
tantas  promeíTas  juntas  fem  ver  ainda  o  fia- 
gello  fobre  fi  ,    era  coufa  que  dava  bem   a 
1  en- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  VIII.  381 

entender  fua  tenção.  Eílas  razoes  parece- 
ram bem  a  Pêro  de  Faria ,  e  dilTe  a  Antó- 
nio Caldeira  perante  o  inelmo  Martim  Cor- 
rêa j  o  que  lhe  tinha  dito  ,  pedindo-llie  que 
lhe  diíTelTe  o  que  íbfpeirava  ,  q  [q  [c  podia 
arrecear  lerem  aquilio  invenções  do  Achem  ? 
António  Caldeira  lhe  diííe  que  o  que  en- 
tendia eram  tamanhos  defejos  no  Achem 
de  pazes  ,  que  fem  dúvida  daria  tudo  o  que 
tinha  oííerecido  ;  e  quanto  a  elle  em  ne- 
nhuma forma  deixaria  de  fe  tornar  pêra  el- 
le, pela  vontade  que  íentia  pêra  com  todos 
CS  Portuguezes  ,  e  porque  lho  promettéra  , 
que  lhe  déííe  refpofta  ,  porque  logo  havia 
de  voltar.  Com  eíla  confiança  defte  homem 
ficou  Pêro  de  Faria  mais  crente  que  o  Achem 
lhe  fallava  verdade.  Pelo  que  determinou 
de  acceitar  as  pazes  ,  porque  defejava  de 
haver  ás  mãos  os  Portuguezes ,  e  tanta  ar- 
tilheria  como  lhe  ofierecia ,  pelo  que  o  def- 
pachou  logo  5  e  efcreveo  ao  Achem  que  ac- 
ceitava  fua  amizade  em  nome  d'ElRc7  de 
Portugal  ,  e  que  dalli  por  diante  o  havia 
por  amigo^  e  que  como  a  eíTe ,  o  ajudaria 
em  tudo  o  que  lhe  foíTe  neceíTario  ,  e  que 
logo  mandaria  pelos  Portuguezes  ,  e  mais 
coufas  3  e  que  não  favoreceria  ElRey  de 
Aru  ,  e  que  logo  mandaria  recolher  a  Ar- 
mada que  pêra  iíTo  tinha  preíles ,  e  mandou 
com  eílc   homem  hum  cafado  de  Malaca-^ 

aue 


3^2  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

-que  ftbiu  a  lingua  Malaya  ,  com  prociira- 
-çoes  baílaiitcs  pera  aíTentar  as  pazes  com  o 
Acliem  ,  raandando-lhepor  eile  algumas  pe- 
^as  5  e  brincos.  Eftes  homens  foram  romar 
himia  liha  na  cofta  do  Achem, ,  que  era  po- 
voada de  Mouros  ,  que  vendo  os  dous  Por- 
-tuguczes  fós  os  mataram.  O  Em.baixador 
■:de  Aru  que  cíiava  em  Malaca  ciperando 
-pelo  íoccorro  defpedio  Pêro  de  Faria  com 
-deículpas  pera  ElRey  de  lhe  nao  mandar 
-foccorro ,  porque  pera  Iiaver  aquélles  Por- 
tugueses ,  e  mais  couías  que  o  Achem  of- 
fcrecia ,  lhe  era  aíli  necelTario ;  mias  que  el- 
•le  era  leu  amigo ,  e  aíH  o  moftrarla  em  to- 
das fuás  coufas  que  lhe  cumpriflcm.  Com 
eíla  refpofla  íè  foi  o  Embaixador  deícon- 
Tcnte  ,  e  fe  embarcou  fem  fe  defpedir  de 
-Pero  de  Faria ,  de  que  elle  ficou  hum  pou- 
co pejado  ,  porque  defejava  de  poupar  a 
amizade  deíle  Rey  ,  porque  era  muito  fícl 
amiigo ;  pelo  que  logo  defpedio  Fernão  de 
Moraes  5  que  aili  cílava  por  Capitão  de  hum 
galeão  ,  pera  fe  ir  ver  com  aquellc  Rcy, 
e  tempera  lio ,  e  dar-lhe  fatisfaçoes  das  cau- 
•fas  por  que  então  o  nao  ajudara  contra  o 
Achem.  Fernão  de  Moraes  chegou  ao  por- 
to de  Aru  poucos  dias  depois  do  Embai- 
xador ,  c  como  ElPvey  eílava  tomado  de 
Pero  de  Faria  ,  mandou  que  nenhuma  pef- 
,.jba  foiTe  abordo  do  galeão.  Fernão  deMo- 
>  raes 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  VIII.  385 

raes  eílcve  quatro  dias  fem  vir  recado  da 
terra  ,  pelo  quê  entendeo  que  naícia  aquil- 
]o  do  aggravo  d^EIRcy  ^  e  como  era  ho- 
mem de  muito  animo  ,  muito  arrifcado , 
contra  o  parecer  de  todos  fe  metteo  em 
iium  balão  com  alguns  criados  ,  c  foi  a 
terra ,  e  caminhou  pêra  os  Pa^os ,  e  entran- 
do muito  confiado  aonde  eílavaEIRey,  lhe 
fez  fua  cortezia.  ElRey  vendo  aquella  con- 
fiança o  agazalhou  com  bom  roílo ;  Fernão 
de  Moraes  Jhe  deo  todas  as  fatisfaçoes  que 
pode  5  c  CS  reípeitos  por  que  Pêro  de  Faria 
o  não  ajudava  por  então  contra  o  Achem , 
€  que  quanto  as  obrigações  que  lhe  tinham  , 
cíías  lhe  não  podiam  negar  ,  porque  bem 
fabiam  quão  leal  amigo  fora  fcmpre  do 
Eílado.  EIRcy  pareceo  por  então  que  fica- 
va defalivado  com  o  que  lhe  elle  diíTe , 
mas  era  ao  contrario  ,  porque  o  efcandalo 
que  dentro  tinha  era  tal  ,  que  determinou 
de  prender  a  Fernão  de  Moraes ,  e  tomar- 
Ihc  o  galeão  j  mas  quiz  por  então  diíUmu- 
iar  até  ver  o  que  fuccedia  á  fua  Armada , 
'que  havia  poucos  dias  era  partida  a  Pacein 
a  bufcar  a  do  Achem  ^  porque  fe  vieíTe  com 
vitoria  5  então  fiiria  o  que  determinava  ,  e 
quando  não  ,  pela  neceííidade  diíTimuíaria; 
c  por  efta  razão  deteve  Fernão  de  Moraes 
oiro  dias  ,  fem  no  galeão  fe  fabcr  novas 
■delle  ,  e  o  tinham  já  por  morto ,  e  eílive?- 


ram 


384  ÁSIA  DE  Diogo  DE  Cou Ta 

ram  algumas  vezes  pêra  fe  irem  pêra  Ma- 
laca. Paliados  eftes  dias  chegou  a  Armada 
d'ElRey,  que  teve  com  a  do  Achem  huma 
grande  batalha  ,  de  que  íc  aparrárani  lera 
vitoria  de  nenhum  :  eíla  Armada  trazia  ou- 
tro Portugr.ez  dos  que  cfravara  no  Achem, 
que  o  meimo  Rey  torjiava  a  mandar  a  Pe- 
IO  de  Faria  ,  porque  lhe  tardava  o  recado 
de  António  Caldeira  ,  e  lhe  mandava  por 
€Íle  dizer  que  mandaíle  logo  bufcar  a  galé , 
e  Portuguezes ,  e  artilhcria:  eíle  Poriuguez 
foi  tomado  cm  hum  balão.  Vendo  ElPvcy 
a  Arm.ada  lem  vitoria  ,  lançando  fuás  con- 
tas 5  vio  que  lhe  não  vinha  bem  quebrar 
com  os  Porruguezes  ,  porque  pela  ventura 
os  haveria  ainda  mifter ,  ou  ao  m.enos  por- 
.que  fe  não  ajuntaíTem  com  o  Achem  ,  pelo 
que  largou  Fernão  de  Moraes  ,  e  lhe  deo 
,0  Portuguez.  Fernão  de  Moraes  chegou  ao 
galeão  5  onde  achou  todos  defconfíados  del- 
Je  5  e  fazendo-fe  á  vela  pêra  Malaca ,  deo 
.conta  a  Pcro  de  Faria  de  tudo  o  que  lhe 
íiiccedeo.  Os  Reys  ambcs  como  eram  Mou- 
;ros  iiouve  pouco  que  fazer  em  fe  concerta- 
,rem  fazendo  pazes  ,  com  cócegas  que  am- 
•bos  tinham  hum  do  outro  do  favor  dos 
•Portuguezes.  E  como  o  Achem  fe  vio  def- 
apreliado  ,  não  quiz  mais  nada  de  Pêro  de 
'Faria  ,  oue  fem  dúvida  fe  acudira  com  hu- 
Tna  Armada   áqucile  negocio  3  houvera-lhe 

de 


Dec.  IV.  Liv.  V.  CAP.VIII.  E  IX.  38 j 

de  entregar  tudo  ,  ao  menos  a  galé ,  e  os 
Porruguezes ,  porque  receara  que  nao  o  fa- 
zendo ,  íe  foíTe  ajuntar  com  ElRcy  de  Aru  , 
e  o  deftruiíTem  j  e  aíTi  fe  perdco  eila  occa^ 
íiao ,  e  os  Portuguezcs  morreram  em  cruel 
cativciror 

CAPITULO     IX. 

De  como  ElRey  do  Achem  tomou  por  enga^ 
no  hum  galeão ,  de  que  era  Capitão  Ma- 
noel Pacheco :  e  de  como  foram  defcuber^ 
tos  huns  tratos  que  Sinaya  de  Raya  Che- 
ly  de  Malaca  trazia  com  o  do  Achem  y 
€  de  como  foi  morto, 

^T  Eíle  tempo  chegou  Garcia  de  Sá  áqueí- 
^  la  fortaleza  ,  e  tomou  poíTe  delia ,  do 
que  logo  foi  avifado  o  Achem  ,  e  houve 
que  com  o  Capitão  novo  faria  melhor  feu 
jiegocio.  E  porque  de  ambos  es  recado 
que  tinha  mandado  a  Malaca  não  tinha  re- 
fpoíla  alguma  ,  nem  fabia  o  que  fe  lá  trata- 
va ,  mandou  hum  homem  feu  áquella  Ci- 
dade em  muito  fegredo  a  faber  do  Bando- 
rá  Sinaya  de  Raya  (com  que  tinha  intelli- 
gencias  fecretas)  o  que  fe  lá  praticava  fo- 
bre  as  oíFertas  que  mandara  fazer  ,  e  que 
gente  haveria  na  fortaleza  ,  porque  defeja- 
va  de  a  tomar.  Eíie  homem  fe  vio  com 
Bandorá ,  que  lhe  dco  conta  de  tudo  o  que 
Couto.  Tom,  L  P.  L  Bb  Pe^ 


380  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

Pêro  de  Faria  paíTára  com  António  Caldei- 
ra ,    c  como  leguro    cm  fua  amizade  man- 
dava fazer  pazes  ,  e  bufcar  os  Portuguezes  , 
c  CjUe    fempre    ícgundára  ,    fe  nao   chegara 
Garcia  de  Sá.    Com  clle  recado  defpcdio  o 
Achem  logo  hum  Embaixador   a  pedir  pa- 
zes 5  e  chegado  áquella  fortaleza  defenibar- 
cou    em  íima    de  hum  elefante  com  grande 
acompanhamento  que  trazia  ,   e  foi  corren- 
do a  Cidade    de  fora    com  hum   p'ato   de 
ouro  nas  mãos,  em  que  levava  acarta,  que 
p  Achem  efcrevia  ao  Capitão  ,  e  diante  del- 
Ic  hia  hum  homem  ,  como  Rey  darmas  ,  que 
ao  fom  de  alguns  inílrumentos  hia  gritando  5 
e  publicando  alto  ,    que  ElRey  do  Achem 
mandava  comm.etter  pazes ,  e  amizades  aos 
Portuguezes:    (eíla  ordem  guardava  em  to- 
das as  que  commertia,)  e  aíli  foi  levado  ao 
Capitão ,  que  o  recebco  com  apparato.  El- 
le   lhe  deo  fqa  embaixada  ,   cuja  conclusão 
foi  defculpar-fe   do  que  fora  feito  a  Sim.ao 
de  Soufa  na  fua  barra  pelos  feus  fem  o  el- 
le  faber ,  e  que  eílava  preíles  pêra  emendar 
aquelle  aggravo ,    aíli  em  caíligar  os  culpa- 
dos 5    como  em  reOituir  a  galé,    Portugue- 
ses ,    e  artilheria  ,    e  que  lhe  pedia  corref- 
fem  em  amizade  ,   e  commercio  j  e  que  fe- 
guram.ente  podiam  os  Portuguezes  ir ,  e  vir 
a  feu  porto  ,   comprar ,  e  vender ,  fem  re- 
ceberem aggravo  algum.  Garcia  de  Sá  ou- 

vio 


Década  IV.  Liv.  V.  Ca?.  IX.   387 

vio  tudo  muito  bem  ,  nao  lhe  parecendo 
que  pudcíTe  haver  tamanho  fmghnento  ,  e 
maldade  em  homem  que  tinha  titulo  de 
Rey ,  cuja  obrigação  era  guardar  verdade, 
c  juíliça.  E  accejrando-lhe  as  oírertas ,  nego- 
ciou hum  ca  fado  ,  que  mandou  em  compa- 
nhia do  Embaixador  com  procurações  ,  e 
apontamentos  pêra  concluir  as  pazes  com 
o  Achem.  Chegados  áquclía  Cidade ,  foi  o 
iiofio  recebido  d^EIRey  com  muitas  hon- 
ras ,  dando-ihe  pecas  a  elle  .  e  a  todos  os 
que  com  elle  hiam.  E  praticando  nas  pa- 
zes lhe  concedeo  tudo  o  que  levava  por 
apontamentos  ,  como  quem  íe  nao  queria 
deíconcertar  no  preço  ,  pêra  ver  le  podia 
cíieituar  feus  concertos.  AíTentadas  as  pa- 
zes 5  mandou-as  pregoar  por  toda  a  Cidade 
com  grandes  íolemnidades.  Feito  tudo  iílo, 
defpedio  o  ncíTo  Embaixador  com  mofuas 
de  amor ,  e  amizade.  E  embarcado  na  bar- 
ra de  noite ,  foi  falteado ,  c  morto  dh ,  e 
todos,  e  o  balão  fumido  por  mandado  d^El- 
Rey  em  tanto  fegredo  ,  que  nunca  fe  fou- 
be  5  e  Garcia  de  Sá  prefuniio  que  fe  perde- 
riam no  mar.  O  Achem  foi  io.í^o  a  valado 
de  tudo  porSinaya  dePvaya,  que  lhe  man- 
dou dizer  que  nada  fjfpeitaa^am  ,  antes  o 
Capitão  edava  muito  faiisfcito  das  honras, 
que  elle  lizera  ao  feu  Embaixador,  com  o 
que  o  Achem  defpedio  logo  outro  Embai- 

Bb  ii  ■  xa- 


388  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

•xador  a  Garcia  de  Sá  com  o  peza-me  do 
dcfaparccimento  do  Teu  ,  que  lhe  pedia  inari'- 
daíTe  conrirmar  as  pazes  por  algum  ho- 
mem honrado  ,  já  que  o  outro  íe  perdera 
com  os  papeis  ,  e  capitulos  delias.  Garcia 
■de  Sá  enganado  com  eílas  moítras ,  mandou 
fazer  prelks  hum  galeão  ,  e  Manoel  Pache- 
co pêra  ir  nelle,  avifando-o  alguns  da  mal- 
dade daquelie  Mouro ,  que  elle  nunca  cui- 
dou que  houveiTe  tanta  em  nenhum  peito 
'humano  5  como  houve  neíle.  Negociado  Ma- 
noel Pacheco  ,  embarcáram-fe  com  elie  mais 
de  oitenta  Portuguezes  mercadores  com  mui^ 
•tas  fazendas  peio  proveito  que  efperavam 
daquelie  novo  commercio.  Sinaya  de  Raya 
avilbu  logo  ao  Achem  ,  aconíelhando-lhc , 
que  tomaíle  o  galeão  ,  porque  depois  feria 
facli  ir  tomar  aquella  fortaleza  ,  pela  pou- 
ca gente  com  que  ficava  ,  porque  a  mor 
parte  delia  hia  nelle.  Manoel  Pacheco  foi 
tomar  a  barra  do  Achem  ,  c  andando  aos 
bordos  lhe  fahíram  muitas  lancharas  ,  pou- 
cas 5  c  poucas  ,  que  o  foram  demandar ,  co- 
3Tio  que  hiam  de  paz  ;  e  afu  carregaram 
tantas  que  pareceo  mal  a  alguns  ,  que  dif- 
feram  a  Manoel  Pacheco  ,  que  bom  feria 
precatarem.-fe  ,  e  armarem-fe  ,  que  aquillo 
era  alguma  manha  do  Achem.  Já  no  galeão 
havia  alguns  Achens ,  e  derredor  delle  mui- 
tas lancharas  ,  que  vendo  a  confiança  dos 
^  Por- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  IX.  389 

Portuguezes  arremefráram-fe  dentro  ,  e  re- 
mettêram  com  elles ,  e  primeiro  que  tornai^ 
fem  armas  foi  morto  Manoel  Paclieco  ,  e 
os  mais  delles  ,  e  todos  os  outros  foram  to- 
mados ás  mãos  ,  fem  efcí^par  hum  fó.  O 
galeão  foi  levado  dentro  I  e  entregues  os 
Portuguezes  a  ElRey ,  que  logo  os  fez  ma- 
tar a  todos  5  e  aos  que  lá  tinha ,  e  com  if- 
to  mandou  dizer  a  Garcia  de  Sá  ,  que  lhe 
agradecia  muito  o  galeão  que  lhe  manda- 
ra ,  que  lhe  nao  faltava  mais  que  hum  bar- 
gantim  que  lá  tinha  ,  que  lhe  rogava  lho 
mandaíTe  ,  fenao  que  cedo  o  iria  tomar. 
Garcia  de  Sá  vendo  tamanho  engano  ^  e 
maldade  ficou  pafmado,  e  parecia  que  que- 
ria arrebentar  de  pezar  ,  do  que  lhe  tinha 
acontecido.  Sinaya  de  Raya  mandou  di- 
zer ao  Achem  que  mandaíle  huma  Arma- 
da 5  que  dÍQ  cumpriria  a  palavra  que  lhe 
tinha  dado  de  lhe  entregar  aquella  forta- 
leza ,  o  que  o  Achem  fez ,  mandando  fe- 
tenta  lancharas  com  três  mil  homens  ^  que 
foram  dar  viíla  a  Malaca.  Garcia  de  Sá 
com  eíTa  pouca  gente  que  tinha  fe  fechou 
na  fortaleza ,  tendo  grande  guarda ,  e  vigia 
nella.  Os  Achens  andaram  por  aquella  cof- 
ta  aguardando  recado  de  Sinaya  de  Raya ; 
c  permittio  Deos  pêra  evitar  tamanho  mal , 
que  fahiffem  hum  dia  em  terra,  e  fe  puzef- 
fem  ao  longo  de  hum  tanque  ,  que  cha- 
mam 


390  ÁSIA  DE  Diogo  de  Couto 

niam  d'ElRe7 ,   a  comerem ,  e  beberem  os 
Achens  com  os  Mabyos  de  Sinaya  de  Raya  ; 
e  foi   o  banquete    de  feição  que  ficaram  os 
Achens  bêbados ,   e  contaram  aos  Zvíalayos 
todos    os  tratos  ,   que  íeu  amo  trazia   com 
o  feu  Rey  ,  e  de  como  tiniia  ordenado  hum 
Domingo  (eibndo  o  Capitão  com  todos  os 
homens  na  Igreja)  ter  levado  ham  camelo, 
que   eílava  defronte    da  porta  principal  ,   e 
borneallo  pêra  dentro  ,  c  dar-lhe  fogo  ,  com 
que   niataíTe    todos  ,    e  abrir-lhes    as  portas 
da  fortaleza  j    e  afli  lhe  contaram  da  morte 
do  Embaixador  ,  e  de  Manoel  Pacheco.  Re- 
colhidos daqui  ,   infpirou  Deos  no  coração 
de  hum  Malayo  daquelles  ,  que  fc  foíle  lo- 
go á  fortaleza  ,   e  contou  ao  Capitão  tudo 
o  que  ouvira  ,    de  que  Garcia   de  Sá  ficou 
fobrefaltado,  e  efcondendo  o  Malayo  man- 
dou chamar  Sinaya  de  Raya  ,  que  logo  foi 
com  hum  enteado  feu  chamado  Tuao  Ma- 
famede,   e  recebendo-cs  bem  ,  recolheo-fe 
com  Sinaya  pêra  iima  ,  onde  tinha  homens 
que  o  tomaram  ,    e  deram  coni  eile  de  hu- 
nia  janella   em  baixo  ,   onde  fc  fcz  em  pe- 
daços ,  porque  cahio  de  altura  de  fmco  h- 
brados.    E  vindo   pêra  baixo  dilTe   a  Tuao 
Mafimede  o  que  fizera  ,   e  o  porque  y    ao 
que  lhe  elle  refpondco  ,    que  fe  tal  era  que 
fizera  muito  bem.  Garcia  de  Sá  o  fegurou, 
e   lhe  ditíe  ,   que  ferviíTe  ElRey   de  Portu- 


Década  IV.  Liv.  V.  Cap.  IX.  391 

gã\  j  que  elle  llie  faria  muitas  honras  ,  e 
mercês  ,  e  que  fe  recolheíTe  ,  e  quietaíTe , 
niandando-o  acompanhar  até  fua  caía,  e  fez 
mercê  ao  Malayo  que  lhe  defcubrio  a  traição , 
que  teve  em  fegredo  ,  fem  fe  faber  que  veio 
delle.  Logo  correo  a  nova  da  morte  deSi- 
naya  ,  pelo  que  os  Achens  fe  recolheram , 
e  o  feu  Rey  ficou  mui  magoado  do  fuc- 
ceflb.  Tuão  Mafamede  aíTombrado  do  que 
vira,  logo  defappareceo  com  mulher,  e  fi- 
lhos ,  e  fe  paíTou  a  Viantana  ,  onde  eftava 
o  Rey  que  Pêro  Mafcarenhas  desbaratou 
em  Bintao. 


Fim  do  Livro  V.  da  Década  IV. 


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